segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Dormir para esquecer

Uma ventania louca lá fora. É tarde e eu devia estar dormindo, já que é nessa hora que as pessoas costumam dormir. A noite avança voraz, feito esse vento louco que chegou do sul, zunindo pela janela quase aberta, bagunçando a paz quase existente... A noite avança sobre meu sono, pegando-o pelo estômago, mudando o desejo de dormir pelo de devorar uma sopa de letrinhas. A noite avança no relógio ali do canto, a vigiar meus dedos, escravizados pela fome de não saberem o que querem. Uma ventania louca lá fora varre a noite que avança para longe de mim. Devolve-me o sono roubado assim que fecho a janela e olho para dentro. E esqueço que venta lá fora e eu, aqui dentro, só preciso dormir. E esquecer.

Uma canção chamada Janeiro

Houve uma vez, num dia 31 de janeiro, um fato surpreendente: uma música queria nascer. Queria falar do mês mais quente, instável e louco que era janeiro. Queria misturar carnaval e bons presságios dos 11 meses ainda por vir com a nostalgia e efeitos prolongados do ano anterior, recém terminado, mas já há muitos dias (31!) rodando em outra década. E isso era notável. A canção queria nascer de qualquer jeito naquele dia porque tinha certeza de que seria sucesso: o refrão iria certamente traduzir aquela confusão de sentimentos que todos carregavam no peito; iria grudar na memória das pessoas e tocar em todas as rádios populares porque ia contar de modo simplificado e folhetinesco a história de um mês passado muito depressa, envelhecido no tempo como os frangos na granja, que cruelmente comem o tempo todo para crescerem mais depressa, ganhar peso e resolverem logo o que vieram fazer nesta vida. A canção queria falar de um certo mês de janeiro, que, como todos os outros janeiros já idos, seria um mês único – ora, mas veja: tudo é único nessa vida... nem mesmo a gente tem duas mãos iguais... nenhum minuto passa sem ser diferente do anterior. Mas a canção queria nascer mesmo assim. Ela tinha pesquisado – não havia muitas canções com este tema; havia espaço para ela existir sem ser repetitiva. Porém já era dia 31 e seu prazo estava acabando. Em breve seria fevereiro e aí já não faria mais sentido ela existir. Era uma canção imediatista, dessas que nascem em mesa de bar, num guardanapo de papel usado... mas ela não sabia bem o que queria ser... talvez um blues. Talvez um samba. Ou um reggae. E assim, devaneando entre temas para seu título, rimas para seu refrão, melodias, compassos e arranjos para tornar-se, finalmente, música, a canção adormeceu. Em seus sonhos imaginou as pessoas completas, cantando o refrão emocionadas, sentindo que algo finalmente explicava que aquele mês de janeiro foi mesmo um momento daqueles que a gente vê no cinema – aquele tempo em que as coisas mais improváveis e absurdas acontecem. Coisas bizarras. Coisas engraçadas. Coisas que deixariam na vida das pessoas uma lembrança tão intensa que depois todos ouviriam aquela canção e saberiam: ahhh, esta canção fala daquele mês de janeiro! A canção dormiu muitas horas, sonhou sem se preocupar com a hora de acordar, entregou-se ao sono como um bebê no colo da mãe, ouvindo a melodia baixinha do seu ninar, esperando o dia de ser alguém. Talvez num dia 31 de janeiro, no volume máximo – porque é assim que a gente nasce: fazendo barulho. E a música ficou ali, esperando então para ver se nascia. Ansiosa por quem pudesse lhe ajudar a ser real. Entoando como um mantra a certeza de que só precisava se acalmar e esperar – afinal, neste mundo nada nasce antes do seu tempo. Nem as músicas.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Nada mais importante

Acordou com o carinho do sol, que entrava pela janela junto com a brisa fresca da manhã. Já era mais tarde do que podia supor, mas não tinha importância. Ouviu uma música meramente familiar e não sentiu desejo de saber o que era. Não tinha importância. Sentou-se na cama e duvidou um pouco da memória, que insistia em lhe trazer as reminiscências da noite anterior. Não queria lembrar. Não porque não fosse importante, mas nada ia mudar o que tinha acontecido. E isso era a única coisa que lhe tinha importância agora.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Sensações coloridas

Arrepiou-se com o calor fraco do sol do fim de tarde ainda na sua pele, contrastando com um vento vindo do nada, como um barulho desses que te cortam a fala e o raciocínio. Esfriava, era verão e tudo parecia raro para ser entendido assim, de uma vez. Pensou em cores, tons de azul do mar e do céu. Sentiu o calor fraco do sol amarelo como um girassol e a brisa fria soprada do sul azul como o céu da noite chegando. Salivou com as cores que viu... seus sentidos estavam confusos como seus sentimentos, atordoados como seus pensamentos, cansados de lamentos, loucos por novos momentos.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ideias solitárias

Acho a solidão uma coisa superestimada. As pessoas não aprendem a estar sós, então não há jeito de saber bem como é isso – e quando não se sabe como as coisas são, a primeira reação é a de medo. E o medo da solidão é generalizado. Estar com outras pessoas é bom, é complexo, é emocionante... a gente se encanta com o outro, se decepciona, espera uma coisa e encontra outra. Mas estar só é uma descoberta lenta. Aprendizado de coisas miúdas, exercício de delicadeza de ourives. Será que é assim, na leitura desses sinais sutis e longos, que finalmente aprendemos a lidar com esse sentimento exagerado de fragilidade que a solidão nos imprime? Será que é nessa hora que nosso relógio de amor próprio finalmente dispara avisando que há outras maneiras de fazer as coisas? Não sei se é finalmente nessa hora que colocamos a verdade à luz do que já sabemos, do que conhecemos, do que nos disseram, nos ensinaram, do que duvidamos e questionamos. Ouvi outro dia que há versões da verdade. Achei tão estranho... pra mim a verdade sempre foi a verdade e qualquer coisa diferente disso era mentira. E me cansei das mentiras. Medi a distância que me custava separar a covardia de contar uma mentira da covardia de contar uma verdade e reparei que o trajeto da mentira podia até ser interessante, mas era mais longo, mais sinuoso, obscuro e perigoso. E nada disso é muito diferente do trajeto da verdade, pelo menos não necessariamente, com exceção de uma coisa: a mentira depende de fatos, tempos, às vezes pessoas... e a verdade não depende de nada, senão de você mesmo. A mentira se justifica. A verdade, não. E me cansei das justificativas. Comecei a ver melhor as coisas como elas são. Estar com pessoas é ótimo para compartilhar essas coisas que vemos, embarcar um pouco na viagem do outro, que vê as coisas de outro ângulo. Mas nem sempre há o outro. E ainda assim, há pessoas o tempo todo – gente que você carrega com você, no pensamento, no sentimento, no tesão, na raiva, no ressentimento, no excesso ou falta de compreensão. Estar só é, na verdade, lidar com toda essa gente toda dentro de você. É sozinho que a gente aprende que não há abraço todo dia, não há sempre beijo de bom dia, não há sempre dorme bem e sonha comigo. E é sozinho que a gente aprende que essas coisas são raras e fulgazes, porque para estar feliz, completo, não importa apenas ter alguém do lado, mas sentir-se agradecido, emocionado, amado e amando sem piedade familiar, sem obviedade, mas justamente surpreso por amar com maldade de amante, com cumplicidade de amigo de pescaria. É experimentando a solidão que se pode ver com mais clareza o que te faz bem e o que te faz mal. O que falta ou sobra em você ou no outro. E o quanto esse equilíbrio é complicado, às vezes impossível. Então não basta ter vontade de estar junto. É fácil superestimar a solidão. Mas se olhamos bem de perto, a solidão é absolutamente opcional. E proporcionalmente essencial.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sobre um vício

Estou tentando me reabilitar de você. E eu que já me achei viciada em tantas coisas, eu que já tive que deixar pra trás tantas coisas que me fizeram tanta falta, não imaginei, não pude, como seria eliminar você de mim. Aliás, demorei. Me levou muito tempo entender que não havia outro modo. Me custou muito caro aceitar: não posso ficar contigo e, ao mesmo tempo, me parece impossível ficar sem – mas não é. Me levou meses e muitas páginas e muitas lágrimas e muitas milhas rodadas, navegadas, voadas, muita gente, muita história, outras bocas, outros gêneros... tive que descobrir um universo todo novo para enxergar que é possível (e é bom) viver sem você. Não, não é bom não poder te beijar, te abraçar apertado, sentir suas mãos grandes pressionando meus ossos pequenos, seu jeito bruto de me consumir, seu jeito estúpido de me entender, a cumplicidade louca de saber que você ouve o que eu nem digo... Mas ao mesmo tempo é bom, é libertador, é leve não viver no sobressalto, não ter medo de ousar em dizer coisas sem cuidado, não me sentir pressionada a te amar de modo perfeito para não estragar tudo já tão perfeito e bem cuidado na tua vida. Te amei do jeito que pude, com toda a bondade que pode caber num amor grandioso, desses que serão lembrados a vida inteira. Te amei tanto e tão intensamente que me fiz mal – foi demais... Não deixei de te amar, claro, mas agora você não me parece mais essencial. Temo recaídas, claro. Sei que não posso nunca mais tomar um gole seu... porque sei que um só nunca seria suficiente, porque vou querer me embebedar, porque não vou sossegar enquanto não tentar, mais uma vez, ter você inteiro, do jeito que eu quero, de um jeito impossível, de um jeito que não existe. Então eu resisto. Estou aprendendo. Amadureci em meses o que me levaria, talvez, anos. O mérito nem é meu. Outras coisas muito mais graves e hediondas aconteceram à minha volta. Me senti ridícula por provocar, eu mesma, a dor que te amar desmedidamente estava me causando. Me lembrei de uma lição divina, dita por um homem que me pareceu verdadeiro, num sábado à tarde, num lugar especial que tinha como cenário a cidade mais bonita do mundo – esse homem disse, celebrando a união de um casal: a gente escolhe a quem amar. Me custou muito tempo para entender a entrelinha disso, porque eu quis muito amar pessoas que mereciam o meu amor e eu não consegui. E agora, tantos enganos depois, eu entendi: você escolhe a quem amar, sim, mas também é escolhido e a única chance de sucesso é essa – o amor que se escolhe e o amor que se entrega. Se houver desespero pelo retorno, então está errado. Se não há sincronia, não importa o tempo, o timing, não importa nada; porque há momentos de se ser só, de se cometer exageros, de se permitir errar, de explorar limites e contestar verdades, pois elas nunca são absolutas até que se prove o contrário. E há momentos de ser mais que um, de compartilhar, de cuidar ou pensar no outro primeiro, pelo menos de vez em quando, porque o amor funde a gente com o outro, bagunça essa fronteira tênue entre o que sou eu, o que é você e o que somos nós. Mas para ser dois há que se existir mais do que amor. Há que se haver limite. Por isso meu amor por você não morre. O que eu extirpo é a doença que você me causa. Essa ausência aguda de algo que eu nem nunca tive. Você foi um delírio... na verdade, o excesso de você é que foi um delírio. Mas começo a me sentir livre de você. Não tenho vaidade alguma em dizer que foi das coisas mais difíceis que já fiz – te extirpar com cuidado; te tirar de mim gota a gota, com a calma de quem realmente quer se curar; ouvindo coisas dos amigos, fazendo esforço para fazer as coisas que nunca me custaram esforço algum antes. Estou me curando e ainda não sei, na verdade, se um dia haverá cura não apenas para o vício incontrolável, mas também para essa marca que ficou estampada em mim como uma tatuagem mal feita, atestando minha escolha irresponsável de outra hora. Estou me curando pelo menos da abstinência. Estou quase reabilitada. E se um dia eu voltar a ficar doente desse mesmo vício, sei que não haverá nenhum outro responsável além de mim mesma.

Perigos bobos

Ele olhou e ela respondeu com um sorriso. E ele notou, surpreso por nunca ter notado isso antes, como aquele sorriso de criança que ela tinha fazia com que ele sentisse uma paz inexplicável. Era um riso que ele poderia usar como pílula, um remédio para a ressaca da alma. Será que ela sabia do poder que tinha no rosto? Ele pensava nisso enquanto a olhava. E ela só sorria, sem pensar em nada.

Temporais demais

Você amadurece, eles esquecem. Os sonhos adormecem, perecem diante de nós. E nós... somos reticentes, resistentes às coisas mais difíceis, insistentes em coisas demais, escolhendo demais o que salvar sem perceber que se passar tempo demais nada mais poderá ser salvo.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Deixado para depois

Você subestima minha saudade. Desdenha minha vontade. Repele meu desejo e minha persistência em te querer, ainda que eu não te peça o contrário. Não entende que isso não é teimosia. Não admite que isso não é escolha minha – tampouco sua. Não vê além da superfície, além de sua vaidade em aceitar ou recusar um cuidado. Não percebe que te peço para aprender, mesmo sabendo que isso não tem fim. Não percebe que não me importo com o fim, mas justamente com o fato dele ser irrelevante diante do caminho que podemos percorrer ou simplesmente abandonar. O que vem depois, eu não sei, você não sabe e não há outra maneira de sabê-lo. O que vem depois é o que mereceremos ter.

Momento vagabundo

Houve uma pausa estranha na conversa. Olharam-se de maneira incerta, desconfiados do que seria aquele misto de falta de assunto e excesso de sincronia. Duvidaram um pouco da vontade velada. Suspeitaram das palavras não ditas e agarraram-se à pausa. Prestaram atenção no silêncio e buscaram os significados dele – sabiam que aquele silêncio estava repleto de significados. E ficaram então aguardando, um pelo outro, o momento de agir, de se mexer, de respirar, de falar ou não falar. Olharam-se mais uma vez, perdidos naquele vácuo essencial, e pensaram (possivelmente ao mesmo tempo) no quanto as coisas mais simples, na essência, podem ser terrivelmente complexas.

Subida descompressiva

Quando visitamos o fundo do mar, ao voltar à superfície, há que se subir lentamente - o corpo, acostumado com condições diferentes de pressão e consumo de ar, estranha se subimos muito rápido. É importante respeitar o timing fisiológico para que coisas bobas como bolhas de ar não prejudiquem o bom funcionamento da máquina humana que somos.

Voltar de uma viagem incrível também é um pouco assim - às vezes o corpo volta mas o espírito fica para trás, atrasado, tentando compensar a diferença entre os dias sem tarefa e os dias rotineiros. E nesse momento da volta a diferença grita com outras cores, odores, horários, pressões. Em suma: compensar essa diferença nunca é simples.

Na parada descompressiva ficamos cerca de três minutos parados a 5 metros da superfície - assim eliminamos o excesso de oxigênio acumulado no corpo durante o tempo de visita aos peixes.

Na volta de uma viagem acho que precisamos de uma paradinha assim também; para focar na realidade, para agradecer as oportunidades que nos levaram à ela, para refazer os planos com as energias renovadas.

É curioso como mergulhar é uma simulação do viver: se a gente respira lenta e profundamente o "gás" dura mais; se a gente se desloca devagar, respeitando o movimento do mar e a leveza que podemos ter se conseguimos o autocontrole necessário, tudo parece mais fácil; se olhamos bem de perto coisas como corais, pedras, vidas desconhecidas e subestimadas, vemos coisas fantásticas, inimagináveis se olhamos de longe. E é exatamente aí que mora essa semelhança com nossa vida ordinária: é tudo um sistema; há muita beleza (a despeito do que não é exatamente belo); a coexistência não é simples, justa, tampouco opcional; há uma imensidão abaixo e atrás de cada ser, de cada grão de areia, de cada país, mar ou pessoa que a gente conhece. O difícil não é enxergar e aprender a apreciar (e adorar) tudo isso. O difícil é lutar pela vida ordinária e reconhecê-la como a sua, a que te faz ser quem você é. A descompressão é só uma passagem.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Volta longa

Saiu para dar uma volta. Precisava sentir o vento na cara. Precisava pensar nas coisas... deixar as ideias ventilar... deixar-se sentir, na verdade, ao invés de só pensar. Precisava de espaço e ali não havia. Precisava de quilômetros, de distância, de velocidade. Precisava de tanta coisa e muitas vezes não conseguia se mexer... Estava sofrendo de uma exaustão crônica. Não era física, era moral, astral. Estava com a alma adoecida. Temia nunca mais ser a mesma pessoa. Não apenas porque temia mudar, mas porque não sabia ainda o que esperar daquela pessoa estranha que habitava agora seu corpo e seus sentidos. Não tinha mais certeza de nada. Queria apenas o vento na cara. Apenas mais uma volta. Mesmo que fosse para nunca mais voltar.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Descrença

Ele ligou de madrugada. Disse a ela que tinha saudade, que não sabia explicar o porquê de tanto desencontro. Disse a ela que confiasse, que quisesse, que o tolerasse mais um pouco porque não havia outra forma de saberem se daria certo, não fosse tentando. Ela ouviu tudo o que ele tinha a dizer e ficou triste por sentir a mesma coisa e não acreditar mais numa só palavra.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Unsinging forever

So I thought that I could sing you anything. And when you liked the song you would sing along. And when you didn’t, you would just listen and try to understand that we’re different. And that this would not diminish what we feel. But guess, once more, that I was wrong. There were songs I just could not sing. There were moments were I just hushed and didn’t find my time to start singing. There were songs I just could not sing at all… You don’t understand why. Me neither, I must confess. It may be possible that I was partially blind or deaf. Or maybe just distracted by other songs – there are so many strong songs and singers in this world… And when I came to my senses, I had just lost track of time, missed the compass… And then you left me all alone – cause I may have company, but I’m always alone if I’m not with you. - And you’ve left me all alone and there were no more songs to sing along with you. And now there is this awkward silence and it doesn’t bother me cause everything else was too loud anyways. But I miss your notes. They were too many too. But I miss them, cause now we have none. I thought I would have you forever. But I just forgot songs are limited. Records are limited. Books are limited. People are limited. Time is limited. And love and hurt are unlimited... and way too large to be kept forever.

Fim

A conversa acabou. Você deixou o palco e as luzes se apagaram. Havia centenas de pessoas, luzes, som e fúria. Agora não há mais nada. Esse lugar gigante ficou vazio. Esse espaço todo ocupado em mim subitamente ficou vago, ocupado de silêncio, inócuo, tão grande que não há nem eco. E eu, tão pequeno, mera peça corriqueira, peão eliminado do jogo, descartado para uma próxima vez.

Sobre saber ler a sequência

Os tempos que não respeito rebelam-se contra mim. Revoltam-se como crianças mimadas, estragadas pelo excesso de cuidados e agressivas sob pressão. Os tempos que não respeito não atropelo por falta de tato; não acelero porque sou ansiosa. Os tempos que não respeito não são os meus... tenho dificuldade em entendê-los, percebo apenas com muito esforço – e só quando as coisas começam a fugir ao controle – quando estou mais rápida ou mais lenta que todo o resto. E quem sou eu para dominar o tempo? Ou entendê-lo? Submeto-me a ele, mas erro... ele não depende só de mim. Ele depende dos seus, do que você quer, do que você precisa, do que te faz bem ou mal. Meu tempo depende da sincronia com o seu. E sincronizar não é seguir no mesmo tempo. É encaixar minha lentidão ou minha pressa com sua velocidade, com sua vontade e compreensão. E esse encaixe é difícil. Impossível até. Então deixo o tempo passar. Não me é opção. Ele passa independente de minha vontade. Leva embora meus momentos felizes. Me obriga a acordar e a perceber a preciosidade dos tais momentos – e a ver o quanto eles são raros e fulgazes. Me ensina sem a menor delicadeza que há perdas todos os dias. Mas há ganhos também. O tempo leva e o tempo traz. O tempo é como o mar – não sei lidar com ele, mas preciso. Então aprendo. E um dia, quem sabe, consigo.

A caixa

O tempo está curto, as palavras abreviadas, a poesia enxuta, os amores rápidos e limitados a uma quantidade ridícula de caracteres. Mas quanto tempo, quantas palavras, quantos beijos, desejos ou declarações você precisa para viver plenamente o que sente? O problema de sair da caixa é nunca mais conseguir voltar para ela.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Palavras que não são para você gostar

Para você, que gosta do que lê. Para você que me vê diferente. Para você que me espia, me olha como um voyeur, sabendo que estou olhando, sabendo que estou gostando de te saber ver. Escrevo porque preciso. Te escrevo porque não falo, porque calo coisas importantes, porque esqueço o que ia dizer, porque não penso na velocidade da minha boca, porque minhas palavras nascem letra a letra. Não nascem fonemas. Não nascem prontas, cuspidas, vomitadas. Minhas palavras são educadas. Mesmo brutas, querem ser elegantes, querem ser grandes palavras. Querem ter a grandeza que não tenho. A pureza que perdi. As certezas que me enganam. Os sentidos que ficam bom no plano, mas não na entrega. Então, você, que lê achando que entende, seja bem vindo a esta confusão organizada. O que você vê, é o que você tem. O que você lê poderia ser seu. Mas não é. E não ache ruim. Também não é meu.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Crença

A diferença? É que ao sentir tua presença, tudo muda em mim. A diferença é que ser só o que se quer às vezes não é um meio, mas um fim. A diferença é que há mais gente além de você e de mim. E há temporais e chuvas de verão. Se você esperar, talvez veja beleza em ambos. Se se apressar, talvez não. Não importa, existem diferenças. O que importa é a diferença na vida que faz tua crença.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Então não ame

Estou aqui morrendo de sono. Resistindo a ele como resisto a você. Com a diferença de que você está longe e minha cama logo ali.
Não quero dormir. Não quero deixar de sentir a vida passando por mim. Não quero deixar pra trás nada nem ninguém. Mas deixo todos os dias porque de repente as coisas não me saciam mais.
Resisto a você porque e tão somente porque algo me impede. Algo prático como a distância ou sua falta de clareza. Acho cruel sua falta de tato em dizer que me deseja e se abster de me amar do jeito que preciso ser.
Não é um jeito complexo. É muito simples na verdade. Você é que não consegue ver.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A queda

Quando algo assim acontece e perdemos a medida, a consciência, a inocência, quando perdemos a coerência pela cegueira da negação da verdade, o que vem depois? Será que se repetirmos, repetirmos, repetirmos nossa crença como um mantra, será que assim conseguimos agir diferente? Será que assim descobrimos o que é agir certo? Então me digam, por favor, alguém me diga: por que essas linhas não são claras, visíveis, sólidas? Me digam, por favor, por que as fronteiras às vezes não se vêem? Por que as fronteiras não têm as cores e as linhas das bandeiras, onde podemos ver sem dúvida onde começa uma cor e termina a outra? Me digam: isso é punição? Somos punidos por tentarmos ser desmedidamente felizes? Quando uma tragédia acontece, sentimo-nos jogados ao chão... sem preparação, sem dignidade. E por mais que nos preparemos para cair, por mais que passemos a vida inteira sendo fortes e trabalhando nossas forças, quando uma tragédia acontece, o que sobra de nós? Que as quedas me machuquem mas me façam forte. E se uma delas tiver que me matar, que me mate humilde, fiel à verdade e ao amor tão imenso que sinto pelos que amo, inclusive aqueles que não puderem me amar de volta. Não quero a vaidade de poder dizer que estou certa. Tampouco a culpa inexorável à admissão de que estou errada. Quero a leveza da humildade para poder lidar com o peso da verdade de igual para igual. Quero cair preparada, porque as quedas são inevitáveis. E repito, sem me preocupar com o drama, quero apenas a dor ou a alegria da verdade e do amor. Sem isso, nada tem sentido.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O limite depois de tudo

Mesmo depois de tudo, ela não podia esquecer. Sua alma estava impregnada com ele. Mesmo sabendo de tudo, mesmo achando-se ridícula, patética, mesmo sentindo-se enjoada por todo seu mal jeito, mesmo assim ela não podia deixar de senti-lo. Mesmo que tentasse com outras bocas. Mesmo que se convencesse de que a estupidez não era sua, mesmo que se soubesse correta, inteira, mesmo que se sentisse uma mulher verdadeira e madura, mesmo assim, não era possível manter seu pensamento em algum lugar que não estivesse tomado por ele. Mesmo depois de tudo, sentia que seu coração só batia se ele existisse. E se não houvesse ele era como se seu coração ficasse sem bateria, inerte, morto, como um peixe que poderia ser lindo na água do mar, mas que era feio, sujo e nojento na areia da praia. Mesmo depois de tudo, sua vontade era a de dar a outra face. Mesmo depois de se saber derrotada, ela ainda queria brigar. Já era pelo prazer da dor. Mesmo depois de experimentar o amor, ela já não sabia mais o limite das coisas.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Segundo

O primeiro acabou inesperado. Um dia lento com cadência. Um dia quente sem excessos. Quase um dia qualquer. Mas não era, era o primeiro. E ele levantou como uma onda grande, daquelas que não parecem que vão chegar, mas chegam, são fortes, e sabemos o que fazer – deixa quebrar, respira fundo e deixa ir, vai junto, sem medo de fazer parte, correndo o risco do tombo, mas inteiramente eletrificado quando chega do outro lado inteiro, abraçado pela água com carinho e força. E passa tudo tão rápido que quando vejo, não é mais dia primeiro.