sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Plano de fuga



Era uma tarde morna, dessas de outono carioca, com temperatura acima dos vinte e cinco graus. A agência de propaganda estava fervilhando, com várias reuniões em curso ao mesmo tempo e gente transitando pelos corredores, que eram amplos e iluminados por causa das salas envidraçadas que os circundavam.

De repente todos pararam de falar para ouvir a gritaria que vinha de uma das salas. Izadora, em pé, com o telefone numa mão e gesticulando freneticamente a outra, falava aos prantos:

- Como assim? Meu deus... mas matou como? Matou como? Como assim tem sangue espalhado pela cozinha toda? Ele pegou a Lola na cozinha?! Ai meu deus... eu sempre disse que esse monstro ia acabar matando todo mundo, não disse? E o Hugo? Pelo amor de deus, não me diga que ele matou o Hugo também...

Todos estavam assustadíssimos, ouvindo atentos o que Izadora dizia, tentando entender o que estava acontecendo. Mas ela, histérica, não conseguia dizer as coisas calmamente. Estava recebendo as informações ainda e só repetia, histérica e desesperada, as palavras que ouvia.

- E onde é que ele está agora? Ninguém o segurou? Ninguém tentou fazer nada? Como é que pode? Eu sempre disse pro Márcio que ele era um monstro, um doente, que ia acabar matando todo mundo... E o Hugo? Alguém precisa saber do Hugo, tadinho. Se ele matou o Hugo também eu vou bater tanto nele. Vou matar de tanto bater nele!

Izadora falava e chorava. Chorava e gesticulava. E quando alguém conseguiu sair do estado catatônico que se generalizou na agência, trouxeram-lhe um copo d’água e ela finalmente desligou o telefone. Trêmula, tentava beber a água e explicar o ocorrido:

- O Otto, aquela besta, pegou a Lola e estraçalhou a pobrezinha... A Joana disse que tem sangue espalhado pela cozinha toda. Ela disse que o Hugo começou a gritar quando viu o Otto atacando a Lola, mas quando ela correu já não deu mais tempo de fazer nada. Ela trancou a cozinha e ficou só ouvindo os gritos. Ela disse, tadinha, que tentou impedir, mas ficou com medo do Otto... disse que ele estava transtornado. Aí ela trancou a cozinha e ligou pro Márcio. Ele está indo pra lá.

- Mas por que não ligaram pra polícia? – alguém no fundo da sala perguntava, ainda sem saber direito quem era quem naquela história de terror.

Todos na agência, atônitos, queriam saber, afinal, quem é que tinha morrido, quem é que tinha matado, quem é que estava trancado na cozinha. Mas Iza não conseguia explicar. Só chorava e repetia “tadinha da Lola”. Mas a pergunta do moço sobre a polícia a acordou do transe e ela repetiu a pergunta, tentando processar a informação:

- Por que não ligaram pra polícia? Polícia? Como assim? Por que iriam ligar pra polícia, gente?

Todos ficaram muito confusos e então Antônio, que tinha mais amizade com Izadora e parecia conhecer os personagens todos da história, começou a explicar:

- Calma, gente, calma. Não foi nada grave! – e diante do olhar furioso que acabara de receber de Iza, emendou – Quer dizer, claro que é grave, mas não estamos falando de pessoas. Otto é o cachorro da Iza...

- Aquele monstro não é meu! – gritou Izadora, a plenos pulmões, entre um soluço e outro.

- Tá, tá, Otto é o cachorro do Márcio, marido da Iza – explicou Antônio e continuou – e Lola é o porquinho da índia da filha deles. E parece que o Otto pegou a Lola na cozinha e matou a bichinha...

- Matou! Aquele monstro! Sempre falei pro Márcio que não ia dar certo aquele cachorro morar com a gente... Só falta ele ter matado o Hugo também. Porque o Hugo adorava a Lola e deve ter tentado defender a pobrezinha... A Joana ficou com medo e trancou o monstro na cozinha. E o Hugo ficou lá! Mas se ele pegou o Hugo, ai, nem sei o que eu faço com aquele animal!

- Senhor de céu! Quem é Hugo? Quem é Joana? É tudo bicho? – perguntava o moço no fundo da sala, ainda muito espantado.

- Hugo é o papagaio da Iza. – explicou Antônio – Precisa ver que graça que ele é. Fala de um tudo aquele papagaio. E a Joana é a moça que trabalha lá.

E ouvindo isso Iza caiu no choro de novo, pensando no que poderia ter acontecido ao papagaio. Antônio a amparou e resolveu que era hora de terminar o show.

- Bom gente, desculpem-nos pela confusão. Voltem pras suas reuniões, por favor, está tudo bem. Eu vou levar a Iza pra casa.
Quando chegou em casa, já mais calma e confortada por Antônio, Izadora entrou com cuidado pela porta da sala e encontrou Marina, a filha, deitadinha no sofá com a cabeça no colo de Joana, que lhe fez um sinal de silêncio:

- Acabou de dormir – disse cochichando.

Márcio já tinha saído com Otto e Joana pediu desculpas à patroa, mas ainda não tinha conseguido limpar a bagunça na cozinha. Iza estava até com medo de perguntar pelo papagaio, mas de repente ouviu sua voz vindo da cozinha.

- Matou! Matou! Otto matou a Lola! Muito sangue! Sangue! Sangueeeee!
Iza sentiu um misto de alívio, raiva e vontade de rir. Pobre do papagaio... ele absorvia tudo muito fácil. Ficaria traumatizado. Só por precaução, antes de entrar na cozinha, Iza achou melhor perguntar mais sobre o ocorrido a Joana:

- Como foi tudo, Jo? Ele chegou a pegar o Hugo?

- Ai, Iza, foi tudo muito rápido e maluco. Nem sei explicar direito... Eu estava lá dentro, arrumando os quartos. De repente o Otto começou a latir e o Hugo a gritar. Ele gritava “Otto, feio! Otto, não! Lola! Lola! Lolaaaaaa!”. Eu larguei tudo lá dentro, vim correndo, mas quando cheguei... ai, nem gosto de lembrar...

- Fala Jo, pelo amor de deus, fala logo e fala tudo!

- Quando eu cheguei aqui na porta o Otto estava cheio de sangue na cara. Eu entrei na cozinha gritando pra ele parar, mas nem consegui saber onde estava a Lola. Tinha sangue pra tudo que é lado. E o Otto ficou olhando pra mim, com aquela cara cheia de sangue, e começou a latir. Eu fiquei com muito medo e achei melhor fechar a porta e trancar a cozinha.

- E o Hugo?

- Ah, o Hugo continuava gritando, tadinho. Eu achei que ele ia se atirar lá de cima da geladeira. Ele ficava indo de um lado pro outro, gritando, enlouquecido. Quando parava colocava a patinha na cabeça, parecia que ia arrancar as penas... Eu queria tirar ele de lá, mas não dava Iza. O Otto tava muito esquisito. Eu fiquei com medo.

Enquanto Joana contava a história, Hugo, da cozinha começou a falar:

- Otto feio! Matou, matou! Muito sangue... muito... sangueeeeeee! Lolaaaaaaaa.

Iza e Joana se entreolharam e mesmo com lágrimas nos olhos desataram a rir. Iza foi à cozinha e entendeu o desespero do papagaio: a cozinha de ladrilhos e azulejos brancos parecia cenário de um filme de Quentin Tarantino. Havia sangue espalhado por tudo. Otto havia simplesmente destroçado a pobre roedora. Havia pequenos pedaços ensangüentados do animal no chão e nas paredes. Quando o papagaio a viu, pôs-se a andar de um lado para outro novamente, repetindo o comportamento descrito por Joana. Iza não sabia o que fazer e tentou acalmar a ave:

- Calma Hugo, já passou. Mamãe está aqui! Calma.

Mas o papagaio continuava a gritar e numa iminente aproximação de Izadora ele se desesperou:

- Nãããããããão! Lolaaaaaaaaaaa. Sangue! Muito sangue! Otto feio... Lolaaaaaaaaaaaaaa!

Izadora se afastou, achou melhor esperar o bicho se acalmar. Mas o papagaio nunca mais foi o mesmo.

Naquele mesmo dia sacrificaram Otto. Todos ficaram com pena, mas Márcio achou que era o melhor a fazer. O cachorro sempre foi agitado, afinal, era um bull terrier, era forte e tinha mesmo um jeito ameaçador. Mas quando o ganhou, ainda pequenino e encantador no vigor de seus 2 meses de vida, garantiram a Márcio: essa raça é de boa índole. Os pais são cães dóceis. É ótimo para crianças, pois é um cachorro maciço, que aguenta as brincadeiras. Márcio confiou, mas Iza nunca se convenceu. Aceitou o filhote porque tanto o marido como a filha de 5 anos estavam encantados pelo cachorrinho. E ela mesma, que adorava bichos, tentava se convencer de que todos conseguiriam conviver – o cão, a porquinha da índia (presente da avó para a neta) e o papagaio, que Iza tinha desde os quinze anos e que carregava para todo lugar que ia. Até em Barcelona o papagaio já tinha morado, acompanhando a dona em um curso que ela fez na cidade. Mas no fundo Iza sempre teve essa desconfiança, a de que o cachorro era um assassino em potencial. Ela dizia isso a Márcio, mas ele a chamava de dramática, dizia que ela estava impressionada porque o cachorro era feio, tinha a cara grande, era diferente dos “bichinhos” que ela estava acostumada a ter. Além do mais, ele sempre quis ter um cachorro. Todo mundo na casa tinha seu bicho. Ele também queria ter o seu!

Márcio voltou arrasado do veterinário. Quieto e cabisbaixo, mal conseguia olhar para Izadora. Mas a mulher, sempre tão amável e compreensiva – Izadora era meio louca, falava alto, fazia mil coisas ao mesmo tempo, gritava, ria, chorava, tudo sempre com muita intensidade, mas da mesma forma era mãe e esposa: sempre muito amorosa, compreensiva, parceira, surpreendente – abriu os braços para o marido, que era duas vezes o seu tamanho, e ele só se enconstou nela, pronto para o abraço, como se fosse criança outra vez. Márcio chorou de soluçar. Um pouco pelo cachorro, um pouco pela situação, um pouco pela porquinha, bichinho que ele achava tão sem-graça no começo, mas que depois tornou-se uma grande companheira de brincadeiras da filha... Chorava também pelo papagaio, achando que a ave jamais se recuperaria do trauma. Mas chorava sobretudo porque achava que a tragédia toda tinha sido culpa sua, egoísta, que queria ter um cão feio e esquisito só para ter um bicho também.

- Não é culpa de ninguém, meu amor. Essas coisas acontecem até com gente, imagine com bichos... Vai ficar tudo bem. Agora estamos tristes, mas daqui a pouco estaremos bem.

Mas a família demorou para se recuperar daquilo. Eram muito apegados aos bichos. A filha ficava chamando pela porquinha à noite, acordava chorando, ia dormir na cama com os pais. Márcio sentia culpa por ter sacrificado o cão e também culpa por ter potencialmente posto a segurança da filha em risco. Hugo continuava gritando como se a chacina ainda estivesse acontecendo. Joana ameaçava pedir demissão porque não aguentava mais a gritaria do papagaio... estava tudo uma confusão só.

Certo dia no café da manhã Márcio entrou na cozinha e o papagaio desembestou a falar:

- Márcio, Márcio, Máááááárcio! Sangue! Otto matou a Lola! Sangue, sangueeeeeeeeeee!

A filha começou a chorar. Joana acudiu. Izadora tentou acalmar Hugo, mas estava cada vez mais difícil conviver com o papagaio. Então Márcio, perdendo um pouco a paciência, disse baixinho, meio que para si mesmo:

- Precisamos dar um jeito nesse bicho.

Izadora ouviu e enlouqueceu:

- Dar um jeito? Como assim dar um jeito? Você acha que eu sou como você? Acha que vou mandar matar meu papagaio como você fez com seu cachorro?

- Matou? Papai matou o Otto? – a filha, agora aos prantos, olhava com cara de desespero para o pai.

- Tá vendo? Olha só o que você está fazendo! – Márcio agora perdia a paciência de vez.

- Ah, sou eu? Foi meu cachorro quem matou a Lola, né?

E Hugo, ouvindo aquilo, começou a gritar de novo de cima da geladeira:

- Matou! Matou! Otto feio! Sangueeeeee. Lolaaaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Foram dias de muita desarmonia aqueles. A família nunca tinha passado um abalo tão grande. Márcio e Iza estavam juntos há dez anos. Tinham tido Marina há cinco e sempre foram muito felizes. Os amigos até invejavam. Diziam que eles formavam a perfeita família de comercial de margarina: eram lindos, alegres e conviviam numa harmonia quase irritante. E os bichos também faziam parte dessa história feliz. Mas agora tudo estava fora do lugar. Desde o incidente dos bichos eles não eram mais os mesmos.

Então Izadora, sempre muito prática, resolveu que aquela era uma boa hora para todos tirarem férias. Deu férias para Joana e reservou dez dias num resort para descansar com a família. Estavam todos muito tensos, precisavam de um tempo de paz. Antônio, amigo de todas as horas, inclusive no trabalho, iria assumir seus projetos na agência. Márcio também conseguiu um substituto e Marina ficou toda animada com a ideia de ficar grudadinha com os pais apenas brincando dia e noite.

Iza fez os planos, achou o resort, comprou as passagens, despachou Joana, preparou as malas, mas se esqueceu de um pequeno detalhe: Hugo. A mãe estava morando em São Paulo, não podia ficar com ele. Dez dias no veterinário seria uma tortura para o bicho que já estava traumatizado – sem contar que ficaria uma fortuna. O que fazer com o papagaio maluco? Tadinho. Iza morria de dó. Pensava até em se livrar do bichinho, mas não achava justo. Ele estava com ela já há tantos anos.

Dividindo seus anseios com Antônio, o bom amigo e colega de trabalho na agência no impulso ofereceu-se para ficar com Hugo. Iza ficou agradecida, mas não quis abusar:

- Tem certeza, Tony? – ela não estava segura de que isso era uma boa ideia pro amigo.

- Claro, Iza. Imagina! Eu moro sozinho, meu apartamento é amplo. Todos os dias a Isabel vai lá para dar uma geral e preparar minha comida. – Antônio falou em nome da amizade. Estava meio tenso de ter o papagaio maluco em casa. Mas estava com pena da amiga. Ela estava realmente precisando daquelas férias. E estava também com dó do papagaio. Pensou que talvez uma mudança de ares pudesse lhe fazer bem.

Antônio morava num apartamento do tipo loft, praticamente sem paredes, com janelões abertos de frente para o Cristo Redentor, na Lagoa Rodrigo de Freitas. O lugar era lindo e iluminado, além de ter o ótimo astral de Antônio, que era um homem de bom gosto e de uma bondade rara. Ele pediu que Isabel preparasse o lugar do papagaio sobre a geladeira, já que era sobre a geladeira que ele vivia na casa de Izadora, num pequeno poleiro branco, presente do já falecido pai de Iza.

No dia da partida o papagaio acordou quieto e calmo, como há muito tempo não fazia. Parecia ouvir tudo muito atentamente. Todos na casa estranharam. Márcio, o primeiro a entrar na cozinha para o café, olhou para o papagaio calado, depois olhou para Joana, depois de volta para o papagaio que continuava com o olhar perdido e ficou até com medo de perguntar, mas não resistiu e sussurrou:

- Ei, Jo. O que acontece? – disse apontando discretamente para Hugo.

- Não sei, seu Márcio. Cheguei hoje e ele não deu nenhum um pio... deve estar sentindo que vai embora, tadinho.

- Shhhhhh! – Márcio pediu desesperado que a empregada se calasse – Pelo amor de deus, Jo, não fala isso alto. Vai que ele começa tudo de novo...

Joana ficou sem jeito diante da repreensão do patrão, mas concordou com ele e ficou quieta. Na sequência Izadora e Marina entraram na cozinha. Silêncio.

- Nossa, que silêncio nessa casa hoje! Nem parece que vamos viajar – disse Iza com um sorriso aberto.

- Shhhhhhh! – pediu Márcio desesperado de novo, apontando para Hugo.

- Mas o que que tem, amor? – Iza não entendia a reação do marido.

- Poxa, Iza, pense. Há quantos dias não há essa paz na casa? Melhor não provocar, né? Melhor não tocar em assuntos delicados. Vai que ele entende o que está acontecendo e destrambelha de vez? – Márcio falava sério, embora a mulher e a empregada o olhassem como se tivesse enlouquecido de vez.

- Tá bom, tá bom. Não se fala mais nisso. Mas deixe suas coisas prontas, pois vou levar o Hugo no Antônio e depois volto só na hora de irmos pro aeroporto.

- Tá, tá! Fale baixo! – Márcio se esforçava para manter a paz que ele mesmo já não tinha, pois achava que a qualquer momento o papagaio começaria a gritar escandalosamente como nas últimas semanas.

Mas não. Hugo permaneceu calado e com aquele olhar perdido, como se estivesse pensando em outra coisa. Ele estava acostumado ali no seu poleiro branco, colocado sobre a geladeira. Toda vida havia sido assim. Quando foi dado à Izadora, como presente de aniversário pelo pai, primeiramente seu poleiro foi colocado numa ampla área de serviço que existia na casa nas Laranjeiras, onde Izadora morava com os pais. Desde que teve sua primeira casa sozinha, porém, Izadora o havia colocado sobre a geladeira da cozinha. E assim foi no apartamentinho da Urca, depois no Leblon, enquanto Iza morou por uns meses com um espanhol, pintor de murais, que ensinou muitas palavras divertidas a Hugo. Depois Barcelona, onde tanto Iza como Hugo ampliaram seus vocabulários. Depois de volta ao Leblon e agora ali na Gávea, já há dez anos, desde que Iza e Márcio se casaram.

Hugo tinha uma vida feliz. Aprendia fácil novas palavras. Era um papagaio pequeno e bonito, de penas verdes muito brilhantes. Todos se encantavam com ele. E ele se encantava com todos. Gostava de café, de tangerina, de ouvir música e aprender refrões grudentos. Gostava da família com a qual morava. Jamais tinha voado. Não pensava nisso. Só uma vez, quando ainda era muito jovem, haviam cortado suas asas para que não voasse. Mas ele nunca tinha pensado em voar antes disso. Tudo o que queria, tudo o que precisava, tudo o que gostava de fazer estava ali, ao seu redor, no entorno da geladeira e da cozinha onde vivia. E mesmo antes disso, quando ainda nem dava todo esse valor àquela vidinha que levava. Voar não lhe parecia uma coisa óbvia. Ele não se sentia uma ave como uma gaivota, uma fragata. Talvez ele estivesse mais para um atobá. Com a diferença de ser sozinho, ao passo que os atobás normalmente formam família, chocam ovos, convivem. Ele não precisava conviver com ninguém de sua espécie. Ele era Hugo, o papagaio inteligente da Iza. Tinha um poleiro branco, que era limpo todos os dias, era alimentado com as sementes mais frescas e as frutas mais frescas e os cafés mais frescos que se poderia provar nessa vida, normalmente medíocre, dos bichos. Por que diabos ele iria pensar em voar? Contavam-lhe piadas! E choravam de rir das suas, mesmo que ele esquecesse várias partes na hora de contar. Memorizar idéias inteiras assim era difícil, mesmo para um papagaio inteligente.

Porém desde o incidente com Otto a idéia de voar não saía de sua cabeça. Hugo não conseguia explicar porque tinha aqueles surtos histéricos onde tudo o que conseguia fazer era gritar justamente as palavras que queria esquecer. Coisas aparentemente inofensivas despertavam nele imagens macabras da cara do cachorro com a rata na boca, a chacoalhar como se fosse um pedaço de pano. Um pequeno e frágil pedaço de pano clarinho, que lentamente ia ficando vermelho até que numa fração de segundos despedaçou-se por completo. E acompanhadas dessas imagens Hugo só se lembrava de dizer “não!” porque ‘sim’ e ‘não’ são palavras muito fáceis de guardar, e em seguida as palavras que a empregada falava para Iza ao telefone para explicar desesperadamente o que tinha acontecido – Sangue! A cozinha está coberta de sangue. Muito sangue. Otto atacou a Lola. Otto matou a Lola. Otto está com a cara coberta de sangue. Não! Hugo fazia de tudo, mas não, aquelas imagens não lhe saíam da cabeça. E ultimamente tudo o que conseguia lhe distrair a atenção era a idéia de voar.
Hugo sentia-se velho. Estava com Izadora há tanto tempo. Viu homens entrarem e saírem da vida e dos apartamentos de Iza. Viu quando ela chorou dois dias e duas noites seguidas quando o espanhol engraçado foi embora e nunca mais voltou. Viu Márcio entrar em suas vidas e mudar tudo – a música, o ritmo, a harmonia, o corpo de Iza que ficou gordo de repente e mais de repente ainda ficou magro outra vez e aí trouxeram uma criança para morar com eles. Só depois Hugo entendeu que Marina era filha dos dois. Que bobagem... E aquilo parecia já ter acontecido há milênios. E voar nunca lhe fez falta. Mas agora era tudo no que conseguia pensar. Sentia-se velho, mas talvez não velho demais. Sentia-se preso àquelas pessoas, àquele lugar, àquela vida confortável e fácil que lhe davam. E ao mesmo tempo sentia-se desgastado de tudo aquilo. Era como se o ataque do cachorro tivesse lhe acordado de um transe: sua vida era ordinária. Ele não passava de um papagaio engaiolado, uma ave que jamais deu-se ao trabalho de pensar no que poderia haver nos céus por trás daquelas paredes.

Talvez Hugo não conseguisse esquecer o ataque de Otto porque viu no cão a atitude genuína de um animal agindo por instinto. Otto era bruto. Sempre fora um animal vigoroso, mesmo quando ainda era um filhote fofo. Otto sabia amar, claro. E amava com brutalidade também: derrubava Marina no chão, arranhava as pernas de Izadora, babava pela casa toda cinco minutos antes de Márcio chegar em casa – uma coisa que Hugo achava um mistério, inclusive. Mas era nítido que o cachorro salivava quando via a rata. Lola era uma rata grande. Uma ratazana gorda bem criada. Hugo não se sentia atraído. Talvez não tivesse aquela índole. Não tinha esse mesmo instinto do cachorro. Mas percebia, entendia de alguma maneira, a atração macabra do cachorro pela rata.

No fundo, Hugo admirava Otto. O cão tinha provado uma coisa que Hugo talvez jamais conseguisse provar – ele tinha agido como um animal selvagem, não como um animal domesticado. Ele tinha tido coragem e, mesmo tendo pago o preço com a própria vida, tinha experimentado o gosto do sangue, o gosto da vitória. “E eu?”, pensava Hugo. E pensava no que seria o seu destino – passar a vida repetindo mediocremente a piada dos outros? E se ele nunca se recuperasse daqueles surtos de gritar o nome de Otto e Lola? E se ele nunca mais conseguisse esquecer a amedrontadora cara do cachorro coberta de sangue? E se os donos resolvessem se livrar dele de vez por causa da gritaria que ele não conseguia controlar?

E na iminência de ter outro surto, pensou novamente em voar. Mas ali, no apartamento de Iza seria impossível. “Preciso de um plano”, pensou. Talvez à caminho do apartamento de Antônio. Talvez quando saíssem do elevador. Talvez quando estivessem no carro com a janela aberta. “Puxa, já pensou? Voar pelos céus do Rio de Janeiro? Talvez eu não esteja tão velho assim”, devaneava.
Mas não pôde. Iza levou seu poleiro para o carro, sempre conversando com ele naquele tom maternal que ele adorava:

- Huguito, não se preocupe, meu bichinho. Vamos só passar uns dias fora, para descansar. Você vai ficar na casa do Antônio, que você adora. O Tony mora numa casa gostosa, com uma vista liiiinda, que eu tenho certeza que você vai adorar. Mamãe vai ter saudades mas quando você nem imaginar já estaremos de volta.
E Hugo olhava para Iza com os olhos vidrados. Um olhar de amor profundo, que ele sentia incondicionalmente por ela. Mas talvez também um olhar de despedida. Estava confuso... não sabia o que fazer. E a vontade de gritar subia-lhe pela garganta, mas quando chegava ao bico, ele pensava em voar. Fechava rapidamente os olhinhos tristes e pensava no que poderia ser a sensação de planar sobre a cidade maravilhosa.
Quando chegaram ao apartamento de Antônio, porém, Hugo sentiu uma paz como há muito não sentia. Realmente o lugar era lindo, todo aberto, com janelas gigantescas e uma vista tão bela que fez Hugo pensar que aquela era a imagem mais linda que ele já tinha visto na vida: o Cristo Redentor sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Antônio estranhou a mudez do papagaio e perguntou para Iza como iam as coisas. Iza contou sobre o comportamento diferente do bicho naquela manhã. Hugo ignorou os comentários. Concentrou-se naquela sensação de paz que o lugar lhe trazia. Não sentia mais vontade de gritar.

Iza despediu-se e foi-se embora para suas férias. Hugo não queria ser mal agradecido, mas desejava que a dona não voltasse mais. Talvez se ficasse ali com Antônio sua vida poderia voltar ao normal. E assim passaram-se os dias e Hugo, bem tratado por Antônio e por Isabel, viveu dias mais felizes ainda do que já havia vivido até então. O plano de fuga e o desejo de voar de repente pareceram-lhe sem sentido. Ele ainda pensava nisso, mas sua coragem ia, pouco a pouco, sendo minada pela sensação boa de estar naquele lugar tão belo.

Eis que num belo domingo de sol – Antônio lia o jornal sossegado, esparramado na sala com uma xícara de café, e Hugo em seu poleiro a tomar também seu café recém-servido – toca o interfone. Antônio atendeu e Hugo só conseguiu ouvir:

- Quem? Ah, pode deixar subir, tudo bem.

Hugo ficou ansioso. Seria Iza voltando para buscá-lo? Será que ele queria ir embora? Há dias ele não falava palavra, será que devia tentar se manifestar agora? Será que deveria voltar ao plano de fuga? Será que finalmente havia chegado sua hora de voar? Teria ele coragem para tanto?

Quando a campainha tocou, seu coração disparou. A vontade de gritar veio-lhe ao bico novamente. Ele agarrou-se na ideia de voar. Tentou acalmar-se. Mas quando Antônio abriu a porta, para sua surpresa, ouviu uma voz masculina desconhecida, Antônio meio sem jeito, quase em dúvida se deixava pessoa entrar ou não:

- Oi André. Puxa, não sabia que você estava com o Thor... Vamos entrando, só te peço para deixá-lo preso porque...

Mas antes que Antônio terminasse a explicação, André e Thor entraram na sala e quando Thor, um rottweiler negro e gigante, colocou os olhos em Hugo, desatou a latir. Um latido grosso, grave, ameaçador. Meu deus! Hugo nunca tinha visto tantos dentes na boca de um cachorro antes. E agora? Hugo mediu a distância entre seu poleiro, o cachorro e as janelas escancaradas. Era agora ou nunca. Ia voar! Se não desse conta, iria cair antes e poderia ser pego pelo cachorro. Se conseguisse chegar até a janela, poderia tentar continuar voando, mas podia perder as forças e acabar espatifando-se na rua, na água da lagoa, sabe-se lá onde. Mas pro diabo com tudo, ia voar! Abriu as asas com tanta rapidez, bateu com toda a força que nem sabia que tinha, derrubou toda a comida e os mimos que tinha no poleiro e sentiu o corpinho verde começar a flutuar. Mal acreditou na própria força, na própria coragem. Estava voando!

E entre os gritos histéricos de Antônio, os latidos ameaçadores de Thor e os olhos esbugalhados de André, o papagaio cruzou a sala feito um furacão. Pegou uma brisa morna que encanava entre a janela da cozinha ao fundo e as janelonas da sala e simplesmente voou numa reta até alcançar a... liberdade? Então isso era voar? Era fácil assim? Deu-se conta então do que estava fazendo. Do que estava deixando para trás. Deu-se conta do quão incerto era seu destino e seu sucesso. Mas a sensação de amplitude, de leveza, de emoção que sentia jamais havia experimentado antes.
Hugo não olhou para trás. Bateu suas asas enferrujadas e lançou-se à propria sorte. Não sabia seu destino, mas o que importava? A verdade é que seu destino sempre fora incerto. E ele voou ao seu encontro para nunca mais voltar.

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