sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

31 coisas que aprendi em 2010

#1 - Não podemos nos isolar no nosso mundinho. Nossas dores e alegrias parecem maiores porque as vemos muito de perto. Quando olhamos para os lados vemos que o mundo é muito maior do que nosso quadrado - e às vezes há que se olhar para o lado para dimensionar bem a realidade.

#2 - É difícil a gente conseguir sempre acompanhar o compasso do outro. Respeitar o próprio ritmo é necessário (na corrida, na música, na vida). Sincronia não é exatamente ter a mesma velocidade - o ponteiro longo do relógio anda mais rápido que o curto e é assim eles formam uma hora.

#3 - A gente não precisa pedir permissão para amar alguém. Basta amar. O que a gente precisa é aprender a dar a tal permissão e não esperar nada em troca por isso.

#4 - Faça a sua parte de deixe o resto simplesmente acontecer. Às vezes a gente se esquece que nem tudo depende de nós ou dos nossos desejos...

#5 - É preciso dar outra chance. E é preciso também reconhecer quando todas as chances já foram dadas.

#6 - Se tem uma coisa que não devemos economizar é na atenção. Frescura, não! Mas atenção nunca é demais. Dar atenção a alguém é mais do que ser educado. É ser generoso, amigo. Dar atenção é dar amor.

#7 - O aprendizado é uma montanha infinita*. E às vezes a gente confunde o propósito da escalada - aprender não é chegar no topo da montanha, mas justamente continuar subindo sem pensar no final dela. *foi meu pai, José Cassiano, quem me disse isso no dia do show do Paul McCartney.

#8 - A compreensão é um exercício diário, que a gente precisa praticar com todos. Especialmente com aqueles com quem temos pouca paciência - muitas vezes são essas pessoas as que mais nos querem bem.

#9 - Não somos a outra metade de ninguém, senão de nós mesmos*. Pessoas "inteiras", livres e felizes acertam mais facilmente a fórmula mágica. O amor dependente é um amor doente.
*agradeço a Maria Helena Moraes por ter me dito isso. Mudou a minha vida!

#10 - Supere-se*. Respeite seus limites, mas se achar que pode ir um pouco além, vale tentar. A gente às vezes não entende porque tem que passar por tanta coisa difícil e, tempos depois, percebe que aquilo nos deixou pessoas melhores.
*Selma Silva me disse isso e não poderia ter havido hora melhor.

#11 - O mar é capaz de ensinar num único dia lições que não conseguimos aprender numa vida inteira. Lições que mudam a nossa vida. Mas há que se prestar atenção, senão é só mais um dia no mar.

#12 - Há tempo de sorrir e há tempo de chorar. E é muito bom poder fazer as duas coisas quando se tem vontade. Sem vergonha, sem pudores, sendo verdadeiro com o que a gente sente e com as pessoas que estão à nossa volta.

#13 - Temos que fazer aquilo que nos dá vontade, sim. Mas medir o risco e recuar se for necessário pode não ser muito divertido, mas poupa tanta dor de cabeça... A regra é simples: a viagem vale o esforço?

#14 - Quem disse que a gente tem que ser coerente o tempo todo? Prefiro ser essa metamorfose ambulante!*
*Frase de Raul Seixas, que todo mundo conhece e pouca gente entende.

#15 - O maior erro que podemos cometer é ter medo de errar. Errar é acertar em etapas.

#16 - Não podemos esperar que todos nos entendam, nem que nos perdoem ou aceitem nossas decisões. É triste quando acontece com alguém de quem gostamos muito, mas é muito melhor agir com verdade e não fingir que nada aconteceu. Pedir perdão faz bem. E entender (e aceitar) quando não podem nos perdoar faz bem também.

#17 - Não deixe as coisas para depois. Algumas oportunidades não vêm mais do mesmo jeito. E com o passar do tempo, pensamos que teremos mais tempo, mais dinheiro, mas isso não é necessariamente verdade*.
*Henrique Romero, meu dupla “oficial”, pedaço de mim, me disse isso num momento de muita distância e saudade, quando nos demos conta de todas as coisas boas que já vivemos juntos.

#18 - Veja o dia passar. Observe as coisas de perto; aquelas nas quais você nunca repara. Há uma beleza surpreendente nas coisas mais simples... e elas trazem uma satisfação enorme.

#19 - Permita-se falhar. Você é humano, afinal. Permita-se agir por instinto. Você é bicho também, é bom não esquecer.

#20 - É bom ouvir as pessoas que nos são importantes. É incrível como elas costumam fazer uma imagem nossa bem diferente daquela que temos sobre nós mesmos. Isso às vezes é chocante, mas nos provoca sair da perigosa zona de conforto.

#21 - A gente muda, SIM. Todos os dias, às vezes rápida, às vezes lentamente. Fique atento: você está se transformando em alguém que você gosta de ser?

#22 - Abra espaço para o novo. Não colecione coisas nem pessoas que não te fazem mais diferença* - despeça-se deles, agradeça pela passagem em sua vida, mas siga em frente sem apego, porque o que realmente importa não podemos possuir.
*refletindo sobre a vida com a ajuda do Marcelo Freitas outro dia falamos sobre isso e várias fichas caíram. Valeu, presidente!

#23 - Assim como nós, a natureza é simples mas complexa: nuvens não são esferas, montanhas não são cones, litorais não são círculos, a casca das árvores não é lisa, assim como o raio não viaja em linha reta. Todas essas formas são fractais.*
*Obrigada Fabio Cripa por mandar a explicação sobre os fractais de Benoît B. Mandelbrot. Antes eu achava que fractais eram apenas imagens lisérgicas.

#24 - O ócio pode ser divertido se o usamos como um espaço potencial onde qualquer coisa pode acontecer. Tédio é coisa de gente que tem preguiça de pensar.

#25 - Não há mal que sempre dure... Quando paramos de remoer e deixamos para trás memórias que nos causam dor, ficamos mais leves e prontos para receber o que nos faz bem.

#26 - Regras são referências, assim como consequências.

#27 - Medos são limites e é bom respeitá-los. Só não deixe que eles te impeçam de fazer as coisas que você tem vontade.

#28- As grandes oportunidades normalmente estão onde menos esperamos. Mas temos que estar abertos para que elas nos encontre.

#29 - Ninguém quer ter o coração partido. Mas se você pensar, faz bem pois te coloca em contato com emoções raras e te faz descobrir forças que você nem sabia que tinha. Tudo na vida tem seu valor; até o desamor.

#30 – Contar nossas histórias é bacana. Compartilhar às vezes espalha mais coisas boas do que podemos supor.

#31 - 2010 foi um ano de encontros, reencontros e desencontros – todas experiências muito ricas. E me dei conta de que sou mesmo feliz quando vivo plenamente o PRESENTE. Mas somos feitos da nossa história então pensar no passado faz parte. Usemos isso, pois, para nos preparar para o presente e nos fortalecer para o futuro, pois é pra lá que todos vamos. Feliz dia 31! Feliz HOJE! E um lindo 2011 para vocês.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Palavras tentativas

Numa madrugada estrangeira as ruas parecem perdidas, os rostos parecem distantes, as memórias esquecidas, os ruídos abafados. Mas o coração, que deveria estar acelerado, está lento. Dividido entre os efeitos do novo controverso e o velho já sabido - e sofrido, desgastado, mal quisto, cansado, exagerado, reprimido e pseudo sublimado. Desistimos da verdade, da clareza, da presença das palavras faladas. Sobraram as palavras escritas. Essas mesmas que nunca faltam. Essas mesmas que, por mais que tentem, não dizem nada.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

2010, o ano do futuro, do presente e da história

Eu achava que 2010 era um ano a anos-luz de mim. Nasci na década de 70. Cresci ouvindo Ziggy Stardust e vendo 2001: uma odisséia no espaço (que meu pai tinha em VHS, gravado da TV, em sua pequena e poderosa videoteca – num tempo em que não havia essa coisa de coleções inteiras de clássicos do cinema como brinde de assinatura de jornal). Nos anos 80, quando já não havia mais Elvis, Lennon e Elis Regina – e o mundo ficou estranhamente mais triste, violento e com umas modas de roupas, drogas, música e até literatura muito duvidosas – foi quando comecei a entender melhor como as coisas funcionavam. Mas ainda não existia computador assim, como uma coisa comum em todos os lugares, como vemos hoje. Internet? Telefone celular? Caixa eletrônico? Gente, nos anos 80 havia coisas incríveis e muita diversão, mas a gente mandava cartas, telegrama e mal existia o fax! Então, pensar no mundo de 2010 parecia uma coisa muito distante, outro século, uma coisa do futuro! Nos anos 90 a coisa começou a pegar para mim. Era muita informação, muito hormônio, muita gente, muita referência, muita coisa nova, muita gente me dizendo o que fazer e eu muito certa de que tinha certeza de tudo, menos do que me mandavam fazer. E mesmo com essa confusão toda, de algum modo as coisas foram se ajeitando e os anos 90 me pareceram passar meio lentamente. O ano de 2010 ainda parecia uma coisa muito distante, ainda muito num futuro que eu imaginava, graças ao cinema e à velocidade com que as coisas aconteciam na tecnologia e comunicação, uma coisa muito futurista. Sabe aquela imagem das pessoas todas usando uma roupa prateada? Pois é. Eu imaginava as pessoas ficando cada vez mais iguais, cada vez mais idiotas e produzidas em série. Putz, os anos 90 foram compridos... até a contagem regressiva pro milênio foi lenta. E até um pouco decepcionante, visto que estavam todos esperando pelo bug do milênio e ele não aconteceu. E entramos nos anos 2000 assim, cautelosos, achando que estava tudo bem e de repente foi como chegar ao topo da primeira descida da montanha-russa – aquela maior de todas, quando temos pela primeira vez aquela sensação de velocidade desenfreada, um vento violento na cara, o estômago descolando do lugar, a ausência da gravidade e aquele sentimento alucinante de queda livre – e de repente todos tinham não só celular e computador, mas também estavam todos conectados, 24 horas no ar, 7 dias por semana, por sms, skype, trocando fotos, gostos, experiências pessoais de maneira aberta e quase irrestrita. Tudo aconteceu muito rápido nos anos 2000. Não sei se foi coincidência da era da tecnologia e conhecimento com o momento da minha vida, mas nos anos 2000 nunca estive em tantos lugares e nem conheci tantas pessoas e me conectei e mantive contato com elas como dessa época em diante. E enquanto 2010 vinha chegando numa velocidade vertiginosa, as coisas também iam mudando na minha vida de maneira vertiginosa. Experimentei empregos novos, conheci outros mercados, outros costumes, outras línguas, experimentei ficar junto, ficar só, jogar “tudo” pro alto e vários outros significados para “tudo”. Em 2008 eu me lembro de ter literalmente visto o ano passar por mim e transformar-se em 2009, nas areias de Copacabana, um momento tão clichê e popular que eu não imaginava que poderia ser o maior momento de comunhão que eu já havia visto na vida, ali, materializado em centenas e centenas de pessoas vestidas de branco, indo buscar no mar uma coisa que ninguém sabe explicar direito, mas que funciona como uma espécie de bênção, um beijo da mãe, como a nos dizer “vai, filho, vai ser feliz”. Aí eu entendi melhor essa necessidade que temos em querer cortar o tempo. É importante mesmo. É como uma pausa necessária para respirar, tomar fôlego. E aí sair correndo de novo porque correr é muito divertido, mesmo que nem sempre a gente consiga acompanhar o ritmo do outro ou fazer com que acompanhem nosso ritmo. E quando eu menos esperava, me dei conta: estamos chegando ao final da corrida de 2010. E 2010 não foi exatamente um ano futurista. As pessoas não estão todas iguais, de roupa prateada. Bem, algumas até estão, mas até isso dá diversidade ao momento. Ao contrário do que eu imaginava, as coisas não estão muito mais organizadas nem exatamente melhoradas, mas pelo menos temos cada vez mais conhecimento, mais acesso, mais instrumentos. E ao contrário do que eu imaginei também, as pessoas não estão se imbecializando. Sempre vai haver as que estão, mas há tanta gente legal, tanta gente boa e bem intencionada, buscando fazer coisas para evoluir. Me dei conta do quanto sou arrogante por subestimar as pessoas. E do quanto sou feliz por ter quem me mostre isso e me ensine que todos temos coisas boas e ruins dentro de nós – e o que importa é o que você faz com isso. Refletindo sobre achar que 2010 era um ano distante e dele ter chegado assim, “repentinamente”, me dei conta de que ao final de cada década, ao final de cada ano, aquele foi o momento mais importante da minha vida, porque paro para pensar nessas coisas todas que já me aconteceram. E vejo que as pessoas à minha volta são as mais importantes do mundo, porque sem elas não há história para contar, não há nada. Mesmo que a cada ano sejam pessoas diferentes. Porque nos momentos em que estamos sós – importantes momentos para também pensarmos por nós mesmos, refletirmos um pouco sem a influência do resto, mas apenas ouvindo e sentindo o que vem da nossa própria alma –, estar só não será uma coisa solitária e triste porque temos em quem pensar, porque nos lembramos da história que só é possível escrever a muitas mãos. Por isso que eu sempre digo que é muito bom poder ter companhia até para estar sozinho. E me dou conta de como é bom encerrar cada ano com pessoas especiais, mesmo que eu não esteja com elas no zerar do cronômetro, elas estarão comigo e eu abraçarei em pensamento cada uma, com aquele abraço apertado que vocês sabem que eu tenho (ou podem facilmente imaginar), e vou desejar com toda a força que existe em mim que cada um seja feliz. Dizem que o que mais importa é ter saúde. É verdade, mas de nada adianta estar saudável e infeliz – acho até que estas são duas coisas antagônicas... – e já conheci muita gente doente e feliz, que me ensinou que a gente é mais do que um pedaço de carne, mais do que uma máquina poderosa onde tudo tem que funcionar perfeitamente bem para que a gente fique em pé todos os dias e leve uma vida “normal”. Então, meus amigos de agora e de sempre, novos, velhos, virtuais, viscerais, superficiais, daqui e de todo lugar, confesso a vocês que 2010 chegou pra mim lentamente e acabou muito rápido. Tão rápido que eu confesso que não sei bem o que esperar de 2011. Concluo mais esta década da vida achando que esse nosso mundo é muito bom, embora tão maltratado. Concluo mais este ano agradecendo por ser feliz e por conseguir entender que a felicidade é uma coisa efêmera e que tem que ser conquistada com empenho, todos os dias. Para 2011 desejo a todos o que desejo também para mim: coisas simples como beijos, abraços, sorrisos, banho de mar, comida gostosa, música boa, sono tranquilo, paz de espírito. Pensei em mandar esta mensagem apenas para meus amigos mais próximos, mas refletindo mais uma vez sobre o quanto 2010 demorou para chegar e o quanto sua chegada surpreendente virou o mundo de cabeça para baixo e mudou completamente nossa relação com as pessoas e a comunicação com elas, resolvi publicar o texto aqui e convidar quem quisesse a cumprir o desafio de ler esse texto longo e talvez até desinteressante, visto que não é literatura, crônica, novela, propaganda, post nem nada além do que minhas impressões sobre o tempo. Se você está feliz com sua jornada até 2010 e está refletindo sobre como será 2011, talvez possa ter gostado de viajar nas suas experiências enquanto lia sobre as minhas. Obrigada pela companhia e seja bem vindo a mais um ano da nossa história.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Jogos de azar [fucking loosing games]

Quando me arrependi do que não fiz, do que não disse, já era tarde. Já não faria mais efeito. Quando desisti, achei que tinha mesmo desistido, mas venci minha própria resistência. Desistir não foi mais opção. Então fiz de novo, disse de novo, do modo como pude, joguei com as cartas boas que tinha na mão. Eram boas cartas. Mas para ganhar o jogo, não bastam as cartas serem boas; elas têm que combinar entre si. Perdi outra vez. Mas agora sem arrependimentos.

[There's no sorrow. There's only bad results. And it has been a while since I have bet in a freaking right game.]

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dia cheio

Me pego enroscada neste dia comprido. Fui de um extremo à outro no que sinto, no que penso. Tive vontade de chorar, de rir, de gritar. E fiz todas as coisas na ordem que quis. Há um efeito lunar nisso tudo. A lua gigante ali na janela estica o dia, resistente em acabar. É o fim não apenas de um dia. É o fim de uma série de coisas, de uma estação do ano, de uma volta nova e completa do planeta, da lua, do sol. O dia não acaba porque ainda estamos aqui, enroscados na primavera pegajosa, resistentes ao verão de calor cruel, hipnotizados pela lua cheia e seus efeitos delirantes sobre as marés lá longe a encher ou aqui dentro a vazar. O dia já acabou. E já começou tudo outra vez.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Na madrugada

A lua, cheia como eu, imprecisa. As nuvens, caleidoscópio do céu, misturando as cores de nossas vidas que ora formam uma coisa, ora formam outra. Partidas, tumulto, silêncio, lembranças do que estamos ainda fazendo.

Momentos de sorte

Por vezes não temos chances. E de vez em quando temos chances demais. Coleciono momentos perdidos. Aqueles com o cenário e personagens perfeitos, desperdiçados na falta de coragem para falar, para agir. E então resolvo que é hora de uma coleção nova. Momentos aproveitados de uma extremidade à outra. Muitos olás. Muitas despedidas. Muitas risadas e muitas lágrimas também. Somos todos humanos, afinal. Mais sorte que juízo.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Início, meio e fim

Somos espécies diferentes. Operamos por lógicas paralelas. Poderosas quando desviam e se cruzam. Mas a vida às vezes precisa de roteiro. Não pode correr à esmo, senão não dá em lugar algum. Senão acaba no ponto sem saída do labirinto, ponto cego do espelho, ponto morto da marcha, que não sai do lugar, que não vê ninguém além do que não precisa, que não dá em lugar algum. Mas somos espécies diferentes, então o que pra mim é o fim, de repente pra você é só o começo.

Sutilezas da fome

Um amigo do trabalho os apresentou. Ele era comprometido, ela não. Mas ela era encantadora. Ele, não. Mesmo assim havia algo nele que mexia com ela. Conheceram-se, aliás, enroscaram-se primeiro, meio sem critérios, por acaso, num momento de loucura quando - acharam - repentinamente não havia mais ninguém prestando atenção. Ela sabia que seria complicado. E mesmo assim não se importou. Mas ele gostou da complicação. Voltou, quis mais, insistiu. Ela resistiu, mas estava pronta para ceder. Seduziam-se em emails, mensagens, jogos de coincidências que o destino - e não eles, incrivelmente, mas o destino! - lhes jogava no colo. Viam-se pouco, mas quando viam-se compartilhavam gostos e coisas e referências que faziam-se surpreender. E a total ausência de intimidade compensava-se com a liberdade que sentiam um com o outro. Uma liberdade até descontrolada, meio lasciva, de entrega fácil e ruidosa. Mas era pouco. Para ambos. Um queria mais e não podia ter. O outro queria mais, mas tinha medo de ter e não saber o que fazer com aquilo. E ficavam reticentes em insistir. E tentavam ser sutis um com o outro. Queriam-se, mas sutilmente não encaixavam-se - uma afronta ferina para a fome que sentiam um pelo outro, distraída pelo excesso de cheiros e saciedade momentânea.

Basta

Você vai embora e me lembro do que não fizemos. Me lembro do que queremos. E tememos. E tememos nunca mais ter, nem nunca mais querer assim. E me dou conta que às vezes quero demais. E isso me basta.

Vejamos

Eventualmente, te vejo. Eventualmente te beijo. Eventualmente te quero. Eventualmente te espero. E espero que as eventualidades não se confundam com as fatalidades. Vejamos como a história continua. Não há eventualidade para os eventos da vida - ou é só isso que a vida é? um conjunto de eventualidades? Vejamos...

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Refém

Não me é opção. Está por toda parte. E parte. E não volta. E ainda continua aqui.

Iguais

Será que perdemos o prazo? Será que perdemos só tempo? Será que em algum momento o que vimos acontecer não se anunciou? E o que poderia ser diferente se o resto do mundo é e nós simplesmente não somos?

Sentido insensato

Sou sensível ao belo e ao harmônico. Me emociono diante do que é delicado. Talvez porque more na delicadeza um poder desconhecido e verdadeiro que age com muita suavidade. Há beleza nas coisas mais prosaicas. E somos tão insensatos que só notamos quando alguém aponta.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Novos volumes

Acho que a vida vem em volumes. E numa página em branco você pode brincar, rabiscar, apagar, s-o-l-e-t-r-a-r bem devagar... ou acelerar e encerrar! dramaticamente. E aí não importa muito em qual volume estamos nem como vai terminar. Estamos escrevendo. E talvez seja melhor assim, desordenado mesmo, ora na minha língua, ora na nossa. Em muitos volumes se assim for preciso. Numa única página, se isso bastar.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ruídos

Existem ruídos que me lembram você. Não tinha reparado antes. Antes eram músicas, imagens, momentos que me lembravam você ou alguma coisa que estivéssemos fazendo que escapa lá do arquivo morto da minha memória e corre para a frente dos meus olhos ou ouvidos como a me provocar, em tom de escárnio, relembrando o quanto ainda preciso de todo um universo novo para que essas coisas não me assombrem mais. Mas os ruídos, não. Acabo de me dar conta. Os ruídos nunca vão se dispersar. Bem típico de você: roubar-me até os ruídos.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Volumes

Abri o caderno ao meio e comecei a escrever assim, sem me preocupar em haver uma primeira página. Abri o caderno ao meio como se ele fosse minha vida, cheia de páginas brancas ainda, para frente e para trás. Como se eu estivesse agora num caderno novo dentro desta vida ainda. Como se os cadernos já escritos fossem conectados a ela mas, de algum modo, escritos em outros tempos, de outras formas, com lógicas diferentes. Não deixa de ser interessante encarar as coisas assim: vários volumes de vida. O volume 1 escrito a muitas mãos, menos as suas. E a partir do volume 2 com a narrativa em primeira pessoa. E noutro volume com emoções desrespeitando as pessoas, as orações, as narrativas, a divisão de volumes... Numa hora os volumes são poucos. Ou têm poucas palavras. E no momento seguinte já são muitos, volumosos, pesados, com variações mil de gêneros, estilos, tempos verbais e até idiomas... Vou lá de vez em quando, consultar os primeiros cadernos, beber um pouquinho da história que há neles, testemunhas e atestados do que sou. E volto para este último, começado há pouco, displicentemente numa página bem no meio do volume e me agrada não saber se vou passar para a página seguinte ou a anterior. A gente não muda os volumes anteriores, nem as páginas já escritas. E nada disso importa quando a página está em branco ou recém preenchida, porque aí você pode brincar. Pode ir para a frente e pode voltar um pouquinho, trocar as palavras, ajustar o texto, mudar um pouco a linguagem, variar os personagens... começar de um jeito e terminar de outro. Não importa qual é o volume em que estamos, nem como ele vai terminar. O que importa é que estamos escrevendo. E acho que eu gosto mais assim, desordenado mesmo, ora na minha língua, ora na nossa. Em muitos volumes se assim for preciso. Numa única página, se isso bastar.

Não responda

Pensei em milhares de palavras. E em rimas, desculpas, motivos, sinônimos, absurdos, coisas contraditórias. Pensei nos passos que me trouxeram até aqui e porque de repente não era aqui que eu queria estar. Pensei então em todas as perguntas que eu queria fazer. E em todas as que eu fiz e não houve eco. Pensei em diversas respostas possíveis. Mas assim como as respostas que você não me deu, seus motivos também são apenas seus.

Just for now

So I was thinking about the past. About what we've did. I was thinking how empty we can feel and how full life can be. But for now I just wanted not think about it. Just for now I wish you out of me. Just have no room for anything else...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mal olhado

Aos seus olhos, tudo bem. Mas meus olhos não podem. Eles dizem sim quando minha boca diz que não, contrariando meu corpo inteiro. Aos seus olhos, poderia ser. Mas meus olhos enxergam mais do que eu gostaria de ver e me proíbem que eu os feche como da primeira vez. Seus olhos são escuros. Os meus, borrados. Meus olhos são puros. Os seus, malvados.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Se você quiser

Não sou esta mulher que chama a atenção na rua. Mas se você quiser, posso ser.
Não visto roupas provocantes, não faço cabeças girarem para me sentir olhada. Não sou assim... mas se você quiser, posso ser.
Não sou quieta, não contenho muito bem as palavras. Não sou muito paciente. Mas se você quiser, posso ser.
Não gosto de novela, não creio em príncipe encantado, não sou princesa de ninguém. Mas se você quiser, posso ser.
Não sou uma sonhadora tradicional. Sonho com o banal. Não sei se posso ser parte dos seus sonhos. Mas se você quiser, posso ser.
Não sei muito sobre me dedicar a uma coisa só. Nem sei se tenho esse talento, se será difícil ser dedicada assim. Mas se você quiser, posso ser.
Não vou a lugares que não quero, não gosto de quem não merece, não sou muito tolerante... Mas se você quiser, posso ser.
Nunca fui o que não quis. Nunca tentei ser diferente. Sou apenas o que sou. Mas se você quiser que eu seja mais, posso ser.
Para me ter você precisa apenas querer. Posso ser o que você quiser. Você precisa apenas me dizer – posso ser?
Eu poderia ser qualquer coisa. Inclusive o que você quer. Então apenas me diga se um dia você quiser.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ridículo

O amor é uma coisa ridícula. Pense bem: a gente passa mal, se descabela, chora porque não tem, aí quando tem chora porque não quer mais... e passa mal e se descabela de novo. É como um porre de tequila - você sabe que vai dar naquela ressaca animal amanhã, mas continua bebendo só porque é tão bom... e no dia seguinte jura para todos os santos, orixás e entidades que nunca mais vai beber álcool na vida. Até a próxima. Claro, porque na próxima você vai lembrar, antes mesmo de tudo começar, como somos ridículos. Vai olhar de novo para aquela porta fechada e pequena e calcular - hmmm, será que eu passo ali? Preocupação estúpida se a porta ainda nem estiver aberta. Mas a gente se esquece desses detalhes. Aquela mera possibilidade de alguma coisa nova ali, um cheiro um pouco diferente no ar, uma brisa morna que sopra de repente e pronto - estamos de novo virando a página do calendário, mudando de estação. - E a gente se esquece também que nem todo verão é quente e úmido. Se esquece que tem um monte de coisas que a gente já sabe, mas outro monte de coisas que a gente não faz a menor ideia. E aí temos medo. E de repente não temos mais e tudo começa ficar tão divertido outra vez. As pecinhas do quebra-cabeças começam a aparecer e se encaixar uma na outra e a gente se surpreende de novo e esquece que as peças nasceram todas juntas e se separaram depois para que a brincadeira pudesse existir. Mas uma peça de quebra-cabeças nunca tem um encaixe só. E todo mundo sabe que os melhores quebra-cabeças têm mais de mil peças. Tem hora que a gente cansa de montar e se esquece - a gente vive se esquecendo - que não precisa montar tudo de uma vez. O segredo é achar a peça certa e enquanto isso ir divertindo-se com as erradas - divertindo-se com as tentativas de encaixar. Agora me diga: tem coisa mais ridícula que juntar pecinhas infames para montar uma imagem que você já sabe mais ou menos o que vai ser depois? Ou seja, tem coisa mais ridícula que montar quebra-cabeças? Agora me diga, só mais essa vez: tem coisa mais ridícula que o amor? E mesmo assim eu amo quebra-cabeças...

Dezembro ao norte

Dezembro é uma ampulheta com muita areia caindo. Uma curta contagem regressiva para tantas coisas quanto se pode caber dentro de um ano inteiro. Queremos passar por ele rápido, como se fosse apenas uma conexão, uma paradinha em excessos de qualquer coisa - até de afeto. Sobra muita coisa em dezembro - coisas não cumpridas, não resolvidas. E a gente se absolve diante da oportunidade ali, zerando o cronômetro. Mas cortar o tempo é bobagem. A gente se esconde no tempo só porque ele parece resolver as coisas. Não é verdade: quem resolve as coisas não é o tempo. O tempo é só um recurso, um transporte. Um mero norte.

Volta incerta

Voltou-se para dentro. Era hora de sorrir só. Seu fuso horário estava desajustado, seu relógio quebrado... alguma coisa não fazia sentido. Mas tão poucas coisas faziam sentido ultimamente. Pensava no tempo passado – e pensava se não soaria melhor usar o presente, mas desistia porque já estava tudo começado e não ia fazer o caminho todo de novo. Pensava no passado, mas só há poucas horas havia percebido que era hora de voltar-se para dentro como estava querendo. Havia um excesso de querer por toda parte. Todos querendo ser livres, querendo ser loucos, querendo ter menos experiência para não privarem-se de novas experiências. Quando aquilo tudo tinha começado? De repente as coisas não seguiam mais em linha reta. De repente estava todo mundo torto. De repente as respostas não estavam mais nos outros. Então era hora de voltar-se para dentro. Algumas questões a gente só responde assim, quieto.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Vou deixar

Deixei você me amar. Me mimar. Me encher de beijos, cortejos, carinhos, nominhos. Deixei você gostar. Me cuidar. Me deixar. Me deixei levar. Gostei de deixar. É bom deixar, permitir, sentir o que você quis me dar. Deixar é bom. É flutuar à deriva se o mar está calmo e o dia bonito. E você me olhando. E eu deixando.

Nothingness

So there is love
And there is hate
There is luck
And there is fate

There is you
And there is me
And there is nothing
When we can't be

sábado, 4 de dezembro de 2010

Volta lenta

A rede está lenta. Minha vida, sonolenta. O vento está forte. E você, sem sorte. Eu volto, você vai embora. Eu volto para dentro. Você, para fora.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Um, dois

Somos um. Bem mais que dois. Sou um, mas não sou nada. E você aí, ninguém também, é bem melhor em mim. Somos dois, mas somos bem melhor quando somos um.

Para quando você for embora

Há memórias que me escapam, coisas que só me lembro depois, juntando os pedaços. Você e sua memória incrível se riem, reconstróem o passado mais rápido que eu. E o que eu posso dizer? Tenho meu próprio tempo para lidar com o tempo. Você não entende. Vai embora descontente. Não me espera. Me escapa como as memórias que só me aparecem depois, quando não preciso mais delas. Tudo bem. Não leia isso agora, não pense em nada agora. A gente já sabe como acaba. Então guarde para quando você for embora.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Enquanto escovo os dentes



Você foi embora e deixou aqui sua escova de dentes. Ela ficou ali, como a me lembrar de um modo meio sarcástico que você foi embora. Memória insistente de algo que eu preferia já ter esquecido. Mas não posso. A escova está ali e eu deveria jogá-la fora. E penso que talvez ainda não seja a hora. E me pergunto - ué, por que não? E mesmo não tendo respostas, ela continua ali, a me afrontar. Me questiono se não estou me torturando. Usando aquela escova indiferente à sua ausência como argumento fajuto para que eu resista à tentação de te esquecer. Seria tão mais fácil... Acordar amanhã livre dessa memória estúpida, que não nos serve mais de nada. Afinal, você foi embora e não houve nada que eu pudesse fazer para que você ficasse. E não há nada que eu possa fazer para que você volte. Me pego pensando se haveria algo. Juro. Não desisti assim de cara. Mas não vejo como. Você quis ir. Resolveu. Comunicou. Partiu. Eu permiti. Não disse palavra. Vi você partir da minha casa e da minha vida, sem nem me pedir permissão. Não entendi porque você foi e também não questionei... não pensei em pedir - fica. Não pedi. Não soube como. Não consegui dizer. E sua escova de dentes segue aqui, todos os dias a assombrar minha rotina manca, torta, desequilibrada sem você nela. Todos os dias eu penso em jogá-la fora. Mas não jogo, como se isso fosse a esperança de que você pode voltar - e então eu diria, orgulhoso: olha só, sua escova continuou aí, junto da minha. E então me convenço de que estou me enganando, ganhando tempo para distrair minha tristeza e sublimar meu orgulho ou minha falta de timing - por que diabos eu não te disse para ficar? Pensei em te ligar para falar da escova. Mas o motivo me pareceu tão idiota... E o que mais eu poderia dizer? Que a primeira coisa que eu faço quando abro os olhos é perceber que você não está? Que quando abro a geladeira e tudo balança não me lembro de você ter dito tantas vezes que a geladeira precisa de um calço? Que quando coloco a música muito alta não lembro de você abrindo a janela da sala para que ela não ficasse vibrando? Ai, quantas coisas mais eu poderia te dizer nessa ligação? Que me falta tua boca? Tua pele, tuas mãos nas minhas... teus cabelos... que me falta você? Que penso em tudo isso enquanto escovo os dentes só porque sua escova está ali, junto da minha...?

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mais amor, por favor



MAIS AMOR, POR FAVOR - Estava escrito no muro, todo em caixa alta, porém em letras miúdas. E fez o homem pensar: chegamos ao ponto de pedir por favor para dar e receber amor? Talvez, pensou. Nada demais. Talvez o coração precise de um alongamento e técnicas de controle pela respiração, afinal, é um músculo; se malhar demais pode endurecer.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Excessos (muitos)

Culpo meus excessos, mas a culpa não é deles. Culpo meus olhos cerrados, meus momentos fechados. Culpo a falta de sono, a falta de fome e o excesso de nada divertido. Culpo o mal humor e o excesso de paciência com quem não precisa. Culpo o excesso culpa e de peso. Mas a culpa não é deles. É minha.

Excessos (muito poucos)

Culpo meus excessos, mas a culpa não é deles. Culpo meus olhos cerrados, meus momentos fechados. Culpo a falta de sono, a falta de fome e o excesso de nada divertido. Culpo o mal humor e o excesso de paciência com quem não precisa. Culpo o excesso culpa e de peso. Culpo o excesso de amor. E também o de dor. Culpo o excesso de querer. E o de querer cuidar. E o de querer dar mais do que posso receber. Culpo o excesso de palavras, o excesso de versos, de sentidos inversos... Aliás, culpo a inversão extrema das coisas. Culpo o excesso de extremos. Culpo sabermos tanto e não fazermos nada. Culpo o tanto que poupamos. O tanto que calamos e nos afastamos porque tudo parece demais. Culpo o excesso de tinta, de cores e novamente de dores. Culpo a quantidade absurda de novamentes... E culpo novamente o excesso do quanto já lhe disse isso – e o excesso de meios, excesso de vezes que já tentei, e o excesso de todas as tentativas de dizer algo simples. Culpo as tentativas porque elas são realmente muitas. Culpo meu excesso de memória e minha história, que delata meus excessos trôpegos da madrugada, da estrada; meu excesso de gente o tempo todo. Culpo o excesso de gente e o excesso delas em mim – e a sensação infinita do quanto isso me faz bem. Culpo em mim o seu excesso de culpa. Culpo seus excessos em mim. Mas a culpa não é deles. É minha.

Alguém em mim

Não me encontro. Não estou onde vou. Não sou. Não penso... Não estou em nada nem em ninguém. Não sou alguém que eu ainda conheça. Não há crença. Não creio mais em mim. Mas, enfim, quem crê? Não em mim, mas em alguém?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sexual Healing

Numa amizade de infância às vezes encontra-se forças duvidosamente poderosas. E é verdade o que dizem sobre um homem e uma mulher não poderem ser genuinamente apenas amigos. Existe sempre o risco iminente da natureza animal que tem dentro de um e dentro de outro sincronizar, e aí adeus! - atacam-se com fome primitiva. Pode ser que isso nunca aconteça. Mas eventualmente acontece.

Ela estava triste de uma maneira abissal e bonita. Sua tristeza era uma bobagem, mas era genuína. Era só dela. Sentia-se boba, criança, dramática. Sentia-se cansada de tanta energia disperdiçada. O cansaço era físico, químico, biológico, astral... E quando o telefone tocou insistente ela teve vontade de chorar, mas de alguma forma via aquele chamado como uma oferta de resgate.

Quando ela atendeu com voz pastosa, ele desdenhou um pouco. No fundo sentiu uma pena que lhe era até incômoda. Achava-a dramática, como toda mulher. Mas boa amiga, como poucas mulheres. E ele mesmo não estava passando tempos muito felizes. Tinha a vida cheia, mas sentia-se só. E perguntava-se, ainda sem saber direito o porquê de perguntar-se isso, se era aquilo que ela sentia também.

Ela ficava um pouco irritada ao perceber o escárnio dele ao telefone sem que ela tivesse dito muito mais do que um alô. Já estava arrependida de ter atendido, mas de repente era bom ouvir uma voz amada àquela altura. Todo o amor de todos os amigos parece tanto quando estamos tristes, e mesmo assim não consegue preencher o vazio do peito. Mas a voz dele era um alento. E lhe trouxe vontade de sorrir.

Meia hora depois ele tocava a campainha do prédio e entrava pela porta da sala ofegante dos dois lances de escada que pareciam-lhe o Everest. Deu-lhe um beijo na testa sem prestar muita atenção e foi até a janela acender um cigarro. Ela parecia mais magra. E alguma coisa nela estava divertida esta noite.

A mera presença dele ali enchia a casa de som e cor. Conheciam-se há tanto tempo e ela sempre se assombrava com o quanto a presença dele lhe fazia bem. Quando pensava nele ou tinha saudade porque às vezes o tempo dá uma atropelada na gente e ficamos sem ver essas pessoas de quem gostamos tanto... mas quando pensava nele, tinha a lembrança do loirinho de 12 anos com quem jogava bola na escola.

Ele estava olhando para ela como se pudesse ler o que estava se passando naquela cabecinha perturbada. Pediu para que ela dissesse tudo. Pôr pra fora era bom. Mas ela não estava a fim. Ele apagou o cigarro, fechou metade da janela e foi colocar uma música, porque a noite estava fresca e seria divertido rir das desgraças um do outro ouvindo música e tomando qualquer coisa alcólica, como já haviam feito tantas vezes.

Ela já sabia como aquilo iria acabar. Já imaginava a cabeça parecendo inchada de tanta ressaca na manhã seguinte e a desagradável (e absolutamente inútil) sensação de estar incomodando os vizinhos com risadas histéricas e mais altas ainda que o som madrugada adentro. Mas era justamente daquela histeria que ela estava precisando. E ficou olhando o menino loirinho colocar uma música para tocar.

Música alimenta a alma, gostavam de pensar. Álcool e cumplicidade também. E a sincronia entre eles era tão doce que era enjoativa, mesmo que ainda se comportassem como crianças de 12 anos entre si. E ofendiam-se e diziam-se coisas ridículas e infames simplesmente porque podiam. Entendiam-se assim. E ninguém mais entendia porque entendiam-se tanto. Mas ninguém ligava pra isso.

Ben Harper tocava canções suaves e poderosas usando apenas um violão. Ela amava Ben Harper e ele gostava também, sobretudo daquelas músicas acústicas. Ela parecia-lhe bem. Ele parecia-lhe confortável. Ela colocou a cabeça no ombro dele. De repente estavam fundidos no sofá. De repente estavam fundidos numa coisa só.

Sexual Healing estava lenta e delicada naquela versão do Ben Harper, alheia às bocas, mãos, roupas, almofadas do sofá e barulho de copos e o universo todo confuso no meio daquelas duas pessoas que ignoravam o fato de que conheciam-se tanto. E paradoxalmente era tudo novidade. E explosivo. E saboroso. E estranhavam-se ao trombarem os olhares. E riam-se disso.

Horas depois, exaustos e ainda incrédulos, respiravam o silêncio recente. Sonolento, ele ajeitou a cabeça para ouvir o que ela tinha a dizer. Agora entendi!, ela disse. Agora entendi o que ele queria dizer com Sexual Healing. Ele também entendia e disse a ela: Marvin Gaye deve ter praticado bastante. Concordaram: sexo é terapêutico. E riram-se da própria ruína estampada no caos deixado na sala e na amizade.

4 minutos

Senti-me como num trampolim. Olhei para baixo como quem olha com medo da água, inofensiva mas longe, de aparência tão lisa que parece dura. Olhei para os lados e a ausência do chão me fez sentir a sobrecarga do meu próprio corpo, como se ele quisesse duvidar da gravidade instável da prancha, tão longa, mas curta diante do meu medo. Demorei 4 minutos para atravessar a passagem e do lado de lá não havia ninguém esperando. Estar só é como saltar da tal prancha. E 4 minutos demoram uma vida inteira.

Prisioneiros repetidos

Ficamos aqui fechados nesse quarto escuro, nessa prisão sem celas, sem paredes, sem sentinelas, prisão que criamos nós mesmos... e estamos tão presos agora, tão condicionados a repetir os mesmos crimes, e repetir e repetir e nem notar mais toda a repetição que nos prende. Ficamos aqui fechados e não notamos que pode-se sair. Fomos nós quem criamos a prisão. Pode ter sido por medo, por razão, por não saber como dizer sim e aí continuar repetindo o não. Eu pergunto e você não me responde. E eu pergunto de novo, pois o não, mesmo repetido tantas vezes, eu já tenho.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Antes tarde

Se eu pudesse, arrancaria com a mão, com os dentes, as unhas, como faz a leoa ao caçar para alimentar seus filhotes. Se eu pudesse tirava de mim com tirania e qualquer brutalidade essa coisa boba que sinto. Sentimento inútil que não serve de nada para ninguém. Se eu pudesse, esqueceria e fingiria que nunca aconteceu, que não houve você, que não houve nada. Mas que posso eu fazer se você insiste em ocupar esse espaço que eu não te dei e você invadiu? Não sei brigar... fique aí então. Fique até cansar. Pode ficar. Porque a gente acaba se acostumando. Então quando parar de incomodar será porque você já foi. E tudo o que eu vou dizer será: já vai tarde, mas que vá bem.

Registro

O moço era alto, magro, timidamente bonito. Era bonito se olhássemos de perto, mas de longe era um homem normal, desses que a gente vê no metrô. Tinha pilhas e pilhas de cds em casa. Tentava mantê-los em ordem alfabética, mas era difícil porque ele tinha dificuldade em colocá-los de volta no lugar devido quando os tirava de lá para ouvir. Mesmo que as caixinhas ficassem a poucos centímetros de onde moravam. O equipamento de som era pequeno e poderoso, como costumam ser esses equipamentos hoje em dia. Mas ele ainda sonhava com o que tinha antes, que na verdade nem era seu, mas da ex-mulher, Priscila, que conseguia ter o mesmo gosto exagerado que ele por música e consumo obsessivo de tudo ligado ao assunto. Quando se separaram foi um drama. Não que tivessem brigado, xingado e magoado muito um ao outro. Nada além do normal que toda separação tem. Mas separar os discos, cds, dvds, vhs (quem ainda via isso hoje em dia? nem videocassete existe mais!) e livros, revistas, cartazes e outra pequena infinidade de coisas inúteis e queridas foi certamente um dos momentos mais difíceis de sua vida. De repente sair da vida de Priscila era mais fácil que fazer a mudança da casa dela. Mas ele ia embora com carinho. Com Priscila ele havia aprendido coisas muito boas - o gosto por The Clash, por exemplo, que ele nunca antes tinha conseguido sacar direito, e a prática (ou ao menos tentativa) de organizar as coisas em ordem alfabética. Menos os livros. Os livros ele continuava organizando por assunto e tamanho. Para os livros o cérebro dele funcionava de outra maneira, de um jeito que ele nunca conseguiu explicar e Priscila nunca se incomodou muito em entender. Cada um é do jeito que é, dizia ela, displicentemente. Mas gostava dela mesmo assim. Se ela desse mole ele ainda lhe daria uns beijos facilmente. Mas só uns beijos porque Priscila já lhe era impossível de se conviver. Por mais amor que houvesse as manias dela deixavam-no irritado. E aquele jeito sempre feliz demais causava-lhe uma desconfiança de que ela se esforçava demais para sempre estar tão bem. E ainda que não fosse a intenção dela (ou era?) ele se sentia pressionado a sempre estar tão bem também. O que seria absolutamente insignificante se ainda estivessem apaixonados. Mas já não era mais o caso. A obsessão nova dele chamava-se Julia. Sem acento, como ela gostava de dizer. E Julia gostava de Led Zeppelin. E nunca mais ele conseguiu ouvir Dazed and Confused sem pensar nela. Conheceu Julia na festa de um amigo de uma amiga de Julia, que nem ele nem ela conheciam direito. Era uma festa à fantasia e nenhum dos dois estava fantasiado. Possivelmente não teriam se visto se lá pelas tantas ela não lhe desse uma cabeçada no cotovelo quando a festa inteira pulava enlouquecida gritando fuck you I won't do what you tell me. Poxa, você me deu uma cotovelada que quase me matou, disse ela meio rindo, meio chorando, coçando a cabeça descabelada no final da sessão rock n'roll da festa com uma mão e com a outra empurrando a barriga dele como se já se conhecessem há muito tempo. Naquela noite, depois da discussão sobre quem bateu em quem, depois de uns dois cigarros no meio da rua (os lugares agora expulsam os fumantes temporariamente dos lugares...), depois de uns três uísques cada um, ainda pularam muito mais ouvindo AC/DC, Twisted Sister e outros clássicos e lixos divertidos que ele não conseguia mais lembrar. Julia praticamente pulou no seu pescoço. Ele adorou. Ia mesmo pular no pescoço dela. Mas gostou de deixá-la fazer o movimento primeiro. Julia tinha o beijo mais gostoso que ele havia experimentado no último ano inteiro. Beijando Julia ele conseguiu pensar apenas em Julia, aliás, beijando Julia ele conseguia evitar de pensar em qualquer outra coisa. E há muito tempo ele não se sentia assim. Talvez desde Priscila. Mas isso há uns 5 anos atrás, quando se conheceram. Porra, porque será que ele não conseguia manter o mesmo entusiasmo do começo das coisas? Ninguém conseguia, ele pensava. E no segundo seguinte voltava ao pensamento que estava tendo antes sobre Julia - era bom sentir aquele entusiasmo de novo. Depois da festa ele deixou Julia na porta do prédio dela. Ela não o convidou para subir, nem ele se ofereceu, mas pegou o telefone dela e ligou logo em seguida para que ela tivesse o dele. Não subir era a última de suas preocupações até o momento em que Julia desceu do carro e bateu o portão do prédio. Estavam um tanto bêbados, então melhor deixar para outro dia, pensou ele tentando convencer-se (inutilmente) de que em outra oportunidade seria melhor. Falaram-se de novo só depois de alguns dias. E depois saíram e beijaram-se loucamente e quando Julia o convidou para subir ele não entendeu como é que pôde deixar isso passar em branco naquela primeira noite. Saíram várias outras vezes. Ela sumia de vez em quando. Ele sumia de vez em quando. Mas ele continuava com ela na cabeça e tentava manter uma certa frequência em vê-la. Um dia na casa dela ele pegou o cd do Mothership que estava em cima da mesa, sobre uma pilha de uns outros 5 cds, olhou em volta e viu a pequena estante com mais uns cento e poucos cds talvez e perguntou a ela se eles estavam em ordem alfabética. Não, eu tenho poucos cds, ela respondeu e explicou que preferia ter as músicas no computador e no ipod e os cds que estavam ali eram os que ela considerava essenciais e estavam organizados por banda, numa ordem meio própria. Os que estavam em cima da mesa estavam ali para guardar. E o Mothership era uma das coisas que ela mais ouvia na vida. Jura? Ele perguntou parte surpreso e parte seduzido pela explicação toda minuciosa dela. Porra, Led Zeppelin era uma de suas bandas preferidas... E qual dos dois você ouve mais, o um ou o dois? Ele perguntou com o Mothership na mão, sem conseguir disfarçar a empolgação. Ela respondeu que ouvia igualmente os dois e riu – e ele adorava aquela risada dela, mostrando muitos dentes. E meio minuto depois ela completou dizendo que ouvia igualmente os dois mas gostava mais do um porque tinha Dazed and Confused. E então passaram a noite ouvindo o Mothership muito alto, como ela gostava. Ele se sentiu confortável na casa dela. Gostou de passar a noite. E chacoalhou a cabeça tentando afastar os pensamentos indevidos de planos ridículos de futuro no dia seguinte. Ele tinha essa mania de achar que um dia encontraria a mulher ideal. Mas a verdade é que não queria que isso acontecesse agora. Estava solteiro, precisava aproveitar outras coisas. Coisas que a gente só faz solteiro. Mas estava meio que hipnotizado por Julia. Pensava nela com uma constância chata, que lhe tirava um pouco a concentração das coisas. Pensava nas músicas todas que queria ouvir com ela. E ficava um pouco irritado com o sumiço eventual dela. Achava um pouco de descaso e talvez falta de interesse por ele. E chacoalhava a cabeça de novo para afastar o pensamento, tentando convencer-se de que era melhor assim, porque a última coisa que ele queria era que a garota grudasse nele bem agora. Estava com problemas em administrar as emoções contraditórias que Julia lhe causava. Numa determinada manhã, de novo na casa dela, acordou com Chris Robinson cantando canções que ele não conhecia. Isso é Black Crowes? ele perguntou a Julia que estava na cozinha. Sim! É o disco dois do Warpaint, ela respondeu apontando a caixinha em cima da mesa. Ele pegou a caixinha e foi para a sala. Sentou-se no sofá e ficou lá ouvindo, ainda sonolento, músicas que ele não conhecia. Uau! Como posso nunca ter ouvido esse disco? Ele perguntou a ela em tom confessional, quase culpado, já que gostava tanto daquela banda e nunca tinha ouvido o cd que era bom pra cacete. E com uma xícara de café na mão ela lhe explicou que também tinha conhecido aquele disco recentemente, depois de ver o dvd na casa de um amigo. Era um sábado de manhã e ela o convidou para ficar. Passaram o dia entre o sofá, a cama e os dvds e cds do Black Crowes – que coisa genial ela ter tantos cds do Black Crowes... No fim da tarde Julia disse a ele que tinha adorado o dia, mas tinha um compromisso a noite. Ia ver um filme da mostra de cinema com um amigo que tinha comprado ingresso para ela. Não podia convidá-lo. Tudo bem, ele pensou, então depois a gente se fala. Eu te ligo amanhã, ela disse. Ele foi para casa, mas antes passou numa loja no caminho e comprou o Warpaint, lindamente embalado num pack promocional com cd e dvd, como ela havia lhe indicado. Nos dias que se seguiram ele ouviu todos os discos que tinha do Black Crowes. E contraditoriamente tentou evitar um pouco pensar em Julia. Ele estava interessado demais nela e ela parecia não ter o mesmo interesse por ele. Pelo menos é o que ele achava, mas não estava a fim de perguntar. Passaram-se alguns dias. Ele não ligou nem mandou mensagens. E ela também não. Ele já estava distraído com outras coisas, mas ainda pensava um pouco em Julia. Um pouco a mais do que gostaria. Mas não ia ligar. Ela tinha dito a ele que ia ligar no dia seguinte e nunca ligou... aquilo o deixava meio puto. Um orgulho bem idiota, admitia. Passaram-se algumas semanas. Um ou dois meses talvez. Paul Mccartney veio para o Brasil e todo mundo só falava nisso. Ele viu o segundo dia da apresentação. Lembrou-se da última vez que havia visto, em 1993, e o quanto tinha sido lindo. E mais uma vez o melhor beatle que já existiu fez um show maravilhoso – a discussão sobre o melhor beatle era sempre calorosa entre ele e Priscila, a ex-mulher, que dizia com muito fervor que o melhor beatle era o George e ficava irritadíssima com o escárnio dele ao dizer que o fantástico George não tinha a mesma competência, talento e sorte do Paul. – Priscila tinha visto o show no primeiro dia e ele não pôde deixar de pensar muito nela quando Paul tocou Something. A melhor música do show talvez. Mas pensou em Julia ao ouvir Let me roll it, My love, Eleanor Rigby, Band on the road, Paperback Writer, Helter Skelter e talvez mais algumas outras. Chacoalhou a cabeça de novo no dia seguinte, ao pensar novamente em Julia e no quanto queria vê-la. Voltando pra casa, caprichosamente, o rádio do carro começou a tocar Rock and roll. Porra, porque será que as rádios sempre tocam o lado A dos discos? Podiam muito bem tocar Dazed and Confused, por exemplo. Ele chegou em casa e foi procurar o Mothership para ouvir. Estava meio por cima da pilha de cds desorganizados em cima da mesa. Ele pensou por um segundo que nunca mais iria conseguir colocar ordem de novo naquela bagunça... Quando abriu a caixinha, para seu desespero, o disco um não estava no lugar. E ele não queria ouvir o dois. Ele queria ouvir o um! Como assim o disco não estava lá? Ele nunca guardava os cds nas caixinhas erradas... Ou será que guardava? É, de vez em quando pode acontecer. Que merda, pensou. E já derrotado pela falta de vontade de procurar o disco desaparecido, ele resolveu então ouvir Black Crowes. Encontrou o Warpaint com algum esforço, soterrado por outros cds, misturados aleatoriamente sobre a mesa que já não tinha mais espaço para nada. Abriu a caixinha do Warpaint e encontrou lá dentro o Mothership um. Meu deus, então está aqui! Respirou aliviado e não pôde deixar de rir da própria confusão. O Warpaint por sua vez estava na caixinha do By your side e nesse momento ele deu-se conta de como sua cabeça confusa atuava de maneira completamente óbvia. Pensou em Julia. Colocou o Mothership um para tocar muito alto, sentou-se no computador e escreveu para ela um email longuíssimo, contando sobre como havia pensado nela no show do Paul, nas últimas semanas em que não se viram nem se falaram, na confusão sobre a troca de cds nas caixinhas e em todas as coisinhas idiotas que ele adoraria ter dito a ela e não tinha tido chance... Ele escreveu, leu e releu a mensagem muitas vezes, mas não enviou. Sei lá, algumas coisas funcionam muito bem na nossa fantasia, mas não são tão simples assim de serem colocadas em prática, pensou. Leu o email mais uma vez e viu ali coisas muito boas. Coisas que talvez ele pudesse usar em alguma canção. Leu uma última vez para se despedir e o apagou. O computador, desgraçado, o desafiou com a pergunta clássica: tem certeza? E sem pensar muito no assunto ele respondeu que sim. Apagou o email do draft e Julia da memória. Não queria ter mais nenhum registro daquela história. Mas nunca deixou de pensar nela toda vez que ouvia Led Zeppelin.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Amanhecem e anoitecem

Quando eles se afastam, percebem a falta. Quando acham que tudo está perdido, é quando se encontram – na falta que se fazem. Porque estão em todos os lugares, nas canções, no jeito de abrir os olhos de manhã, na lua que teima em ficar cheia tão depressa. Tantas coisas em toda parte... mas há coisas que não foram feitas mesmo para conviver, não é? Às vezes sol e lua se encontram num breve momento, mas eventualmente um apaga o outro no céu.

sábado, 20 de novembro de 2010

Viajante idiota

Me senti muito idiota. Imbecil mesmo. Ruim a gente se sentir assim... completamente sem valor. Sertir-se pequeno. Animalzinho pior que inseto, esmagável, frágil, insignificante. Senti-me de uma ridicularidade que eu preferia mesmo não passar, não ter que admitir. Obviamente é sua indiferença ou sua evidente preferência por outra coisa que me faz sentir-me assim. Então pronto, que posso eu fazer? Tem que deixar de ser idiota aos pouquinhos, curar a ressaca devagarinho, tomar muita água para reidratar o organismo. E muito ar para refrescar a alma exausta, abusada, tropeçando pelas delícias e as amarguras de uma jornada de extremos.

Conselho do horóscopo

Admire a Lua Cheia nestas noites e compreenda que ela lhe concede o dom da renovação.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Outro dia outra vez

O sol caía de um lado. A lua surgia, quase cheia, de outro. As duas coisas aconteciam simultaneamente. Em São Paulo os 180 graus do céu são muitíssimo reduzidos e não se observa facilmente o sol e a lua despedindo-se. É uma visão romântica de uma cena incomum. A banalidade da natureza pode ser chocante e poética.

Sinônimos antônimos

E o que é o tempo se não a sincronia que faz tudo no universo girar junto? E o que é a sincronia se não o ponteiro longo do relógio andar mais rápido que o curto e mesmo assim os dois formarem alguma hora? E não é assim que se faz o tempo - de algumas horas, alguns dias, alguns anos sincronizados num calendário?

Grato silêncio

Falava muito. Mas naquele dia estava quase muda. Guardou no silêncio as palavras que tinham mais poder ao não serem ditas. Deixou perdidas no vácuo de sua mudez todas as possibilidades. E entregou ao universo sua gratidão calada – gostava de agradecer ao universo TODAS as coisas que ele lhe ofertava. As boas e as más. Com as más, por exemplo, havia aprendido (em boa hora) a ficar quieta.

Thank you note

Pedi para te aprender. E tudo o que você me ensinou foi como ficar inteira estando tão só. Foi uma lição válida. Obrigada.

Um pouco

Tinha o sonho de ir a lugares. Queria ir ao México. E também à Roma, Índia, China, Grécia, Rússia, Prússia, Passárgada. Tinha o sonho de conhecer muitos lugares, muitas pessoas, muitos amores. Mas depois de um tempo deu-se conta de que muito às vezes é um pouco demais. Já tinha andado muito, amado muito e percebido que quantidade e qualidade não são coisas complementares. Agora seu sonho era ter apenas um pouco daquilo que realmente importava. Estranhamente, porém, isso agora parecia pedir demais.

Falsa verdade

Vou fingir que estou feliz já que hoje é sexta-feira e está sol. Vou fingir que estou feliz para você não achar que estou triste por sua causa. Vou fingir que você poderia se importar com isso. De repente assim eu fico feliz de verdade.

Sexta afora

Era sexta-feira e o dia estava lindo. Pelo menos foi isso o que ele pensou quando olhou para fora, pela janela do carro, e algo incomodou seus olhos pretensamente protegidos pelos óculos escuros. Ele se sentia escuro. Era sexta e ele não gostava de usar roupas pretas neste dia. Havia ouvido de alguém que sexta era dia de todos os santos e o os santos não gostam de cores escuras. Mas a sexta dele, apesar de ensolarada lá fora, estava escura lá dentro. E ele não sabia exatamente o porquê. Sentia-se cansado. Exausto de perguntas, dúvidas pequenas, pequenas incertezas... sentia-se exausto da pequenez do mundo e das pessoas. Pensou na dezena de oportunidades que são despejadas diariamente na nossa frente e que desprezamos, sem prestar o mínimo de atenção. Pensou no futuro e em outras sextas-feiras possivelmente ensolaradas, mas não conseguiu ver nada. Pensou que um dia bonito às vezes é só um dia bonito. E nem importa que seja sexta-feira.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Narciso

Se procurares bem vais ver que há algo ali no espelho que te desmente. Vai ver que seus olhos tristes contradizem sua cabeça dura, sua elegância fajuta, sua calma falsa. Se procurares bem vais encontrar o que ando sentindo falta em mim.

Parte

Hoje havia sol quando abriu os olhos, mesmo preferindo que eles pudessem continuar fechados. Sentou-se devagar na ponta da cama e tentou sentir-se parte de algo, mesmo que lá no fundo sentisse que, na verdade, estava à parte de tudo. Mas hoje havia sol desde cedo. E leu o céu azul, salpicado de nuvens dispersas e velozes, como se fosse uma mensagem do universo dizendo que era hora ir. Sorriu e partiu.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Better days

Ouvi esta canção e ela me fez pensar em você. Me fez pensar naquela história que ensaiamos escrever. Nos momentos aos pedaços, migalhinhas de felicidade que tivemos, valiosos se sabemos olhar para eles - como as pedrinhas preciosas que podem ser falsas ou verdadeiras. A canção me pareceu verdadeira. Me lembrou você porque fala justamente desses momentos preciosos, que a gente não enxerga direito porque fica misturado com o que acontece todo dia - então sem perceber acabamos achando que as coisas que acontecem todo dia são mais importantes que as tais migalhinhas, recolhidas na madrugada, num dia de bebedeira, numa foto banal, num apelido infantil, numa manhã de sábado meio sem querer... Tudo bem, não era exatamente disso que falava a canção. Ela me lembrou você porque falava de dias melhores. De encontrar as coisas certas, na hora certa, e esbarrar em diversas coisas erradas pelo caminho. A canção fala sobre errar. Fala de descer ao fundo do poço e achar que está baixo demais. E descobrir que é possível ficar ainda mais baixo que isso. E então fala dos dias melhores - que eles eventualmente chegam, mesmo que aos pedaços. Fala sobre não sermos inteiros até enxergarmos que nunca seremos inteiros - porque se você está completo, já rodou todas as estradas, viu todos os peixes, beijou todas as bocas... então o que te resta? A canção fala sobre quando nos sentimos parte de algo. E também sobre quando nos sentimos à parte de tudo. Os meus dias têm sido cada vez melhores e eu tenho buscado fazer parte das coisas que me fazem bem. O que posso dizer? Sempre me achei uma pessoa de sorte... E acho que me traz sorte compartilhar isso. Acho que me traz sorte enxergar que as coisas e as pessoas e as oportunidades me são quase sempre boas e quando elas não são, acho que tenho sorte em perceber que quase sempre elas são. A canção me lembrou você porque fala sobre tentar e falhar. E tentar mais. E insistir. Não nos erros. Mas no medo de errar mais e paralisar. No medo de sentir medo. De sabotar a possibilidade de fazer dar certo. De ir quando temos que ir. E ficar quando vale a pena. A canção me lembra você porque fala sobre ser livre - e sobre isso não ser uma estrada sem fim, mas justamente sobre poder seguir sem se preocupar com ele. Sobre aproveitar a companhia porque ela existe, sem ser obrigado à ela. Sobre abrir espaço para os dias melhores e o que pode vir com eles.

Amar de leve

Bom mesmo seria poder amar de leve. Sem pressões ou obrigações. Sem esperar do outro a mesma coisa, a mesma dedicação, a mesma adoração ou atenção e cuidados. Bom mesmo seria a gente poder entregar nosso amor numa bandeja ou numa caixinha, como um presente de aniversário. Mas não esperar retorno. Não esperar que o outro lembre-se que também precisamos receber presente de volta, mesmo que seja só de vez em quando. Há gente que não sabe amar. Que se sabota sem querer. Há gente que não sabe ser feliz simplesmente porque não sabe. Gente que diante da possibilidade de ser feliz (ou amado) se apavora. Gente que não sabe compartilhar sempre. Que se esforça para mostrar que se importa, mas de repente mete os pés pelas mãos e complica tudo. Então, bom mesmo seria a gente ter discernimento para saber lidar com essas pessoas - pegá-las pela mão, mostrar a elas que é mais fácil do que parece, abraçá-las devagarinho e esperar o abraço fazer efeito. Mas não se pode forçar o amor do outro. O amor do outro é do outro. E ele nunca vai ser seu só porque você o deseja tanto. Bom mesmo seria a gente ter tudo assim tão claro sempre e não se sentir tão ameaçado ou sensível a esta "falta de amor do outro". Bom mesmo seria a gente amar de leve e isso bastar.

A primavera dela

De todas as coisas, o que ele mais apreciava na companhia dela, era o seu jeito gracioso de dizer as coisas. Alguma coisa nela o fazia rir. Não era um riso de graça, apenas. Era um riso fácil, como se ela conseguisse aflorar nele sentimentos escondidos na dureza do dia a dia, na crueldade do mundo real. Quando ela lhe dizia aquelas coisas engraçadas (quando às vezes nem ela mesma enxergava tanta graça) era como se descortinasse uma janela para outro mundo, onde era sempre primavera.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Me erra

Falhas?
Migalhas de imperfeição
Supostas testemunhas do medo
Ou não?
Ou apenas tentativa de acertar?
E não seria o medo de errar
Esse entrave no tempo
Que impede às vezes
A pura vontade de ir?
Precisamos errar mais
Chorar de menos, rir demais
Errar é acertar em etapas...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O tempo todo

Há tempo de rir e tempo de chorar. Tempo de duvidar e perdoar. De estar junto e de estar só. De notar o que é belo e o que é feio e de aprender a conviver com ambos, porque não há só bondade e alegria na vida. Mas para o amor não há tempo certo. Fácil ou difícil, há amor de todas as formas e cores. E algo me faz crer que, se há amor, qualquer coisa é possível - para amar temos todo o tempo do mundo.

sábado, 6 de novembro de 2010

Outros

Vou ali e já volto. Ficar aqui me dá nos nervos. Pode ser só desapego, mas penso que é mais. Não ter parada significa adaptar-se a outros portos. E em outros portos sempre há outros amores.

Funny thing

It's such a funny thing. Every time I think I can be yours, you just can't be mine...

Paraquedas (pré AO-1990: pára-quedas)

Se eu falar demais então, me interrompa. Me corrija. Me dirija. Me diga um pouco o que eu tenho que fazer. Eu nunca quis saber. Primeiro porque achava que já sabia. Depois porque vi que não sabia porra nenhuma, mas achava divertido descobrir. E um pouco mais depois, quando a adrenalina baixa, nada é mais tão divertido assim. Vou até discordar das suas sugestões - ei, uma coisa de cada vez, né? - mas quero ouvi-las mesmo assim. Elas me fazem pensar. E quando penso sou bem mais feliz.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O que temos que fazer

O dia mal começou, o céu acabou de mudar de cor e me parece cedo demais para algumas coisas e tarde demais para outras. Me parece que o tempo anda lento. Me parece que falta alento para tanto engano... Me parece um engano eu estar aqui e você não. Me parece um erro pensar assim – porque mesmo você não estando aqui, há você em cada lacuna desta noite enganada que acabou, em cada pausa entre as notas deste solo. Me parece errado pensar que tudo está perdido só porque não me encontro ainda em você, já que tudo está tão impregnado de você em mim.

E nesta pausa que fizemos – um intervalo caprichoso dos destinos, como aquele espaço que existe entre as linhas paralelas que se encontram no infinito -, nesta pausa que parece infinita, há coisas demais que não foram ditas, que não foram feitas e confesso que me cansei delas. Me cansei do que não foi. Fizemos o que tínhamos que fazer e agora é hora de olhar para frente. O dia mal começou e ainda é cedo. Temos o dia todo. Vamos fazer o que há para ser feito. E eu penso que deve ser assim, como num solo – não há regras. As notas de encaixam sem esforço, desde que se respeite a natureza de cada uma delas.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Novilúnio

Não há lua no céu. Não há vento balançando as folhas. Não há barulho, apenas um avião ao longe, o freio de um carro talvez na rua de baixo. Não há palavras suas. Nem as gentis, nem as minerais - aquelas, longas ou curtas, que pesam uma tonelada cada. Há um novilúnio acontecendo e a escuridão aqui dentro treina o olhar até que ele se acostume que nem sempre é da luz que vem a clareza.

Monólogo

Quis escutar o que você tinha a dizer. Quis ouvir, juro. Quis entender, quis aceitar, quis saber o que fazer com essa confusão toda. Mas não sei... Há coisas óbvias. E há coisas que por mais óbvias que pareçam, não me fazem sentido. Então diga todas as palavras que você puder. Todas as que você quiser. Com todas as letras, pausas e vírgulas. Não prometo te entender, mas vou sempre ouvir até o fim. E não pense que esse é um exercício fácil. Ouvir até o fim é uma das coisas mais difíceis que já tentei fazer...

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Por sua causa

Rezou para que seus santos lhe deixassem forte. Pediu piedade e permissão. Partiu para o ataque com a frieza dos orientais quando vão para a guerra, com a mesma devoção dos kamikazes, com o mesmo desprezo pela vida que os hindus têm diante do próprio karma. Sublimou o medo, que de nada iria lhe adiantar. E, na ausência dele, deu-se conta: somos mais fortes e capazes do que supomos; uma pena não sabermos ao certo o que fazer com isso.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sono roubado

O cansaço, crônico, não lhe permitia relaxar. Não tinha sono. Estava exausto e não podia dormir. Não procurava dormir tampouco. Não fechava as cortinas, não deitava na cama na hora provável, não sentia-se confortável com os travesseiros. Dormia quando o corpo pifava. Sentia-se um cão de guarda. Exceto pelo fato de que não sentia-se guardando nada.

Partida

Está insuportável - ela lhe disse sem que ele pudesse esperar, sem claquete, sem chance para argumentação. Não há saída, me desculpe - falou com a voz baixa, quase sem dizer, e ainda assim pareceu-lhe que estava gritando, que todos podiam ouvir. Me desculpe, tenho que ir... - ela disse e se foi. Bateu a porta de leve e ele ficou ali, imóvel, com um copo na mão, o peito vazio e as coisas todas parecendo grandes demais para sua existência pequena.

Olhar de menina

Ela olhava e via além. Via a beleza que os outros deveriam (ou poderiam) ver também. Mas eles não entendiam como ela, não sentiam da mesma forma aquele músculo ali, sob a costela, dolorido, latejante, incansavelmente pulsante diante daquela beleza que parecia tão comum, tão discreta que quase não era notável. Seu olhar transcendia a casca fina das coisas, mas sua casca de menina também era fina e frágil. E pouca gente podia entender aquele seu olhar.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Reflexos

Olhou-se no espelho como quem encara um velho amigo. Olhou-se com desconfiança, como se o amigo lhe traísse, como se aquele no espelho fosse alguém que não conhecia mais, capaz de atrocidades ou simples mesquinharias que não podia entender. Olhou-se no espelho uma vez mais para tentar se encontrar. Olhou-se novamente e concluiu que nunca antes sentiu-se tão perdido.

Broken hearts apart

Does he always go back to her? Does he flies throughout the world, see so many, know so much, but in the end, end up running into her arms? Will she be always waiting? Always wanting and wishing him back? Will she resist the world, the diversity, the temptations and variations? Will she resist the time without him and sometimes without hope? Does she know how much he misses her and try so hard to patch his heart with meaningless emotions? Does he know she does the same? Will they ever know that this is what keep them together? If I could write this story, I would cut the crap and discard all the tears and the shouts. I'd maybe keep some comes and goes, cause life must have its high and low tides, but I'd rather simplify and make them just good with their broken hearts apart or together - and then they would be together even when apart.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Apenas espaços

Existem esses espaços. Esses que parecem vagos demais, largos demais, longos demais para suportar. Existem esses espaços e a medida deles não têm escala. Seriam espaços vazios, lacunas à esmo, não fossem cheios de dúvidas, sonhos talvez, pedacinhos de esperanças que nem se sabe se possíveis, passíveis de alguma ação. São como a pausa entre uma nota e outra, que você não nota, mas está ali e sem ela não há música. Apenas espaços.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sabor de vento

Sou sensível ao vento. Ao mesmo tempo que gosto, me incomodo. O vento me emociona, mas me questiona a resistência também. Há o vento que vem do mar. Há o vento que vem do mato. E há o que vem da velocidade. O vento me é como a pimenta e a saudade – me tempera ou me envenena. Um amante indócil, cujo gosto do beijo, violento ou doce, é sempre surpreendente.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Excessos

De repente ficou vazia. Nenhuma vontade, nenhuma saudade, nada. De repente parou de sentir as coisas que sentia. Parou de achar ou duvidar. Mas de algum modo não foi um alívio. De repente não sobrou nada! E nada era muito pior que o excesso anterior.

História torta

Acordou incomodado, sem saber exatamente se por causa do som alto (um pouco impróprio para aquela hora da manhã – não que ele se importasse com isso) ou se por causa do cheiro levemente doce que invadia a casa, amarelada pela luz gentil da manhã, fresca com as janelas já todas abertas e com as cortinas balançando com o vento sossegado da primavera.

Acordou incomodado, mas sorriu ao perceber, sem precisar pensar ou ver, o que estava contecendo: era domingo, ela estava sentada no chão da sala vestindo aquela camiseta verde dos Stones, a torta de blueberry morna sobre a mesa baixinha no centro da sala, o jornal espalhado pelo chão, Warren Haynes e sua voz pigarrenta ecoando nas caixas de som.

Ele sorriu. Deu-se conta de que era mais tarde do que costumava acordar. Mas era domingo. Ela estava na sala comendo sua torta preferida com as mãos, ignorando a colher que sempre colocava no prato e depois se esquecia de usar, ignorando a ordem das coisas. Ele não precisava ver a cena para saber que era assim que ela acontecia.

Loud

You don’t feel how I feel. How could you? I don’t see what you see – how could I? But we hear it all. We hear it loud. We hear more than we breathe. We don’t breathe properly. And we don’t know how to say, how to translate all the sensibility we naturally have to look each other and say with no words all the funny, the sad, the little or the great things. We’re good in listening the world loud. But we’re no good in hearing each other words. Whispered or shouted. So let’s hush. Let’s chill. Let’s enjoy the ride, the sounds of the wind, the endless music of life. Let’s hear it loud and say no words for now. And maybe then we’ll be safe.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pele verbal

Disse-lhe tudo, com todas as letras que sabia. Disse palavra por palavra o que conseguiu dizer, o que não engasgou, o que subiu-lhe queimando, mas veio verdadeiro e pronto para ser dito, cuspido, apresentado cara-a-cara a quem lhe causava toda aquela dor. Não adiantava. Doía nela. E a dor que sentia, não era curada com palavras. Curava-se só. Com o tempo talvez. Com o tempo que já não tinham mais. Calou-se, portanto.

Não sou

Não sou quem você pensou
Não me desculpo
Não me culpo
Não sou quem você precisa
Não precisa
Você não precisa
Não é fácil como as coisas são
Como as coisas estão
Como podemos ser
Não é fácil ter
O que temos
E ao mesmo tempo não podermos
Expô-las sem expormo-nos
Sem escomungarmo-nos
Porque o que somos
É vil

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Câmera lenta

Viu a cena acontecendo em câmera lenta. A rajada de vento frio entrou feroz pela janela, espalhou os papéis e fez o vaso delicado espatifar-se sobre a mesa de mármore, atirando com violência exagerada as angélicas pequeninas ao chão, misturadas com drama aos cacos de vidro molhados e disformes, um caos que fez seu coração disparar. Que bom era sentir o coração disparando outra vez. Mesmo em câmera lenta.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Amor que vive

Eu queria sentir por você uma coisa calma. Eu queria construir tudo com tempo e delicadeza. Queria que fosse tudo devagar, para absorver aos poucos, para aprender por etapas, para que os planos chegassem aos pouquinhos e se realizassem na velocidade média do relógio - sem ansiedades, atropelos, desesperos, noites mal dormidas. Ou interrompidas. Queria que fosse sem dor, sem decepções. Queria emoções suaves, verdadeiras, mas estáveis.

Meu amor, idealizo assim: um passo de cada vez; capítulos bem escritos, palavras bem medidas, melodias simples e poderosas.

Mas meu amor, realmente, não pode ser assim. Não sei ser devagar. Como devagar, bebo devagar e há muitas coisas que gosto e consigo fazer devagar. Mas amar, não. Amo depressa. Amo com a pressa de quem tem muita sede ou muita fome. Quero virar o copo, quero comer o prato inteiro de uma vez. E quero mais. E mais. E mais. Quero dormir e acordar amando. Quero perdão todos os dias. Quero tesão todos os dias. Quero o frio na barriga o tempo inteiro. Não importa que isso seja difícil, impossível até. Quero assim. Não quero fim. Quero mais. Quero inteiro. Quero tudo. Quero que me queiras, que não viva sem mim, que se importe, que me corteje, que cuide, que me conte histórias, que leia para mim, que me pegue no colo, que me ponha para dormir. Que me ame depressa também. Que não me sufoque, mas que me beije até me tirar o ar. Quero compartilhar seu ar. Quero que você me respire. Que me inspire. Que eu te inspire. E que você me veja como eu sou.

Eu queria te amar com calma e tempo, de maneira adulta e coerente. Mas não posso. Meu amor é doente, urgente, não pode ser contido, disfarçado, reprimido. Meu amor é selvagem e nasceu para correr até cansar. Não posso domesticá-lo nem eternizá-lo. Meu amor nasceu livre. Ele é complexo, raro, feroz. Há que se saber lidar com ele. Não que ele seja difícil, mas como tudo o que é imprevisível e bravo, há que se saber lidar; há que se saber que não há como domar, querer que ele seja como queremos que ele seja. Meu amor é o que é, na hora em que quer, na velocidade que consegue ser. E confesso que até queria que ele pudesse ser diferente, que eu pudesse moldá-lo ao ideal e ao conforto do que costuma ser a medida dos amores por aí, mas admiro e aceito como ele o é. Meu amor não nasceu para esperar; nasceu para amar de maneira ilícita, explícita. De outra forma não ama, sofre. De outra forma não vive, morre.

Cura

Sentiu-se ofendido com o que ela dizia. Sentiu-se ferido com sua dureza impiedosamente despejada na sua frente, de forma escancarada para quem quisesse ver. Sentiu-se exposto e diminuído. Sentiu-se ridículo. Lembrou-se do quanto somos ridículos ao amarmos de maneira incondicional mesmo aqueles que têm uma capacidade infinita de nos ferir com apenas uma palavra de desamor. Sentiu-se desarmado, encerrado. Mas disposto então a recomeçar. A cura às vezes é longa e o perdão um remédio amargo que temos que tomar com esforço e esperar com fé até que a febre baixe e possamos sorrir novamente.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Melhor

Não há melhor. Não há igual. Não há porquê, nem portanto. Não é porque quero ou porque posso ou porque acontece de ser assim. Acontece e pronto. E só por isso vou te dizer mais uma vez: não é por isso que te amo. Não é. E eu, na tentativa de sempre explicar tudo, me esqueço. Mas não me esqueço que não é por isso. Te amo só porque te amo. Te amo porque isso faz de mim alguém melhor. E só.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Simples ou não

Não me sobrou nada para acreditar. Não me sobrou dúvida para contestar, nem contentar o que tentava equecer; o que eu disfarçava ser menor, o que eu supunha distante, disforme, incerto e improvável. Mas não. Não complique: é tudo tão simples. Não complique - nunca vai ser simples. Têm coisas que são apenas assim. Simplesmente complexas.

sábado, 2 de outubro de 2010

Invasões bárbaras

Tens permissão. Não precisa bater, a porta está aberta. Estamos prontos para a invasão. E ao mesmo tempo não estaremos prontos nunca. É como a chuva que cai com mais força do que supúnhamos: vira o guarda-chuva ao contrário, molha mais do que devia, incomoda. Mas é bom. Traz ventos novos, cheiros novos, inicia outros ciclos. Então deixemo-nos invadir de forma bárbara. Há brutalidade e delicadeza em tudo. Temos apenas que permiti-las.

sábado, 25 de setembro de 2010

Falso haikai

Não sou de poucas palavras
Não sou nada demais
Somos o quê, ademais,
Senão pequenos animais?

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Plano de fuga



Era uma tarde morna, dessas de outono carioca, com temperatura acima dos vinte e cinco graus. A agência de propaganda estava fervilhando, com várias reuniões em curso ao mesmo tempo e gente transitando pelos corredores, que eram amplos e iluminados por causa das salas envidraçadas que os circundavam.

De repente todos pararam de falar para ouvir a gritaria que vinha de uma das salas. Izadora, em pé, com o telefone numa mão e gesticulando freneticamente a outra, falava aos prantos:

- Como assim? Meu deus... mas matou como? Matou como? Como assim tem sangue espalhado pela cozinha toda? Ele pegou a Lola na cozinha?! Ai meu deus... eu sempre disse que esse monstro ia acabar matando todo mundo, não disse? E o Hugo? Pelo amor de deus, não me diga que ele matou o Hugo também...

Todos estavam assustadíssimos, ouvindo atentos o que Izadora dizia, tentando entender o que estava acontecendo. Mas ela, histérica, não conseguia dizer as coisas calmamente. Estava recebendo as informações ainda e só repetia, histérica e desesperada, as palavras que ouvia.

- E onde é que ele está agora? Ninguém o segurou? Ninguém tentou fazer nada? Como é que pode? Eu sempre disse pro Márcio que ele era um monstro, um doente, que ia acabar matando todo mundo... E o Hugo? Alguém precisa saber do Hugo, tadinho. Se ele matou o Hugo também eu vou bater tanto nele. Vou matar de tanto bater nele!

Izadora falava e chorava. Chorava e gesticulava. E quando alguém conseguiu sair do estado catatônico que se generalizou na agência, trouxeram-lhe um copo d’água e ela finalmente desligou o telefone. Trêmula, tentava beber a água e explicar o ocorrido:

- O Otto, aquela besta, pegou a Lola e estraçalhou a pobrezinha... A Joana disse que tem sangue espalhado pela cozinha toda. Ela disse que o Hugo começou a gritar quando viu o Otto atacando a Lola, mas quando ela correu já não deu mais tempo de fazer nada. Ela trancou a cozinha e ficou só ouvindo os gritos. Ela disse, tadinha, que tentou impedir, mas ficou com medo do Otto... disse que ele estava transtornado. Aí ela trancou a cozinha e ligou pro Márcio. Ele está indo pra lá.

- Mas por que não ligaram pra polícia? – alguém no fundo da sala perguntava, ainda sem saber direito quem era quem naquela história de terror.

Todos na agência, atônitos, queriam saber, afinal, quem é que tinha morrido, quem é que tinha matado, quem é que estava trancado na cozinha. Mas Iza não conseguia explicar. Só chorava e repetia “tadinha da Lola”. Mas a pergunta do moço sobre a polícia a acordou do transe e ela repetiu a pergunta, tentando processar a informação:

- Por que não ligaram pra polícia? Polícia? Como assim? Por que iriam ligar pra polícia, gente?

Todos ficaram muito confusos e então Antônio, que tinha mais amizade com Izadora e parecia conhecer os personagens todos da história, começou a explicar:

- Calma, gente, calma. Não foi nada grave! – e diante do olhar furioso que acabara de receber de Iza, emendou – Quer dizer, claro que é grave, mas não estamos falando de pessoas. Otto é o cachorro da Iza...

- Aquele monstro não é meu! – gritou Izadora, a plenos pulmões, entre um soluço e outro.

- Tá, tá, Otto é o cachorro do Márcio, marido da Iza – explicou Antônio e continuou – e Lola é o porquinho da índia da filha deles. E parece que o Otto pegou a Lola na cozinha e matou a bichinha...

- Matou! Aquele monstro! Sempre falei pro Márcio que não ia dar certo aquele cachorro morar com a gente... Só falta ele ter matado o Hugo também. Porque o Hugo adorava a Lola e deve ter tentado defender a pobrezinha... A Joana ficou com medo e trancou o monstro na cozinha. E o Hugo ficou lá! Mas se ele pegou o Hugo, ai, nem sei o que eu faço com aquele animal!

- Senhor de céu! Quem é Hugo? Quem é Joana? É tudo bicho? – perguntava o moço no fundo da sala, ainda muito espantado.

- Hugo é o papagaio da Iza. – explicou Antônio – Precisa ver que graça que ele é. Fala de um tudo aquele papagaio. E a Joana é a moça que trabalha lá.

E ouvindo isso Iza caiu no choro de novo, pensando no que poderia ter acontecido ao papagaio. Antônio a amparou e resolveu que era hora de terminar o show.

- Bom gente, desculpem-nos pela confusão. Voltem pras suas reuniões, por favor, está tudo bem. Eu vou levar a Iza pra casa.
Quando chegou em casa, já mais calma e confortada por Antônio, Izadora entrou com cuidado pela porta da sala e encontrou Marina, a filha, deitadinha no sofá com a cabeça no colo de Joana, que lhe fez um sinal de silêncio:

- Acabou de dormir – disse cochichando.

Márcio já tinha saído com Otto e Joana pediu desculpas à patroa, mas ainda não tinha conseguido limpar a bagunça na cozinha. Iza estava até com medo de perguntar pelo papagaio, mas de repente ouviu sua voz vindo da cozinha.

- Matou! Matou! Otto matou a Lola! Muito sangue! Sangue! Sangueeeee!
Iza sentiu um misto de alívio, raiva e vontade de rir. Pobre do papagaio... ele absorvia tudo muito fácil. Ficaria traumatizado. Só por precaução, antes de entrar na cozinha, Iza achou melhor perguntar mais sobre o ocorrido a Joana:

- Como foi tudo, Jo? Ele chegou a pegar o Hugo?

- Ai, Iza, foi tudo muito rápido e maluco. Nem sei explicar direito... Eu estava lá dentro, arrumando os quartos. De repente o Otto começou a latir e o Hugo a gritar. Ele gritava “Otto, feio! Otto, não! Lola! Lola! Lolaaaaaa!”. Eu larguei tudo lá dentro, vim correndo, mas quando cheguei... ai, nem gosto de lembrar...

- Fala Jo, pelo amor de deus, fala logo e fala tudo!

- Quando eu cheguei aqui na porta o Otto estava cheio de sangue na cara. Eu entrei na cozinha gritando pra ele parar, mas nem consegui saber onde estava a Lola. Tinha sangue pra tudo que é lado. E o Otto ficou olhando pra mim, com aquela cara cheia de sangue, e começou a latir. Eu fiquei com muito medo e achei melhor fechar a porta e trancar a cozinha.

- E o Hugo?

- Ah, o Hugo continuava gritando, tadinho. Eu achei que ele ia se atirar lá de cima da geladeira. Ele ficava indo de um lado pro outro, gritando, enlouquecido. Quando parava colocava a patinha na cabeça, parecia que ia arrancar as penas... Eu queria tirar ele de lá, mas não dava Iza. O Otto tava muito esquisito. Eu fiquei com medo.

Enquanto Joana contava a história, Hugo, da cozinha começou a falar:

- Otto feio! Matou, matou! Muito sangue... muito... sangueeeeeee! Lolaaaaaaaa.

Iza e Joana se entreolharam e mesmo com lágrimas nos olhos desataram a rir. Iza foi à cozinha e entendeu o desespero do papagaio: a cozinha de ladrilhos e azulejos brancos parecia cenário de um filme de Quentin Tarantino. Havia sangue espalhado por tudo. Otto havia simplesmente destroçado a pobre roedora. Havia pequenos pedaços ensangüentados do animal no chão e nas paredes. Quando o papagaio a viu, pôs-se a andar de um lado para outro novamente, repetindo o comportamento descrito por Joana. Iza não sabia o que fazer e tentou acalmar a ave:

- Calma Hugo, já passou. Mamãe está aqui! Calma.

Mas o papagaio continuava a gritar e numa iminente aproximação de Izadora ele se desesperou:

- Nãããããããão! Lolaaaaaaaaaaa. Sangue! Muito sangue! Otto feio... Lolaaaaaaaaaaaaaa!

Izadora se afastou, achou melhor esperar o bicho se acalmar. Mas o papagaio nunca mais foi o mesmo.

Naquele mesmo dia sacrificaram Otto. Todos ficaram com pena, mas Márcio achou que era o melhor a fazer. O cachorro sempre foi agitado, afinal, era um bull terrier, era forte e tinha mesmo um jeito ameaçador. Mas quando o ganhou, ainda pequenino e encantador no vigor de seus 2 meses de vida, garantiram a Márcio: essa raça é de boa índole. Os pais são cães dóceis. É ótimo para crianças, pois é um cachorro maciço, que aguenta as brincadeiras. Márcio confiou, mas Iza nunca se convenceu. Aceitou o filhote porque tanto o marido como a filha de 5 anos estavam encantados pelo cachorrinho. E ela mesma, que adorava bichos, tentava se convencer de que todos conseguiriam conviver – o cão, a porquinha da índia (presente da avó para a neta) e o papagaio, que Iza tinha desde os quinze anos e que carregava para todo lugar que ia. Até em Barcelona o papagaio já tinha morado, acompanhando a dona em um curso que ela fez na cidade. Mas no fundo Iza sempre teve essa desconfiança, a de que o cachorro era um assassino em potencial. Ela dizia isso a Márcio, mas ele a chamava de dramática, dizia que ela estava impressionada porque o cachorro era feio, tinha a cara grande, era diferente dos “bichinhos” que ela estava acostumada a ter. Além do mais, ele sempre quis ter um cachorro. Todo mundo na casa tinha seu bicho. Ele também queria ter o seu!

Márcio voltou arrasado do veterinário. Quieto e cabisbaixo, mal conseguia olhar para Izadora. Mas a mulher, sempre tão amável e compreensiva – Izadora era meio louca, falava alto, fazia mil coisas ao mesmo tempo, gritava, ria, chorava, tudo sempre com muita intensidade, mas da mesma forma era mãe e esposa: sempre muito amorosa, compreensiva, parceira, surpreendente – abriu os braços para o marido, que era duas vezes o seu tamanho, e ele só se enconstou nela, pronto para o abraço, como se fosse criança outra vez. Márcio chorou de soluçar. Um pouco pelo cachorro, um pouco pela situação, um pouco pela porquinha, bichinho que ele achava tão sem-graça no começo, mas que depois tornou-se uma grande companheira de brincadeiras da filha... Chorava também pelo papagaio, achando que a ave jamais se recuperaria do trauma. Mas chorava sobretudo porque achava que a tragédia toda tinha sido culpa sua, egoísta, que queria ter um cão feio e esquisito só para ter um bicho também.

- Não é culpa de ninguém, meu amor. Essas coisas acontecem até com gente, imagine com bichos... Vai ficar tudo bem. Agora estamos tristes, mas daqui a pouco estaremos bem.

Mas a família demorou para se recuperar daquilo. Eram muito apegados aos bichos. A filha ficava chamando pela porquinha à noite, acordava chorando, ia dormir na cama com os pais. Márcio sentia culpa por ter sacrificado o cão e também culpa por ter potencialmente posto a segurança da filha em risco. Hugo continuava gritando como se a chacina ainda estivesse acontecendo. Joana ameaçava pedir demissão porque não aguentava mais a gritaria do papagaio... estava tudo uma confusão só.

Certo dia no café da manhã Márcio entrou na cozinha e o papagaio desembestou a falar:

- Márcio, Márcio, Máááááárcio! Sangue! Otto matou a Lola! Sangue, sangueeeeeeeeeee!

A filha começou a chorar. Joana acudiu. Izadora tentou acalmar Hugo, mas estava cada vez mais difícil conviver com o papagaio. Então Márcio, perdendo um pouco a paciência, disse baixinho, meio que para si mesmo:

- Precisamos dar um jeito nesse bicho.

Izadora ouviu e enlouqueceu:

- Dar um jeito? Como assim dar um jeito? Você acha que eu sou como você? Acha que vou mandar matar meu papagaio como você fez com seu cachorro?

- Matou? Papai matou o Otto? – a filha, agora aos prantos, olhava com cara de desespero para o pai.

- Tá vendo? Olha só o que você está fazendo! – Márcio agora perdia a paciência de vez.

- Ah, sou eu? Foi meu cachorro quem matou a Lola, né?

E Hugo, ouvindo aquilo, começou a gritar de novo de cima da geladeira:

- Matou! Matou! Otto feio! Sangueeeeee. Lolaaaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Foram dias de muita desarmonia aqueles. A família nunca tinha passado um abalo tão grande. Márcio e Iza estavam juntos há dez anos. Tinham tido Marina há cinco e sempre foram muito felizes. Os amigos até invejavam. Diziam que eles formavam a perfeita família de comercial de margarina: eram lindos, alegres e conviviam numa harmonia quase irritante. E os bichos também faziam parte dessa história feliz. Mas agora tudo estava fora do lugar. Desde o incidente dos bichos eles não eram mais os mesmos.

Então Izadora, sempre muito prática, resolveu que aquela era uma boa hora para todos tirarem férias. Deu férias para Joana e reservou dez dias num resort para descansar com a família. Estavam todos muito tensos, precisavam de um tempo de paz. Antônio, amigo de todas as horas, inclusive no trabalho, iria assumir seus projetos na agência. Márcio também conseguiu um substituto e Marina ficou toda animada com a ideia de ficar grudadinha com os pais apenas brincando dia e noite.

Iza fez os planos, achou o resort, comprou as passagens, despachou Joana, preparou as malas, mas se esqueceu de um pequeno detalhe: Hugo. A mãe estava morando em São Paulo, não podia ficar com ele. Dez dias no veterinário seria uma tortura para o bicho que já estava traumatizado – sem contar que ficaria uma fortuna. O que fazer com o papagaio maluco? Tadinho. Iza morria de dó. Pensava até em se livrar do bichinho, mas não achava justo. Ele estava com ela já há tantos anos.

Dividindo seus anseios com Antônio, o bom amigo e colega de trabalho na agência no impulso ofereceu-se para ficar com Hugo. Iza ficou agradecida, mas não quis abusar:

- Tem certeza, Tony? – ela não estava segura de que isso era uma boa ideia pro amigo.

- Claro, Iza. Imagina! Eu moro sozinho, meu apartamento é amplo. Todos os dias a Isabel vai lá para dar uma geral e preparar minha comida. – Antônio falou em nome da amizade. Estava meio tenso de ter o papagaio maluco em casa. Mas estava com pena da amiga. Ela estava realmente precisando daquelas férias. E estava também com dó do papagaio. Pensou que talvez uma mudança de ares pudesse lhe fazer bem.

Antônio morava num apartamento do tipo loft, praticamente sem paredes, com janelões abertos de frente para o Cristo Redentor, na Lagoa Rodrigo de Freitas. O lugar era lindo e iluminado, além de ter o ótimo astral de Antônio, que era um homem de bom gosto e de uma bondade rara. Ele pediu que Isabel preparasse o lugar do papagaio sobre a geladeira, já que era sobre a geladeira que ele vivia na casa de Izadora, num pequeno poleiro branco, presente do já falecido pai de Iza.

No dia da partida o papagaio acordou quieto e calmo, como há muito tempo não fazia. Parecia ouvir tudo muito atentamente. Todos na casa estranharam. Márcio, o primeiro a entrar na cozinha para o café, olhou para o papagaio calado, depois olhou para Joana, depois de volta para o papagaio que continuava com o olhar perdido e ficou até com medo de perguntar, mas não resistiu e sussurrou:

- Ei, Jo. O que acontece? – disse apontando discretamente para Hugo.

- Não sei, seu Márcio. Cheguei hoje e ele não deu nenhum um pio... deve estar sentindo que vai embora, tadinho.

- Shhhhhh! – Márcio pediu desesperado que a empregada se calasse – Pelo amor de deus, Jo, não fala isso alto. Vai que ele começa tudo de novo...

Joana ficou sem jeito diante da repreensão do patrão, mas concordou com ele e ficou quieta. Na sequência Izadora e Marina entraram na cozinha. Silêncio.

- Nossa, que silêncio nessa casa hoje! Nem parece que vamos viajar – disse Iza com um sorriso aberto.

- Shhhhhhh! – pediu Márcio desesperado de novo, apontando para Hugo.

- Mas o que que tem, amor? – Iza não entendia a reação do marido.

- Poxa, Iza, pense. Há quantos dias não há essa paz na casa? Melhor não provocar, né? Melhor não tocar em assuntos delicados. Vai que ele entende o que está acontecendo e destrambelha de vez? – Márcio falava sério, embora a mulher e a empregada o olhassem como se tivesse enlouquecido de vez.

- Tá bom, tá bom. Não se fala mais nisso. Mas deixe suas coisas prontas, pois vou levar o Hugo no Antônio e depois volto só na hora de irmos pro aeroporto.

- Tá, tá! Fale baixo! – Márcio se esforçava para manter a paz que ele mesmo já não tinha, pois achava que a qualquer momento o papagaio começaria a gritar escandalosamente como nas últimas semanas.

Mas não. Hugo permaneceu calado e com aquele olhar perdido, como se estivesse pensando em outra coisa. Ele estava acostumado ali no seu poleiro branco, colocado sobre a geladeira. Toda vida havia sido assim. Quando foi dado à Izadora, como presente de aniversário pelo pai, primeiramente seu poleiro foi colocado numa ampla área de serviço que existia na casa nas Laranjeiras, onde Izadora morava com os pais. Desde que teve sua primeira casa sozinha, porém, Izadora o havia colocado sobre a geladeira da cozinha. E assim foi no apartamentinho da Urca, depois no Leblon, enquanto Iza morou por uns meses com um espanhol, pintor de murais, que ensinou muitas palavras divertidas a Hugo. Depois Barcelona, onde tanto Iza como Hugo ampliaram seus vocabulários. Depois de volta ao Leblon e agora ali na Gávea, já há dez anos, desde que Iza e Márcio se casaram.

Hugo tinha uma vida feliz. Aprendia fácil novas palavras. Era um papagaio pequeno e bonito, de penas verdes muito brilhantes. Todos se encantavam com ele. E ele se encantava com todos. Gostava de café, de tangerina, de ouvir música e aprender refrões grudentos. Gostava da família com a qual morava. Jamais tinha voado. Não pensava nisso. Só uma vez, quando ainda era muito jovem, haviam cortado suas asas para que não voasse. Mas ele nunca tinha pensado em voar antes disso. Tudo o que queria, tudo o que precisava, tudo o que gostava de fazer estava ali, ao seu redor, no entorno da geladeira e da cozinha onde vivia. E mesmo antes disso, quando ainda nem dava todo esse valor àquela vidinha que levava. Voar não lhe parecia uma coisa óbvia. Ele não se sentia uma ave como uma gaivota, uma fragata. Talvez ele estivesse mais para um atobá. Com a diferença de ser sozinho, ao passo que os atobás normalmente formam família, chocam ovos, convivem. Ele não precisava conviver com ninguém de sua espécie. Ele era Hugo, o papagaio inteligente da Iza. Tinha um poleiro branco, que era limpo todos os dias, era alimentado com as sementes mais frescas e as frutas mais frescas e os cafés mais frescos que se poderia provar nessa vida, normalmente medíocre, dos bichos. Por que diabos ele iria pensar em voar? Contavam-lhe piadas! E choravam de rir das suas, mesmo que ele esquecesse várias partes na hora de contar. Memorizar idéias inteiras assim era difícil, mesmo para um papagaio inteligente.

Porém desde o incidente com Otto a idéia de voar não saía de sua cabeça. Hugo não conseguia explicar porque tinha aqueles surtos histéricos onde tudo o que conseguia fazer era gritar justamente as palavras que queria esquecer. Coisas aparentemente inofensivas despertavam nele imagens macabras da cara do cachorro com a rata na boca, a chacoalhar como se fosse um pedaço de pano. Um pequeno e frágil pedaço de pano clarinho, que lentamente ia ficando vermelho até que numa fração de segundos despedaçou-se por completo. E acompanhadas dessas imagens Hugo só se lembrava de dizer “não!” porque ‘sim’ e ‘não’ são palavras muito fáceis de guardar, e em seguida as palavras que a empregada falava para Iza ao telefone para explicar desesperadamente o que tinha acontecido – Sangue! A cozinha está coberta de sangue. Muito sangue. Otto atacou a Lola. Otto matou a Lola. Otto está com a cara coberta de sangue. Não! Hugo fazia de tudo, mas não, aquelas imagens não lhe saíam da cabeça. E ultimamente tudo o que conseguia lhe distrair a atenção era a idéia de voar.
Hugo sentia-se velho. Estava com Izadora há tanto tempo. Viu homens entrarem e saírem da vida e dos apartamentos de Iza. Viu quando ela chorou dois dias e duas noites seguidas quando o espanhol engraçado foi embora e nunca mais voltou. Viu Márcio entrar em suas vidas e mudar tudo – a música, o ritmo, a harmonia, o corpo de Iza que ficou gordo de repente e mais de repente ainda ficou magro outra vez e aí trouxeram uma criança para morar com eles. Só depois Hugo entendeu que Marina era filha dos dois. Que bobagem... E aquilo parecia já ter acontecido há milênios. E voar nunca lhe fez falta. Mas agora era tudo no que conseguia pensar. Sentia-se velho, mas talvez não velho demais. Sentia-se preso àquelas pessoas, àquele lugar, àquela vida confortável e fácil que lhe davam. E ao mesmo tempo sentia-se desgastado de tudo aquilo. Era como se o ataque do cachorro tivesse lhe acordado de um transe: sua vida era ordinária. Ele não passava de um papagaio engaiolado, uma ave que jamais deu-se ao trabalho de pensar no que poderia haver nos céus por trás daquelas paredes.

Talvez Hugo não conseguisse esquecer o ataque de Otto porque viu no cão a atitude genuína de um animal agindo por instinto. Otto era bruto. Sempre fora um animal vigoroso, mesmo quando ainda era um filhote fofo. Otto sabia amar, claro. E amava com brutalidade também: derrubava Marina no chão, arranhava as pernas de Izadora, babava pela casa toda cinco minutos antes de Márcio chegar em casa – uma coisa que Hugo achava um mistério, inclusive. Mas era nítido que o cachorro salivava quando via a rata. Lola era uma rata grande. Uma ratazana gorda bem criada. Hugo não se sentia atraído. Talvez não tivesse aquela índole. Não tinha esse mesmo instinto do cachorro. Mas percebia, entendia de alguma maneira, a atração macabra do cachorro pela rata.

No fundo, Hugo admirava Otto. O cão tinha provado uma coisa que Hugo talvez jamais conseguisse provar – ele tinha agido como um animal selvagem, não como um animal domesticado. Ele tinha tido coragem e, mesmo tendo pago o preço com a própria vida, tinha experimentado o gosto do sangue, o gosto da vitória. “E eu?”, pensava Hugo. E pensava no que seria o seu destino – passar a vida repetindo mediocremente a piada dos outros? E se ele nunca se recuperasse daqueles surtos de gritar o nome de Otto e Lola? E se ele nunca mais conseguisse esquecer a amedrontadora cara do cachorro coberta de sangue? E se os donos resolvessem se livrar dele de vez por causa da gritaria que ele não conseguia controlar?

E na iminência de ter outro surto, pensou novamente em voar. Mas ali, no apartamento de Iza seria impossível. “Preciso de um plano”, pensou. Talvez à caminho do apartamento de Antônio. Talvez quando saíssem do elevador. Talvez quando estivessem no carro com a janela aberta. “Puxa, já pensou? Voar pelos céus do Rio de Janeiro? Talvez eu não esteja tão velho assim”, devaneava.
Mas não pôde. Iza levou seu poleiro para o carro, sempre conversando com ele naquele tom maternal que ele adorava:

- Huguito, não se preocupe, meu bichinho. Vamos só passar uns dias fora, para descansar. Você vai ficar na casa do Antônio, que você adora. O Tony mora numa casa gostosa, com uma vista liiiinda, que eu tenho certeza que você vai adorar. Mamãe vai ter saudades mas quando você nem imaginar já estaremos de volta.
E Hugo olhava para Iza com os olhos vidrados. Um olhar de amor profundo, que ele sentia incondicionalmente por ela. Mas talvez também um olhar de despedida. Estava confuso... não sabia o que fazer. E a vontade de gritar subia-lhe pela garganta, mas quando chegava ao bico, ele pensava em voar. Fechava rapidamente os olhinhos tristes e pensava no que poderia ser a sensação de planar sobre a cidade maravilhosa.
Quando chegaram ao apartamento de Antônio, porém, Hugo sentiu uma paz como há muito não sentia. Realmente o lugar era lindo, todo aberto, com janelas gigantescas e uma vista tão bela que fez Hugo pensar que aquela era a imagem mais linda que ele já tinha visto na vida: o Cristo Redentor sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Antônio estranhou a mudez do papagaio e perguntou para Iza como iam as coisas. Iza contou sobre o comportamento diferente do bicho naquela manhã. Hugo ignorou os comentários. Concentrou-se naquela sensação de paz que o lugar lhe trazia. Não sentia mais vontade de gritar.

Iza despediu-se e foi-se embora para suas férias. Hugo não queria ser mal agradecido, mas desejava que a dona não voltasse mais. Talvez se ficasse ali com Antônio sua vida poderia voltar ao normal. E assim passaram-se os dias e Hugo, bem tratado por Antônio e por Isabel, viveu dias mais felizes ainda do que já havia vivido até então. O plano de fuga e o desejo de voar de repente pareceram-lhe sem sentido. Ele ainda pensava nisso, mas sua coragem ia, pouco a pouco, sendo minada pela sensação boa de estar naquele lugar tão belo.

Eis que num belo domingo de sol – Antônio lia o jornal sossegado, esparramado na sala com uma xícara de café, e Hugo em seu poleiro a tomar também seu café recém-servido – toca o interfone. Antônio atendeu e Hugo só conseguiu ouvir:

- Quem? Ah, pode deixar subir, tudo bem.

Hugo ficou ansioso. Seria Iza voltando para buscá-lo? Será que ele queria ir embora? Há dias ele não falava palavra, será que devia tentar se manifestar agora? Será que deveria voltar ao plano de fuga? Será que finalmente havia chegado sua hora de voar? Teria ele coragem para tanto?

Quando a campainha tocou, seu coração disparou. A vontade de gritar veio-lhe ao bico novamente. Ele agarrou-se na ideia de voar. Tentou acalmar-se. Mas quando Antônio abriu a porta, para sua surpresa, ouviu uma voz masculina desconhecida, Antônio meio sem jeito, quase em dúvida se deixava pessoa entrar ou não:

- Oi André. Puxa, não sabia que você estava com o Thor... Vamos entrando, só te peço para deixá-lo preso porque...

Mas antes que Antônio terminasse a explicação, André e Thor entraram na sala e quando Thor, um rottweiler negro e gigante, colocou os olhos em Hugo, desatou a latir. Um latido grosso, grave, ameaçador. Meu deus! Hugo nunca tinha visto tantos dentes na boca de um cachorro antes. E agora? Hugo mediu a distância entre seu poleiro, o cachorro e as janelas escancaradas. Era agora ou nunca. Ia voar! Se não desse conta, iria cair antes e poderia ser pego pelo cachorro. Se conseguisse chegar até a janela, poderia tentar continuar voando, mas podia perder as forças e acabar espatifando-se na rua, na água da lagoa, sabe-se lá onde. Mas pro diabo com tudo, ia voar! Abriu as asas com tanta rapidez, bateu com toda a força que nem sabia que tinha, derrubou toda a comida e os mimos que tinha no poleiro e sentiu o corpinho verde começar a flutuar. Mal acreditou na própria força, na própria coragem. Estava voando!

E entre os gritos histéricos de Antônio, os latidos ameaçadores de Thor e os olhos esbugalhados de André, o papagaio cruzou a sala feito um furacão. Pegou uma brisa morna que encanava entre a janela da cozinha ao fundo e as janelonas da sala e simplesmente voou numa reta até alcançar a... liberdade? Então isso era voar? Era fácil assim? Deu-se conta então do que estava fazendo. Do que estava deixando para trás. Deu-se conta do quão incerto era seu destino e seu sucesso. Mas a sensação de amplitude, de leveza, de emoção que sentia jamais havia experimentado antes.
Hugo não olhou para trás. Bateu suas asas enferrujadas e lançou-se à propria sorte. Não sabia seu destino, mas o que importava? A verdade é que seu destino sempre fora incerto. E ele voou ao seu encontro para nunca mais voltar.