sábado, 25 de setembro de 2010

Falso haikai

Não sou de poucas palavras
Não sou nada demais
Somos o quê, ademais,
Senão pequenos animais?

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Plano de fuga



Era uma tarde morna, dessas de outono carioca, com temperatura acima dos vinte e cinco graus. A agência de propaganda estava fervilhando, com várias reuniões em curso ao mesmo tempo e gente transitando pelos corredores, que eram amplos e iluminados por causa das salas envidraçadas que os circundavam.

De repente todos pararam de falar para ouvir a gritaria que vinha de uma das salas. Izadora, em pé, com o telefone numa mão e gesticulando freneticamente a outra, falava aos prantos:

- Como assim? Meu deus... mas matou como? Matou como? Como assim tem sangue espalhado pela cozinha toda? Ele pegou a Lola na cozinha?! Ai meu deus... eu sempre disse que esse monstro ia acabar matando todo mundo, não disse? E o Hugo? Pelo amor de deus, não me diga que ele matou o Hugo também...

Todos estavam assustadíssimos, ouvindo atentos o que Izadora dizia, tentando entender o que estava acontecendo. Mas ela, histérica, não conseguia dizer as coisas calmamente. Estava recebendo as informações ainda e só repetia, histérica e desesperada, as palavras que ouvia.

- E onde é que ele está agora? Ninguém o segurou? Ninguém tentou fazer nada? Como é que pode? Eu sempre disse pro Márcio que ele era um monstro, um doente, que ia acabar matando todo mundo... E o Hugo? Alguém precisa saber do Hugo, tadinho. Se ele matou o Hugo também eu vou bater tanto nele. Vou matar de tanto bater nele!

Izadora falava e chorava. Chorava e gesticulava. E quando alguém conseguiu sair do estado catatônico que se generalizou na agência, trouxeram-lhe um copo d’água e ela finalmente desligou o telefone. Trêmula, tentava beber a água e explicar o ocorrido:

- O Otto, aquela besta, pegou a Lola e estraçalhou a pobrezinha... A Joana disse que tem sangue espalhado pela cozinha toda. Ela disse que o Hugo começou a gritar quando viu o Otto atacando a Lola, mas quando ela correu já não deu mais tempo de fazer nada. Ela trancou a cozinha e ficou só ouvindo os gritos. Ela disse, tadinha, que tentou impedir, mas ficou com medo do Otto... disse que ele estava transtornado. Aí ela trancou a cozinha e ligou pro Márcio. Ele está indo pra lá.

- Mas por que não ligaram pra polícia? – alguém no fundo da sala perguntava, ainda sem saber direito quem era quem naquela história de terror.

Todos na agência, atônitos, queriam saber, afinal, quem é que tinha morrido, quem é que tinha matado, quem é que estava trancado na cozinha. Mas Iza não conseguia explicar. Só chorava e repetia “tadinha da Lola”. Mas a pergunta do moço sobre a polícia a acordou do transe e ela repetiu a pergunta, tentando processar a informação:

- Por que não ligaram pra polícia? Polícia? Como assim? Por que iriam ligar pra polícia, gente?

Todos ficaram muito confusos e então Antônio, que tinha mais amizade com Izadora e parecia conhecer os personagens todos da história, começou a explicar:

- Calma, gente, calma. Não foi nada grave! – e diante do olhar furioso que acabara de receber de Iza, emendou – Quer dizer, claro que é grave, mas não estamos falando de pessoas. Otto é o cachorro da Iza...

- Aquele monstro não é meu! – gritou Izadora, a plenos pulmões, entre um soluço e outro.

- Tá, tá, Otto é o cachorro do Márcio, marido da Iza – explicou Antônio e continuou – e Lola é o porquinho da índia da filha deles. E parece que o Otto pegou a Lola na cozinha e matou a bichinha...

- Matou! Aquele monstro! Sempre falei pro Márcio que não ia dar certo aquele cachorro morar com a gente... Só falta ele ter matado o Hugo também. Porque o Hugo adorava a Lola e deve ter tentado defender a pobrezinha... A Joana ficou com medo e trancou o monstro na cozinha. E o Hugo ficou lá! Mas se ele pegou o Hugo, ai, nem sei o que eu faço com aquele animal!

- Senhor de céu! Quem é Hugo? Quem é Joana? É tudo bicho? – perguntava o moço no fundo da sala, ainda muito espantado.

- Hugo é o papagaio da Iza. – explicou Antônio – Precisa ver que graça que ele é. Fala de um tudo aquele papagaio. E a Joana é a moça que trabalha lá.

E ouvindo isso Iza caiu no choro de novo, pensando no que poderia ter acontecido ao papagaio. Antônio a amparou e resolveu que era hora de terminar o show.

- Bom gente, desculpem-nos pela confusão. Voltem pras suas reuniões, por favor, está tudo bem. Eu vou levar a Iza pra casa.
Quando chegou em casa, já mais calma e confortada por Antônio, Izadora entrou com cuidado pela porta da sala e encontrou Marina, a filha, deitadinha no sofá com a cabeça no colo de Joana, que lhe fez um sinal de silêncio:

- Acabou de dormir – disse cochichando.

Márcio já tinha saído com Otto e Joana pediu desculpas à patroa, mas ainda não tinha conseguido limpar a bagunça na cozinha. Iza estava até com medo de perguntar pelo papagaio, mas de repente ouviu sua voz vindo da cozinha.

- Matou! Matou! Otto matou a Lola! Muito sangue! Sangue! Sangueeeee!
Iza sentiu um misto de alívio, raiva e vontade de rir. Pobre do papagaio... ele absorvia tudo muito fácil. Ficaria traumatizado. Só por precaução, antes de entrar na cozinha, Iza achou melhor perguntar mais sobre o ocorrido a Joana:

- Como foi tudo, Jo? Ele chegou a pegar o Hugo?

- Ai, Iza, foi tudo muito rápido e maluco. Nem sei explicar direito... Eu estava lá dentro, arrumando os quartos. De repente o Otto começou a latir e o Hugo a gritar. Ele gritava “Otto, feio! Otto, não! Lola! Lola! Lolaaaaaa!”. Eu larguei tudo lá dentro, vim correndo, mas quando cheguei... ai, nem gosto de lembrar...

- Fala Jo, pelo amor de deus, fala logo e fala tudo!

- Quando eu cheguei aqui na porta o Otto estava cheio de sangue na cara. Eu entrei na cozinha gritando pra ele parar, mas nem consegui saber onde estava a Lola. Tinha sangue pra tudo que é lado. E o Otto ficou olhando pra mim, com aquela cara cheia de sangue, e começou a latir. Eu fiquei com muito medo e achei melhor fechar a porta e trancar a cozinha.

- E o Hugo?

- Ah, o Hugo continuava gritando, tadinho. Eu achei que ele ia se atirar lá de cima da geladeira. Ele ficava indo de um lado pro outro, gritando, enlouquecido. Quando parava colocava a patinha na cabeça, parecia que ia arrancar as penas... Eu queria tirar ele de lá, mas não dava Iza. O Otto tava muito esquisito. Eu fiquei com medo.

Enquanto Joana contava a história, Hugo, da cozinha começou a falar:

- Otto feio! Matou, matou! Muito sangue... muito... sangueeeeeee! Lolaaaaaaaa.

Iza e Joana se entreolharam e mesmo com lágrimas nos olhos desataram a rir. Iza foi à cozinha e entendeu o desespero do papagaio: a cozinha de ladrilhos e azulejos brancos parecia cenário de um filme de Quentin Tarantino. Havia sangue espalhado por tudo. Otto havia simplesmente destroçado a pobre roedora. Havia pequenos pedaços ensangüentados do animal no chão e nas paredes. Quando o papagaio a viu, pôs-se a andar de um lado para outro novamente, repetindo o comportamento descrito por Joana. Iza não sabia o que fazer e tentou acalmar a ave:

- Calma Hugo, já passou. Mamãe está aqui! Calma.

Mas o papagaio continuava a gritar e numa iminente aproximação de Izadora ele se desesperou:

- Nãããããããão! Lolaaaaaaaaaaa. Sangue! Muito sangue! Otto feio... Lolaaaaaaaaaaaaaa!

Izadora se afastou, achou melhor esperar o bicho se acalmar. Mas o papagaio nunca mais foi o mesmo.

Naquele mesmo dia sacrificaram Otto. Todos ficaram com pena, mas Márcio achou que era o melhor a fazer. O cachorro sempre foi agitado, afinal, era um bull terrier, era forte e tinha mesmo um jeito ameaçador. Mas quando o ganhou, ainda pequenino e encantador no vigor de seus 2 meses de vida, garantiram a Márcio: essa raça é de boa índole. Os pais são cães dóceis. É ótimo para crianças, pois é um cachorro maciço, que aguenta as brincadeiras. Márcio confiou, mas Iza nunca se convenceu. Aceitou o filhote porque tanto o marido como a filha de 5 anos estavam encantados pelo cachorrinho. E ela mesma, que adorava bichos, tentava se convencer de que todos conseguiriam conviver – o cão, a porquinha da índia (presente da avó para a neta) e o papagaio, que Iza tinha desde os quinze anos e que carregava para todo lugar que ia. Até em Barcelona o papagaio já tinha morado, acompanhando a dona em um curso que ela fez na cidade. Mas no fundo Iza sempre teve essa desconfiança, a de que o cachorro era um assassino em potencial. Ela dizia isso a Márcio, mas ele a chamava de dramática, dizia que ela estava impressionada porque o cachorro era feio, tinha a cara grande, era diferente dos “bichinhos” que ela estava acostumada a ter. Além do mais, ele sempre quis ter um cachorro. Todo mundo na casa tinha seu bicho. Ele também queria ter o seu!

Márcio voltou arrasado do veterinário. Quieto e cabisbaixo, mal conseguia olhar para Izadora. Mas a mulher, sempre tão amável e compreensiva – Izadora era meio louca, falava alto, fazia mil coisas ao mesmo tempo, gritava, ria, chorava, tudo sempre com muita intensidade, mas da mesma forma era mãe e esposa: sempre muito amorosa, compreensiva, parceira, surpreendente – abriu os braços para o marido, que era duas vezes o seu tamanho, e ele só se enconstou nela, pronto para o abraço, como se fosse criança outra vez. Márcio chorou de soluçar. Um pouco pelo cachorro, um pouco pela situação, um pouco pela porquinha, bichinho que ele achava tão sem-graça no começo, mas que depois tornou-se uma grande companheira de brincadeiras da filha... Chorava também pelo papagaio, achando que a ave jamais se recuperaria do trauma. Mas chorava sobretudo porque achava que a tragédia toda tinha sido culpa sua, egoísta, que queria ter um cão feio e esquisito só para ter um bicho também.

- Não é culpa de ninguém, meu amor. Essas coisas acontecem até com gente, imagine com bichos... Vai ficar tudo bem. Agora estamos tristes, mas daqui a pouco estaremos bem.

Mas a família demorou para se recuperar daquilo. Eram muito apegados aos bichos. A filha ficava chamando pela porquinha à noite, acordava chorando, ia dormir na cama com os pais. Márcio sentia culpa por ter sacrificado o cão e também culpa por ter potencialmente posto a segurança da filha em risco. Hugo continuava gritando como se a chacina ainda estivesse acontecendo. Joana ameaçava pedir demissão porque não aguentava mais a gritaria do papagaio... estava tudo uma confusão só.

Certo dia no café da manhã Márcio entrou na cozinha e o papagaio desembestou a falar:

- Márcio, Márcio, Máááááárcio! Sangue! Otto matou a Lola! Sangue, sangueeeeeeeeeee!

A filha começou a chorar. Joana acudiu. Izadora tentou acalmar Hugo, mas estava cada vez mais difícil conviver com o papagaio. Então Márcio, perdendo um pouco a paciência, disse baixinho, meio que para si mesmo:

- Precisamos dar um jeito nesse bicho.

Izadora ouviu e enlouqueceu:

- Dar um jeito? Como assim dar um jeito? Você acha que eu sou como você? Acha que vou mandar matar meu papagaio como você fez com seu cachorro?

- Matou? Papai matou o Otto? – a filha, agora aos prantos, olhava com cara de desespero para o pai.

- Tá vendo? Olha só o que você está fazendo! – Márcio agora perdia a paciência de vez.

- Ah, sou eu? Foi meu cachorro quem matou a Lola, né?

E Hugo, ouvindo aquilo, começou a gritar de novo de cima da geladeira:

- Matou! Matou! Otto feio! Sangueeeeee. Lolaaaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Foram dias de muita desarmonia aqueles. A família nunca tinha passado um abalo tão grande. Márcio e Iza estavam juntos há dez anos. Tinham tido Marina há cinco e sempre foram muito felizes. Os amigos até invejavam. Diziam que eles formavam a perfeita família de comercial de margarina: eram lindos, alegres e conviviam numa harmonia quase irritante. E os bichos também faziam parte dessa história feliz. Mas agora tudo estava fora do lugar. Desde o incidente dos bichos eles não eram mais os mesmos.

Então Izadora, sempre muito prática, resolveu que aquela era uma boa hora para todos tirarem férias. Deu férias para Joana e reservou dez dias num resort para descansar com a família. Estavam todos muito tensos, precisavam de um tempo de paz. Antônio, amigo de todas as horas, inclusive no trabalho, iria assumir seus projetos na agência. Márcio também conseguiu um substituto e Marina ficou toda animada com a ideia de ficar grudadinha com os pais apenas brincando dia e noite.

Iza fez os planos, achou o resort, comprou as passagens, despachou Joana, preparou as malas, mas se esqueceu de um pequeno detalhe: Hugo. A mãe estava morando em São Paulo, não podia ficar com ele. Dez dias no veterinário seria uma tortura para o bicho que já estava traumatizado – sem contar que ficaria uma fortuna. O que fazer com o papagaio maluco? Tadinho. Iza morria de dó. Pensava até em se livrar do bichinho, mas não achava justo. Ele estava com ela já há tantos anos.

Dividindo seus anseios com Antônio, o bom amigo e colega de trabalho na agência no impulso ofereceu-se para ficar com Hugo. Iza ficou agradecida, mas não quis abusar:

- Tem certeza, Tony? – ela não estava segura de que isso era uma boa ideia pro amigo.

- Claro, Iza. Imagina! Eu moro sozinho, meu apartamento é amplo. Todos os dias a Isabel vai lá para dar uma geral e preparar minha comida. – Antônio falou em nome da amizade. Estava meio tenso de ter o papagaio maluco em casa. Mas estava com pena da amiga. Ela estava realmente precisando daquelas férias. E estava também com dó do papagaio. Pensou que talvez uma mudança de ares pudesse lhe fazer bem.

Antônio morava num apartamento do tipo loft, praticamente sem paredes, com janelões abertos de frente para o Cristo Redentor, na Lagoa Rodrigo de Freitas. O lugar era lindo e iluminado, além de ter o ótimo astral de Antônio, que era um homem de bom gosto e de uma bondade rara. Ele pediu que Isabel preparasse o lugar do papagaio sobre a geladeira, já que era sobre a geladeira que ele vivia na casa de Izadora, num pequeno poleiro branco, presente do já falecido pai de Iza.

No dia da partida o papagaio acordou quieto e calmo, como há muito tempo não fazia. Parecia ouvir tudo muito atentamente. Todos na casa estranharam. Márcio, o primeiro a entrar na cozinha para o café, olhou para o papagaio calado, depois olhou para Joana, depois de volta para o papagaio que continuava com o olhar perdido e ficou até com medo de perguntar, mas não resistiu e sussurrou:

- Ei, Jo. O que acontece? – disse apontando discretamente para Hugo.

- Não sei, seu Márcio. Cheguei hoje e ele não deu nenhum um pio... deve estar sentindo que vai embora, tadinho.

- Shhhhhh! – Márcio pediu desesperado que a empregada se calasse – Pelo amor de deus, Jo, não fala isso alto. Vai que ele começa tudo de novo...

Joana ficou sem jeito diante da repreensão do patrão, mas concordou com ele e ficou quieta. Na sequência Izadora e Marina entraram na cozinha. Silêncio.

- Nossa, que silêncio nessa casa hoje! Nem parece que vamos viajar – disse Iza com um sorriso aberto.

- Shhhhhhh! – pediu Márcio desesperado de novo, apontando para Hugo.

- Mas o que que tem, amor? – Iza não entendia a reação do marido.

- Poxa, Iza, pense. Há quantos dias não há essa paz na casa? Melhor não provocar, né? Melhor não tocar em assuntos delicados. Vai que ele entende o que está acontecendo e destrambelha de vez? – Márcio falava sério, embora a mulher e a empregada o olhassem como se tivesse enlouquecido de vez.

- Tá bom, tá bom. Não se fala mais nisso. Mas deixe suas coisas prontas, pois vou levar o Hugo no Antônio e depois volto só na hora de irmos pro aeroporto.

- Tá, tá! Fale baixo! – Márcio se esforçava para manter a paz que ele mesmo já não tinha, pois achava que a qualquer momento o papagaio começaria a gritar escandalosamente como nas últimas semanas.

Mas não. Hugo permaneceu calado e com aquele olhar perdido, como se estivesse pensando em outra coisa. Ele estava acostumado ali no seu poleiro branco, colocado sobre a geladeira. Toda vida havia sido assim. Quando foi dado à Izadora, como presente de aniversário pelo pai, primeiramente seu poleiro foi colocado numa ampla área de serviço que existia na casa nas Laranjeiras, onde Izadora morava com os pais. Desde que teve sua primeira casa sozinha, porém, Izadora o havia colocado sobre a geladeira da cozinha. E assim foi no apartamentinho da Urca, depois no Leblon, enquanto Iza morou por uns meses com um espanhol, pintor de murais, que ensinou muitas palavras divertidas a Hugo. Depois Barcelona, onde tanto Iza como Hugo ampliaram seus vocabulários. Depois de volta ao Leblon e agora ali na Gávea, já há dez anos, desde que Iza e Márcio se casaram.

Hugo tinha uma vida feliz. Aprendia fácil novas palavras. Era um papagaio pequeno e bonito, de penas verdes muito brilhantes. Todos se encantavam com ele. E ele se encantava com todos. Gostava de café, de tangerina, de ouvir música e aprender refrões grudentos. Gostava da família com a qual morava. Jamais tinha voado. Não pensava nisso. Só uma vez, quando ainda era muito jovem, haviam cortado suas asas para que não voasse. Mas ele nunca tinha pensado em voar antes disso. Tudo o que queria, tudo o que precisava, tudo o que gostava de fazer estava ali, ao seu redor, no entorno da geladeira e da cozinha onde vivia. E mesmo antes disso, quando ainda nem dava todo esse valor àquela vidinha que levava. Voar não lhe parecia uma coisa óbvia. Ele não se sentia uma ave como uma gaivota, uma fragata. Talvez ele estivesse mais para um atobá. Com a diferença de ser sozinho, ao passo que os atobás normalmente formam família, chocam ovos, convivem. Ele não precisava conviver com ninguém de sua espécie. Ele era Hugo, o papagaio inteligente da Iza. Tinha um poleiro branco, que era limpo todos os dias, era alimentado com as sementes mais frescas e as frutas mais frescas e os cafés mais frescos que se poderia provar nessa vida, normalmente medíocre, dos bichos. Por que diabos ele iria pensar em voar? Contavam-lhe piadas! E choravam de rir das suas, mesmo que ele esquecesse várias partes na hora de contar. Memorizar idéias inteiras assim era difícil, mesmo para um papagaio inteligente.

Porém desde o incidente com Otto a idéia de voar não saía de sua cabeça. Hugo não conseguia explicar porque tinha aqueles surtos histéricos onde tudo o que conseguia fazer era gritar justamente as palavras que queria esquecer. Coisas aparentemente inofensivas despertavam nele imagens macabras da cara do cachorro com a rata na boca, a chacoalhar como se fosse um pedaço de pano. Um pequeno e frágil pedaço de pano clarinho, que lentamente ia ficando vermelho até que numa fração de segundos despedaçou-se por completo. E acompanhadas dessas imagens Hugo só se lembrava de dizer “não!” porque ‘sim’ e ‘não’ são palavras muito fáceis de guardar, e em seguida as palavras que a empregada falava para Iza ao telefone para explicar desesperadamente o que tinha acontecido – Sangue! A cozinha está coberta de sangue. Muito sangue. Otto atacou a Lola. Otto matou a Lola. Otto está com a cara coberta de sangue. Não! Hugo fazia de tudo, mas não, aquelas imagens não lhe saíam da cabeça. E ultimamente tudo o que conseguia lhe distrair a atenção era a idéia de voar.
Hugo sentia-se velho. Estava com Izadora há tanto tempo. Viu homens entrarem e saírem da vida e dos apartamentos de Iza. Viu quando ela chorou dois dias e duas noites seguidas quando o espanhol engraçado foi embora e nunca mais voltou. Viu Márcio entrar em suas vidas e mudar tudo – a música, o ritmo, a harmonia, o corpo de Iza que ficou gordo de repente e mais de repente ainda ficou magro outra vez e aí trouxeram uma criança para morar com eles. Só depois Hugo entendeu que Marina era filha dos dois. Que bobagem... E aquilo parecia já ter acontecido há milênios. E voar nunca lhe fez falta. Mas agora era tudo no que conseguia pensar. Sentia-se velho, mas talvez não velho demais. Sentia-se preso àquelas pessoas, àquele lugar, àquela vida confortável e fácil que lhe davam. E ao mesmo tempo sentia-se desgastado de tudo aquilo. Era como se o ataque do cachorro tivesse lhe acordado de um transe: sua vida era ordinária. Ele não passava de um papagaio engaiolado, uma ave que jamais deu-se ao trabalho de pensar no que poderia haver nos céus por trás daquelas paredes.

Talvez Hugo não conseguisse esquecer o ataque de Otto porque viu no cão a atitude genuína de um animal agindo por instinto. Otto era bruto. Sempre fora um animal vigoroso, mesmo quando ainda era um filhote fofo. Otto sabia amar, claro. E amava com brutalidade também: derrubava Marina no chão, arranhava as pernas de Izadora, babava pela casa toda cinco minutos antes de Márcio chegar em casa – uma coisa que Hugo achava um mistério, inclusive. Mas era nítido que o cachorro salivava quando via a rata. Lola era uma rata grande. Uma ratazana gorda bem criada. Hugo não se sentia atraído. Talvez não tivesse aquela índole. Não tinha esse mesmo instinto do cachorro. Mas percebia, entendia de alguma maneira, a atração macabra do cachorro pela rata.

No fundo, Hugo admirava Otto. O cão tinha provado uma coisa que Hugo talvez jamais conseguisse provar – ele tinha agido como um animal selvagem, não como um animal domesticado. Ele tinha tido coragem e, mesmo tendo pago o preço com a própria vida, tinha experimentado o gosto do sangue, o gosto da vitória. “E eu?”, pensava Hugo. E pensava no que seria o seu destino – passar a vida repetindo mediocremente a piada dos outros? E se ele nunca se recuperasse daqueles surtos de gritar o nome de Otto e Lola? E se ele nunca mais conseguisse esquecer a amedrontadora cara do cachorro coberta de sangue? E se os donos resolvessem se livrar dele de vez por causa da gritaria que ele não conseguia controlar?

E na iminência de ter outro surto, pensou novamente em voar. Mas ali, no apartamento de Iza seria impossível. “Preciso de um plano”, pensou. Talvez à caminho do apartamento de Antônio. Talvez quando saíssem do elevador. Talvez quando estivessem no carro com a janela aberta. “Puxa, já pensou? Voar pelos céus do Rio de Janeiro? Talvez eu não esteja tão velho assim”, devaneava.
Mas não pôde. Iza levou seu poleiro para o carro, sempre conversando com ele naquele tom maternal que ele adorava:

- Huguito, não se preocupe, meu bichinho. Vamos só passar uns dias fora, para descansar. Você vai ficar na casa do Antônio, que você adora. O Tony mora numa casa gostosa, com uma vista liiiinda, que eu tenho certeza que você vai adorar. Mamãe vai ter saudades mas quando você nem imaginar já estaremos de volta.
E Hugo olhava para Iza com os olhos vidrados. Um olhar de amor profundo, que ele sentia incondicionalmente por ela. Mas talvez também um olhar de despedida. Estava confuso... não sabia o que fazer. E a vontade de gritar subia-lhe pela garganta, mas quando chegava ao bico, ele pensava em voar. Fechava rapidamente os olhinhos tristes e pensava no que poderia ser a sensação de planar sobre a cidade maravilhosa.
Quando chegaram ao apartamento de Antônio, porém, Hugo sentiu uma paz como há muito não sentia. Realmente o lugar era lindo, todo aberto, com janelas gigantescas e uma vista tão bela que fez Hugo pensar que aquela era a imagem mais linda que ele já tinha visto na vida: o Cristo Redentor sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Antônio estranhou a mudez do papagaio e perguntou para Iza como iam as coisas. Iza contou sobre o comportamento diferente do bicho naquela manhã. Hugo ignorou os comentários. Concentrou-se naquela sensação de paz que o lugar lhe trazia. Não sentia mais vontade de gritar.

Iza despediu-se e foi-se embora para suas férias. Hugo não queria ser mal agradecido, mas desejava que a dona não voltasse mais. Talvez se ficasse ali com Antônio sua vida poderia voltar ao normal. E assim passaram-se os dias e Hugo, bem tratado por Antônio e por Isabel, viveu dias mais felizes ainda do que já havia vivido até então. O plano de fuga e o desejo de voar de repente pareceram-lhe sem sentido. Ele ainda pensava nisso, mas sua coragem ia, pouco a pouco, sendo minada pela sensação boa de estar naquele lugar tão belo.

Eis que num belo domingo de sol – Antônio lia o jornal sossegado, esparramado na sala com uma xícara de café, e Hugo em seu poleiro a tomar também seu café recém-servido – toca o interfone. Antônio atendeu e Hugo só conseguiu ouvir:

- Quem? Ah, pode deixar subir, tudo bem.

Hugo ficou ansioso. Seria Iza voltando para buscá-lo? Será que ele queria ir embora? Há dias ele não falava palavra, será que devia tentar se manifestar agora? Será que deveria voltar ao plano de fuga? Será que finalmente havia chegado sua hora de voar? Teria ele coragem para tanto?

Quando a campainha tocou, seu coração disparou. A vontade de gritar veio-lhe ao bico novamente. Ele agarrou-se na ideia de voar. Tentou acalmar-se. Mas quando Antônio abriu a porta, para sua surpresa, ouviu uma voz masculina desconhecida, Antônio meio sem jeito, quase em dúvida se deixava pessoa entrar ou não:

- Oi André. Puxa, não sabia que você estava com o Thor... Vamos entrando, só te peço para deixá-lo preso porque...

Mas antes que Antônio terminasse a explicação, André e Thor entraram na sala e quando Thor, um rottweiler negro e gigante, colocou os olhos em Hugo, desatou a latir. Um latido grosso, grave, ameaçador. Meu deus! Hugo nunca tinha visto tantos dentes na boca de um cachorro antes. E agora? Hugo mediu a distância entre seu poleiro, o cachorro e as janelas escancaradas. Era agora ou nunca. Ia voar! Se não desse conta, iria cair antes e poderia ser pego pelo cachorro. Se conseguisse chegar até a janela, poderia tentar continuar voando, mas podia perder as forças e acabar espatifando-se na rua, na água da lagoa, sabe-se lá onde. Mas pro diabo com tudo, ia voar! Abriu as asas com tanta rapidez, bateu com toda a força que nem sabia que tinha, derrubou toda a comida e os mimos que tinha no poleiro e sentiu o corpinho verde começar a flutuar. Mal acreditou na própria força, na própria coragem. Estava voando!

E entre os gritos histéricos de Antônio, os latidos ameaçadores de Thor e os olhos esbugalhados de André, o papagaio cruzou a sala feito um furacão. Pegou uma brisa morna que encanava entre a janela da cozinha ao fundo e as janelonas da sala e simplesmente voou numa reta até alcançar a... liberdade? Então isso era voar? Era fácil assim? Deu-se conta então do que estava fazendo. Do que estava deixando para trás. Deu-se conta do quão incerto era seu destino e seu sucesso. Mas a sensação de amplitude, de leveza, de emoção que sentia jamais havia experimentado antes.
Hugo não olhou para trás. Bateu suas asas enferrujadas e lançou-se à propria sorte. Não sabia seu destino, mas o que importava? A verdade é que seu destino sempre fora incerto. E ele voou ao seu encontro para nunca mais voltar.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

fui à pé

resolvi voltar pra casa de táxi. ouvi no rádio q o dia hj teve os mesmos índices de trânsito dos dias "normais" em sp. uma pena. não me senti heroína por ir pro trabalho à pé, mas me senti bem por ter pelo menos a chance de colaborar - um carro menos na rua, coisas novas q a gente vê no caminho... sei lá, mas a mim parece q é válido mudar um hábito de vez em qdo. parece q não, mas muita coisa muda qdo a gente muda.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Pensando em outra coisa

Choveu a noite toda e tive medo de ficar no escuro, mas fiquei. Pensei em mil coisas que precisava fazer e depois esqueci. Pensei em mais mil coisas que precisava esquecer, mas delas não esqueci. Em Porto Alegre chove, no Rio faz frio, mas aqui o dia amanheceu bonito, úmido e com sol. Vou lá fora pensar em outra coisa.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Insensatez

Sejamos sensatos, analisemos os fatos e então decidimos. Decidimos nada. Você acha que escolhe, que pode, que faz. Mas o que te faz tremer? Porque temes o que nem sabe o que é? O que te emociona e te eleva para o nível incontrolável de sentir prazer? Prazeres pequenos mesmo. Pequenas emoções. Sejamos insensatos de vez em quando...

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Saber esperar

As esperas me atrapalham, me confundem, me arrastam como se arrasta o tempo quando quero que ele passe. As esperas me arrastam pelo chão da minha alma ansiosa. Me arrastam pelos cabelos, como quando quero que cresçam e parecem nunca crescer. As esperas são como janelas, fechadas, me impedindo de ver. Me deixam na berlinda, à margem do que quero ser. As esperas confundem o que posso e o que quero ter.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Rotas

Não sei mais se deixamos, se fazemos, se movemos os moinhos e esperamos que os caminhos se definam por si sós. Não sei se é uma questão de sol. Não sei se é uma questão de sal. Não sei se me faz bem ou mal. Nem sei... Mas vejo, espero, intuio, não sei o que sentir. Nem o que dizer. Nem para onde ir. Porque os pontos cardeais sempre me confundiram. E quando o norte muda, tudo muda. E quando você muda, eu mudo, e de repente já não sei mais onde estou. E o que importa? Não sei, mas há você para me levar, me guiar, me perder, me forçar a ser mais que sou, o que preciso, o que busco sem saber existir. Me perco. Respiro, volto, acho tudo tão importante. E o ponho ao lado do mundo e vejo sua insignificância. E vejo que se pode ser assim, tudo tão pequeno ou tão grande, tão longe e tão igual, no mesmo nível, em outros planos, em térmicas a flutuar ou profundidades abissais a flutuar também, brincando com a gravidade, brigando com a brutalidade dos fatos, seres, fazeres que temos todos os dias. Não, não é fácil existir. Mas o quê? Desistir? Desistir não, que sempre há uma última risada, um engano, um nada, um vazio que vai passar. Um fiapo de algo bom, que não é nada mais que algo frívolo, mas ainda assim real. Não há outro modo: a felicidade é uma viagem individual. Me pergunto se embarcam na minha. Se embarcam na sua. E se em algum momento os barcos se encontram. Faz sentido. E talvez nesse momento é quando as coisas fazem sentido mesmo, por menos sentidos que pareçam ter.

Rumos

Viu o cachorro atravessando a rua. Tão seguro, tão certo do que estava fazendo. Olhou para os lados, esperou passarem os carros, seguiu com a cabecinha erguida, o rabo relaxado mas alerta, as patas ágeis, num trotar quase elegante. O cachorro parecia saber para onde ia. Ela não sabia.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Enganos

Não há sentido, propósito, motivo. Que motivo haveria de ter? Não importava-se mais. Quando importava-se, resolvia-se, o resultado era um engano. Não queria mais enganar-se. Mas a solidão tirava-lhe o discernimento. Ia para rua caçar, feito fazem os bichos famintos que destroçam animais pequenos não pela necessidade da força, mas para descarregar o veneno. E mesmo assim o gosto na boca era o da insatisfação. Distraía, mas não saciava. Enganava seus sentidos, nunca sua razão.

Vai embora

Lá vai ele outra vez pra longe. Fica nesse vai-e-vem, fica-não-fica, sai-não-sai de mim. Me esquece no minuto em que vira a esquina. Ou sobe no ônibus. Ou entra no avião, no barco, no mar ou no oceano de carros espalhados por essa cidade impiedosa como ele. Vai embora e não me leva junto, mas me leva o sossego e aquele sorriso meu que eu gosto tanto e que já não existe mais. Lá vai ele de vez. E eu vou esperar a primavera. E uma chuvinha, talvez.

Insônia compartilhada

Passaram horas conversando. Já era meia noite, mas era como se fosse meio dia. A cabeça invadida por pensamentos roubava o sono dele. Os sentidos atrapalhados e confusos alimentavam a insônia crônica dela. Então ficaram ali, cada um no seu canto, com muitos quilômetros de estrada e mar entre eles, a pensar naquilo tudo, nas coisas que a gente não controla, que não espera, que não dependem de nós, e em como somos suscetíveis a uma palavra bem colocada, um gesto, uma frase. Afinal, que razão haveria para sentir aquelas coisas se não fosse possível dividi-las com quem entendesse o que estavam dizendo? E então ele disse a ela – amanhã vou ser uma pessoa melhor. E foram dormir felizes.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O coração de Santiago



Santiago foi ao médico porque não sentia mais nada. Nem dor, nem amor, nem medo, nem piedade. Nem fome, nem sede, nem vontade de nada. Sentia-se morto. O coração parecia ter parado de bater e ele agia lenta e friamente diante de tudo, como se estivesse drogado, amortecido, numa viagem própria, mas superconsciente. Uma consciência prática. O que era azul, era azul. O céu era apenas o céu. O mar era apenas o mar. Ele não tinha mais paixão. Não tinha mais apreço pelas coisas que havia conquistado.

Um dia havia sido um homem do mar. Fazia viagens de navio cuidando das máquinas. Já havia dado a volta ao mundo assim. Conhecia a China, o Japão e o inesquecível Estreito de Magalhães. E naquela época o mar lhe metia medo. Sua imensidão e inconstância faziam com que se sentisse pequeno e frágil. Mas ele se forçava a ser destemido. Encarava embarcações impróprias que desrespeitavam a linha d’água para transportar mais carga. Não tinha medo de atirar-se na escada de quebra-peito, ao contrário, era ligeiro quando agarrava-se nela e em segundos já estava embarcado. Não desgostava do mar, mas não tinha grandes sentimentos por ele além do medo. Não era uma coisa racional, afinal sabia nadar, sabia do vento, sabia das máquinas, sabia das marés e da força da lua sobre elas. Sabia coisas básicas e outras complexas, mas ainda assim sentia medo e nunca em sua vida havia atirado-se no mar, mesmo nas águas abrigadas e bonitas de alguma parada onde todo o resto da tripulação costumava se divertir mergulhando a partir do convés. Aquilo não era para ele. Além de ter medo, não tinha vontade.

Agora tudo isso era passado. Era como se aquilo tudo tivesse acontecido em outra vida. Aquele não era mais o seu ofício há tempos e não tinha falta do mar. Nem mais medo, nem espanto, nem nada. Não sentia mais nada. Estava ali diante do doutor respondendo a perguntas que lhe pareciam inúteis. Mas sua ausência de sentidos e sentimentos era preocupante. Estava confuso. Sentia que morreria só e miserável se não tratasse aquele mal que não sabia o que era e nem de onde vinha. Não compreendia o que estava se passando e não desejava aquilo para si.

Um dia já havia amado uma mulher. Mais de uma na verdade, mas havia um dia escolhido uma para fazer de esposa. Uma mulher boa, forte, sem preguiça nem exigências para cuidar da casa, dos filhos, da roupa, da comida. Com ela constituiu família, formou patrimônio, tornou-se homem de respeito, apesar das tatuagens mal feitas nos braços, herança de seu tempo no mar.

E nada de nenhum dos dois universos agora lhe restava. Agora era um homem só - não sentia mais apreço pela companheira, nem pela família, nem mesmo pelos netos, ainda crianças inocentes e encantadoras. Nada daquilo causava-lhe importância ou diferença. Estava só e não sabia nem dizer se aquilo era bom ou ruim.

A ausência de sentimentos causava-lhe também ausência de apreço pelo que havia possuído (e gostado) e pelo que ainda restava-lhe na vida. Não queria mais nada do que tinha. E também não queria mais nada novo. Não queria mais viver, mas tampouco desejava morrer. Estava fenecendo em sua própria existência. Sua sorte (ou azar?) porém, era que tinha tudo muito claro - via com muita lucidez o que estava lhe acontecendo. Apenas não tinha vontade de fazer nada à respeito. Todavia o raciocínio prático mostrava-lhe que era necessário fazer algo. Do contrário, estaria arruinado. E ali estava ele, diante do médico. O doutor ouvia sua história com atenção e estudava seus sintomas tentando entender sua condição. Exames e análises foram feitos e nada parecia fora do lugar exceto por uma única e espantosa coisa: o coração de Santiago havia diminuído de tamanho e suas batidas estavam cada vez mais lentas e espaçadas. Uma projeção ao revés (tentativa de criar um histórico médico que Santiago não tinha) apontava para uma coisa curiosa e rara: seu coração, ao longo dos anos, estava encolhendo e perdendo o ritmo normal de bater. Hoje ele tinha o pulso de uma pessoa em coma, com a diferença de que estava consciente e conseguia interagir com as pessoas - embora não tivesse vontade.

A ideia de morrer não lhe agradava, mas também não lhe causava repulsa. Assim como o mar não lhe emocionava mas também não lhe causava mal estar. A mulher não lhe desagradava, havia sido uma boa esposa, mas ele não a queria mais. Ele não odiava sua família nem suas coisas, apenas não tinha mais amor nem estima por nada nem ninguém; nem pela vida nem pela morte. Estava no limbo ainda em vida. E como não acreditava em deus, nem no céu nem no inferno, não sabia como solucionar sua aflição - que na verdade não era sua, já que nada sentia, mas que via nas pessoas poucas que ainda restavam à sua volta e tentavam, de maneira chocada e urgente, compreender o que estava lhe acontecendo.

O médico convocou colegas para estudar o caso. Checaram histórias similares, mas nada nem de longe assemelhava-se à história daquele homem cujo coração havia encolhido física e emocionalmente. O coração diminuído e as batidas lentas explicavam a falta de vitalidade e até a ausência de vontade para várias coisas, mas não explicavam a ausência de sentimentos.

Outros médicos iam juntando-se ao redor do caso. Psiquiatras, cardiologistas, clínicos e pesquisadores tentavam entender o mal que atingia Santiago. Mas as respostas aos testes, exames e tratamentos a que lhe submetiam eram inconclusivas. As opiniões médicas divergiam. Não conseguiam saber a causa e por consequência não conseguiam tratar a doença.

O coração do homem continuava a diminuir. Seu pulso já mal existia. Mesmo assim ele estava vivo e lúcido. Mesmo que se sentisse morto por dentro. A ausência de amor e piedade fazia a convivência com ele insuportável. A falta de compaixão havia transformado Santiago num homem mau e cruel, intolerante com todos. Não queria mais saber de ninguém e despachava as pessoas como se fossem animais sarnentos.

Ele estava doente mas aos outros sua doença parecia apenas tirania ou imbecilidade. Sua ausência de amor pelos outros provocou a mesma ausência naqueles que antes o cercavam. Ele estava doente e só. E tudo indicava que iria acabar assim. E isso não lhe era triste nem desagradável, mas lhe era estranho. Ficava pensando se era justo tudo acabar assim...

Enquanto era tratado tinha tempo para refletir e ia, lentamente (no ritmo do seu coração), chegando à conclusões surpreendentes: tinha tido uma vida dura; havia trabalhado num ofício pesado durante anos e o quê aquilo havia lhe rendido? Uma casa, sustento para a família, educação para os filhos, o que mais? Toda uma vida para essas mesmas pessoas que o abandonavam agora (mesmo que ele não se importasse)? Santiago havia amado mulheres que lhe ensinaram coisas, prazeres diferentes, emoções circunstanciais e fugazes. E no que essas emoções haviam contribuído para sua vida? Ele não tinha lido muitos livros, era um homem de educação básica. Ainda assim foi capaz de ensinar aos filhos como andar, como se portar, como construir uma vida digna. Mas perguntava-se agora - para quê tudo aquilo? Em breve seria comido pelos vermes, em breve seria reduzido à nada.

Depois de meses debruçados sobre o caso a única conclusão unânime dos médicos foi a de que muito em breve o coração de Santiago iria parar. Tudo apontava para isso. Os batimentos estavam tão lentos e o coração tão pequeno que naturalmente ele não teria mais forças para funcionar. Estudaram um transplante, mas isso já não era mais possível. Todo o organismo do homem havia se adequado àquele coração lento e pequenino.

Santiago agora mal falava. Não tinha vontade. Padecia no hospital calado e só, sem nenhuma aflição, visita ou compaixão. Ele estava ali, vendo a ampulheta de sua vida escorrer grão por grão. E assim passaram-se muitos meses até que um dia ele não acordou mais. Segundo os médicos, a morte foi súbita e indolor. Mas os exames finais revelaram algo que, mesmo sendo previsível, deixou todos espantados.

A causa mortis de Santiago nunca havia sido vista ou imaginada: seu coração não havia parado; havia desaparecido. E assim, pela primeira e única vez de que se tinha conhecimento na história, um homem morreu porque seu coração encolheu até sumir. E a família, atendendo à contragosto seu último pedido, colocou sobre sua lápide "Aqui jaz Santiago, homem honesto e sem coração."

sábado, 11 de setembro de 2010

Lentamente

Anoitece. Você me esquece lentamente. A luz muda lentamente. O tempo esquenta lentamente. E lentamente a noite invade, você evade, evapora em outras ondas, some com outras vibrações. Anoitece lentamente, no mesmo ritmo das coisas que passam.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Eternidade

Três minutos parecem três séculos de vez em quando. E você, tão perto, parece um deserto, coisa sem fim, não é meu e não sai de mim. Não me abriga nem me abandona. Me torce, me inspira, me traga e me cospe, me ejeta, me maltrata feito faz o mar na ressaca. Me destrata com aquele mesmo desdém, a mesma falta de preocupação que a onda que arrasta faz. Não tem pudores, não tem dores de consciência. Não tem compaixão ou tolerância. Três minutos... ainda estou aqui. E você não está nem aí.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Vivendo

Me alimento de tentativas e erros. Conheço e me despeço todos os dias das pessoas possíveis, das situações cabíveis ou inviáveis, das coisas que ainda quero fazer e do que quero repetir. Tento o certo, mas sou atropelada pelo incerto e só o que parece errado é o que me sai. É onde consigo me mexer e sentir que vivo. Viver dói.

Navegar é preciso

Mania essa de querer tudo perfeito, no lugar, sem falhas. Mania de achar que tudo na vida é feito tatuagem, coisa eternizada com dor na pele por escolha própria, como se existisse para lembrar todos os dias tuas escolhas, tuas falhas, tuas migalhas das coisas que és. Melhor viver com os defeitos do que conviver com os efeitos de uma vida sem a inconstância das ondas do mar.

Romance ideal

Me deixa cuidar de você. Entrar na sua vida pela porta da frente. Apontar seus lápis, colorir sua história em quadrinhos. Me deixa ser seu mangá, te proteger dos monstros japoneses que querem invadir nosso mundo de sonhos. Me deixa modelar para você. Me eternize em suas fotos artísticas. Me deixa ser sua musa. Me deixa te inspirar. Inspire-se no meu amor, nos meus cuidados, no meu carinho, em minha vontade pura e delicada de estar com você sem pressa, sem obrigações, sem senões ou definições. Me deixa te ensinar o que eu gosto. Me deixa aprender você.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Soluço improvisado

Ela soluça como um bebê. Bebe água, pede sustos, prende a respiração e nada lhe traz o alívio da normalidade. O soluço intermitente e irritante vai roubando-lhe a paciência, minando seu humor, desafiando sua imagem cartesiana, posada, pensada para jamais contrariar suas vontades. Ela soluça mais forte e rendida diante do ridículo da situação põe-se a rir. É um riso improvisado, mera distração. Ela soluça e o que se há de fazer? O que se há de fazer?

Então passa

E essa luz, que se apaga e se acende, que recende no que sou, lembrando-me do que não quero? Espero, e minha espera vã, num instante desaparece, entristece, me amortece e quando eu vejo passou. Porque o que sou nem sei, parei de pensar. No instante em que acontece, melhor deixar. Se não se pode nadar contra a corrente, melhor esperar passar.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Ao encontro

Às vezes não me encontro a não ser no outro. No que ele usa, no que ele faz, no que ele pensa, no que ele lê. Eu não sou ninguém. Sou feito de alguém que é um pouco de muitos outros. Não sou ninguém porque não sei ser uma coisa só. Não aprendi. Não me ensinaram. E agora sinto que já tenho medos demais para aprender. E aprendo, mas minhas notas são duras, técnicas, não há talento. Me encanta é o talento do outro. Me encanta ele se encontrar em mim. Aí sim, me encontro.

Cínicos

O dia amanhece cheio de possibilidades. A noite acontece e suas supostas surpresas chegam cheias de previsibilidade. Estou ficando cínica, analiso com precisão clínica coisas mínimas, meras implicâncias, intolerâncias que antes não me atingiriam. E o que importa? Estão todos cínicos, representando papéis, organizando as vontades na agenda, adiando pessoas, alternando amores, cancelando as dores como se fossem tarefas conflitantes. E eu que não queria nada pela metade, de repente não encontro nada além de pedaços, migalhas que me alimentam, mas não matam minha fome.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Sorte estelar

É dia, é noite e eu no desajuste do fuso, confuso com a exatidão da falta de padrão. Você adormece, amanhece, cresce na minha frente. Eu descrente, finjo que não sinto e minto, mesmo não mentindo sobre nada mais. E o nó não desfaz - está apertado e meu ânimo derrotado. Minha sorte é a teimosia - coisa de signo, como a alegria.

Abraço a gosto

Ai que bom, me faça rir que ando precisando. Pegue leve, releve, agosto foi um mês de gosto estranho, feito fruta pequena porque faltou chuva, sabe? Mas vamos relaxar então, já é outro mês e mais uma vez a lua mudou, a maré vazou e já dá para caminhar, curtir somente respirar e talvez te abraçar um pouquinho.

Primeiro

Dia primeiro. Número só, que me olha desolado, isolado, sozinho, ainda na primeira linha, no começo da frase sem carregar história alguma. Número sem data, sem dado. Número cansado, viciado em ser só.

Setembro

Hoje amanheceu outro mês. E você talvez nem tenha reparado. O vento já começou a mudar e as azaléias encheram a cidade de cor. Somos todos sensíveis ao tempo, mesmo quando ele demora a passar.