segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O coração de Santiago



Santiago foi ao médico porque não sentia mais nada. Nem dor, nem amor, nem medo, nem piedade. Nem fome, nem sede, nem vontade de nada. Sentia-se morto. O coração parecia ter parado de bater e ele agia lenta e friamente diante de tudo, como se estivesse drogado, amortecido, numa viagem própria, mas superconsciente. Uma consciência prática. O que era azul, era azul. O céu era apenas o céu. O mar era apenas o mar. Ele não tinha mais paixão. Não tinha mais apreço pelas coisas que havia conquistado.

Um dia havia sido um homem do mar. Fazia viagens de navio cuidando das máquinas. Já havia dado a volta ao mundo assim. Conhecia a China, o Japão e o inesquecível Estreito de Magalhães. E naquela época o mar lhe metia medo. Sua imensidão e inconstância faziam com que se sentisse pequeno e frágil. Mas ele se forçava a ser destemido. Encarava embarcações impróprias que desrespeitavam a linha d’água para transportar mais carga. Não tinha medo de atirar-se na escada de quebra-peito, ao contrário, era ligeiro quando agarrava-se nela e em segundos já estava embarcado. Não desgostava do mar, mas não tinha grandes sentimentos por ele além do medo. Não era uma coisa racional, afinal sabia nadar, sabia do vento, sabia das máquinas, sabia das marés e da força da lua sobre elas. Sabia coisas básicas e outras complexas, mas ainda assim sentia medo e nunca em sua vida havia atirado-se no mar, mesmo nas águas abrigadas e bonitas de alguma parada onde todo o resto da tripulação costumava se divertir mergulhando a partir do convés. Aquilo não era para ele. Além de ter medo, não tinha vontade.

Agora tudo isso era passado. Era como se aquilo tudo tivesse acontecido em outra vida. Aquele não era mais o seu ofício há tempos e não tinha falta do mar. Nem mais medo, nem espanto, nem nada. Não sentia mais nada. Estava ali diante do doutor respondendo a perguntas que lhe pareciam inúteis. Mas sua ausência de sentidos e sentimentos era preocupante. Estava confuso. Sentia que morreria só e miserável se não tratasse aquele mal que não sabia o que era e nem de onde vinha. Não compreendia o que estava se passando e não desejava aquilo para si.

Um dia já havia amado uma mulher. Mais de uma na verdade, mas havia um dia escolhido uma para fazer de esposa. Uma mulher boa, forte, sem preguiça nem exigências para cuidar da casa, dos filhos, da roupa, da comida. Com ela constituiu família, formou patrimônio, tornou-se homem de respeito, apesar das tatuagens mal feitas nos braços, herança de seu tempo no mar.

E nada de nenhum dos dois universos agora lhe restava. Agora era um homem só - não sentia mais apreço pela companheira, nem pela família, nem mesmo pelos netos, ainda crianças inocentes e encantadoras. Nada daquilo causava-lhe importância ou diferença. Estava só e não sabia nem dizer se aquilo era bom ou ruim.

A ausência de sentimentos causava-lhe também ausência de apreço pelo que havia possuído (e gostado) e pelo que ainda restava-lhe na vida. Não queria mais nada do que tinha. E também não queria mais nada novo. Não queria mais viver, mas tampouco desejava morrer. Estava fenecendo em sua própria existência. Sua sorte (ou azar?) porém, era que tinha tudo muito claro - via com muita lucidez o que estava lhe acontecendo. Apenas não tinha vontade de fazer nada à respeito. Todavia o raciocínio prático mostrava-lhe que era necessário fazer algo. Do contrário, estaria arruinado. E ali estava ele, diante do médico. O doutor ouvia sua história com atenção e estudava seus sintomas tentando entender sua condição. Exames e análises foram feitos e nada parecia fora do lugar exceto por uma única e espantosa coisa: o coração de Santiago havia diminuído de tamanho e suas batidas estavam cada vez mais lentas e espaçadas. Uma projeção ao revés (tentativa de criar um histórico médico que Santiago não tinha) apontava para uma coisa curiosa e rara: seu coração, ao longo dos anos, estava encolhendo e perdendo o ritmo normal de bater. Hoje ele tinha o pulso de uma pessoa em coma, com a diferença de que estava consciente e conseguia interagir com as pessoas - embora não tivesse vontade.

A ideia de morrer não lhe agradava, mas também não lhe causava repulsa. Assim como o mar não lhe emocionava mas também não lhe causava mal estar. A mulher não lhe desagradava, havia sido uma boa esposa, mas ele não a queria mais. Ele não odiava sua família nem suas coisas, apenas não tinha mais amor nem estima por nada nem ninguém; nem pela vida nem pela morte. Estava no limbo ainda em vida. E como não acreditava em deus, nem no céu nem no inferno, não sabia como solucionar sua aflição - que na verdade não era sua, já que nada sentia, mas que via nas pessoas poucas que ainda restavam à sua volta e tentavam, de maneira chocada e urgente, compreender o que estava lhe acontecendo.

O médico convocou colegas para estudar o caso. Checaram histórias similares, mas nada nem de longe assemelhava-se à história daquele homem cujo coração havia encolhido física e emocionalmente. O coração diminuído e as batidas lentas explicavam a falta de vitalidade e até a ausência de vontade para várias coisas, mas não explicavam a ausência de sentimentos.

Outros médicos iam juntando-se ao redor do caso. Psiquiatras, cardiologistas, clínicos e pesquisadores tentavam entender o mal que atingia Santiago. Mas as respostas aos testes, exames e tratamentos a que lhe submetiam eram inconclusivas. As opiniões médicas divergiam. Não conseguiam saber a causa e por consequência não conseguiam tratar a doença.

O coração do homem continuava a diminuir. Seu pulso já mal existia. Mesmo assim ele estava vivo e lúcido. Mesmo que se sentisse morto por dentro. A ausência de amor e piedade fazia a convivência com ele insuportável. A falta de compaixão havia transformado Santiago num homem mau e cruel, intolerante com todos. Não queria mais saber de ninguém e despachava as pessoas como se fossem animais sarnentos.

Ele estava doente mas aos outros sua doença parecia apenas tirania ou imbecilidade. Sua ausência de amor pelos outros provocou a mesma ausência naqueles que antes o cercavam. Ele estava doente e só. E tudo indicava que iria acabar assim. E isso não lhe era triste nem desagradável, mas lhe era estranho. Ficava pensando se era justo tudo acabar assim...

Enquanto era tratado tinha tempo para refletir e ia, lentamente (no ritmo do seu coração), chegando à conclusões surpreendentes: tinha tido uma vida dura; havia trabalhado num ofício pesado durante anos e o quê aquilo havia lhe rendido? Uma casa, sustento para a família, educação para os filhos, o que mais? Toda uma vida para essas mesmas pessoas que o abandonavam agora (mesmo que ele não se importasse)? Santiago havia amado mulheres que lhe ensinaram coisas, prazeres diferentes, emoções circunstanciais e fugazes. E no que essas emoções haviam contribuído para sua vida? Ele não tinha lido muitos livros, era um homem de educação básica. Ainda assim foi capaz de ensinar aos filhos como andar, como se portar, como construir uma vida digna. Mas perguntava-se agora - para quê tudo aquilo? Em breve seria comido pelos vermes, em breve seria reduzido à nada.

Depois de meses debruçados sobre o caso a única conclusão unânime dos médicos foi a de que muito em breve o coração de Santiago iria parar. Tudo apontava para isso. Os batimentos estavam tão lentos e o coração tão pequeno que naturalmente ele não teria mais forças para funcionar. Estudaram um transplante, mas isso já não era mais possível. Todo o organismo do homem havia se adequado àquele coração lento e pequenino.

Santiago agora mal falava. Não tinha vontade. Padecia no hospital calado e só, sem nenhuma aflição, visita ou compaixão. Ele estava ali, vendo a ampulheta de sua vida escorrer grão por grão. E assim passaram-se muitos meses até que um dia ele não acordou mais. Segundo os médicos, a morte foi súbita e indolor. Mas os exames finais revelaram algo que, mesmo sendo previsível, deixou todos espantados.

A causa mortis de Santiago nunca havia sido vista ou imaginada: seu coração não havia parado; havia desaparecido. E assim, pela primeira e única vez de que se tinha conhecimento na história, um homem morreu porque seu coração encolheu até sumir. E a família, atendendo à contragosto seu último pedido, colocou sobre sua lápide "Aqui jaz Santiago, homem honesto e sem coração."

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