terça-feira, 31 de julho de 2012

CAETANEANDO

Como uma maldição, agora, toda vez que ouvia Caetano, lembrava dele e ria. Foram casados por mais de dez anos. Tinham muitas coisas em comum: discos, livros, filmes… Em outras não combinavam, como qualquer casal. Uma delas era Caetano. Ele não suportava. Ela tinha todos os discos. Nem era mais comum hoje em dia alguém ter LPs, mas ambos tinham, muitos, o que deixou tudo bem difícil na hora de separar. Avaliar de quem eram os livros do Nick Hornby, de quem eram alguns quadrinhos, alguns CDs… talvez essa fosse a coisa mais triste da separação: deixar para trás coisas que você não tem bem certeza se deveria levar com você, não pelo valor, mas pela história, mérito ou circunstância. Numa tentativa de deixar o ar mais leve ele fez uma piada enquanto ela olhava indecisa para estante dos discos: “Os do Caetano você pode levar todos, tá?”

sexta-feira, 27 de julho de 2012

O amor polígamo


palavra do dia: queixume

queixume sm. Lamúria, lamentação.

Um ano depois


Fazia um ano. Conheceram-se naquela viagem. Estavam sós. Coisa rara, gente viajando só. Mas gostavam e falaram à respeito; havia valor nas viagens solitárias, nas coisas que enxergavam com mais atenção porque viam sem ter ninguém por perto para dividir. Viajando só, ponderaram, estavam sujeitos a coisas nunca imaginadas, e a prova era essa: conheceram-se lá. Estranharam-se, na verdade, quase como se não quisessem se encontrar. Não buscavam nada, mas como ficar indiferente a um momento daqueles, com cenário perfeito, temperatura alta, céu limpo, azul de dia e quarado de estrelas à noite, a lua começando a sorrir, maliciosa? Encontrarem-se daquele jeito não parecia real, parecia uma história em quadrinhos, tudo desenhado com naquim e pintado com aquarela; um parêntesis no tempo e espaço; um conto curto e feroz, como um soco no queixo. Um ano depois ainda era difícil acreditar que tinha realmente acontecido.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Quando você presta atenção


O ar parado, sem ser frio nem quente, perdido entre as estações. É inverno e o frio pinga. Aparece dia sim, dia não, como o sol, como tudo o que é vivo e não é igual todos os dias. Porque as pessoas não são feitas de pedra, por mais duras que sejam. Não são feitas para perecer, por mais frágeis que sejam. Não são feitas para hibernar, por mais inóspito que o mundo seja – porque ele também tem verão, veranico, calor, abraço de amigo, beijo de criança que estala, gente que sabe virar estrela, jogar capoeira, tocar guitarra, pintar com aquarela, fotografar com filtro vermelho, escrever um poema com mais dez pessoas. E o ar parado, sem ser frio nem quente, permanence indiferente à quem não presta atenção.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Conselho de velho


O velho ria. Ria de quê, de quem? As pessoas passavam por ele e ele apenas sorria. Diante de toda aquela miséria, embaixo da fuligem, o velho sorria. Estava sempre ali naquele banco, naquela praça, rindo. Um dia perguntei a ele do que tanto ria e ele me disse:
- Sou velho e estou cansado. Gosto de sentar aqui e olhar as pessoas, elas são divertidas. O mundo, eu sei, nem sempre é divertido. Aliás, as pessoas também não. Mas que posso eu fazer? Sou velho. Já vivi tudo isso. Agora só sorrio. Prefiro. Porque há gente que me sorri de volta. Bom, há gente que também não sorri, nunca! Mas que posso eu fazer? Não posso fazer nada, apenas sorrir. Acredite, meu filho, ainda que não exista exatamente um motivo, eu acho bem melhor sorrir.

Seus gostos


Eu não gosto das suas roupas, dos seus sapatos, mas gosto de você. Não gosto dos seus esportes, não gosto de não conhecer seus amigos, sua família, seu cachorro, o poster infantil que deve existir na sua parede, mas eu gosto de você. Não gosto de não saber os motivos, de não saber o que você leu, de não saber o que você fez no dia em que seu avô morreu, se você chorou e quanto tempo demorou para rir depois disso. Eu não gosto disso, dessas coisas que te acontecem e eu não sei. E mesmo assim eu gosto de você. Gosto que você me faça rir e que me faça bem sem fazer o mínimo esforço. Gosto da sua mão no meu cabelo e de como isso me faz sorrir sozinha, de olhos fechados, quando me lembro da sensação. Gosto de você porque gosto, porque me é natural e é assim que tem que ser, sem recibos, sem impostos, títulos ou rótulos, sem senões. Gosto do gosto de verdade que sua boca tem. Gosto que ela me diga coisas que tenho que ouvir, mesmo que não goste de algumas, mesmo que eu me defenda. Gosto que de vez em quando você me desarme e me diga o que fazer, já que muitas vezes eu gostaria, mas realmente não sei. Gosto disso tudo. Gosto de aprender. Gosto de entender seus gostos. Gosto do seu gosto. Gosto de você.

Até breve


Há tempos não se viam. Esbarraram-se por acaso e resolveram parar para uma bebida, já que tinham tempo. Era raro terem tempo. Conversaram a noite toda, discutiram com tapas na mesa assuntos muito mais filosóficos do que fatos atuais de suas vidas. A velha parceria que tinham, gravada numa memória pouco usada, mas rígida, válida, permanecia lá. E dar risada junto era como voltar a andar de bicicleta. Com o bar já subindo as cadeiras, o garçom bocejando enquanto trazia a conta, despediram-se num abraço apertado que durou tanto que ninguém poderia dizer quanto. Não havia motivo para nostalgia. Todo dia despediam-se de algo ou alguém. Assim era a vida deles.

Mau humor

Sentiu o mau humor crescer ao redor de si como se fosse erva daninha. Sentia-se a própria árvore, sem movimentos, sem vontades, sujeita ao sol, à chuva, ao frio, às mudanças das estações. Não via vantagens em controlar a própria vida – a verdade é que não a controlava. Seu humor controlava. E estavam de mal.


quarta-feira, 18 de julho de 2012

Vítimas das circunstâncias


E os dias sucediam-se, um após o outro, como era de se esperar. Esperavam notícias. Notícias que não chegavam. Experimentavam o sabor do pânico subir à boca como refluxo, reflexo do corpo temendo o pior. E não era atávico temer? Como conviver com o medo diário de não haver novidade? Como viver todo dia sem saber se o dia seguinte seria cruelmente igual ou brutalmente diferente? Eram cúmplices, mas tinham a vida suspensa e ter que conviver com isso era também reavaliar a vida que tinham antes – era possível retomar o que tinham, o que eram antes de tudo acontecer? Sabiam que não. As notícias eventualmente chegariam e eles teriam que lidar com elas. Teriam que escrever uma nova história.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Apenas dormir


Helena – Tenho dormido bem melhor.
Felipe – Que bom, Lena. Fazia um tempo né?
Helena –  É, eu dormia, mas meu sono estava picado…
Felipe –  Eu notei. Te falei outro dia que não sinto mais você dar aqueles tremeliques no meio do sono. É assim que eu sei quando você está realmente dormindo.
Helena –  Acho engraçado você prestar atenção no meu sono.
Felipe –  No começo isso me assustava…
Helena –  Sabe o que estou precisando?
Felipe –  O quê?
Helena –  Dormir uma noite inteira com você.
Felipe –  É, da última vez foi bem bom… Mas não me lembro se você dormiu direito aquela noite.
Helena –  Ah, dormi. Foi ótimo, acordamos cedo até no outro dia, lembra? Era domingo… Então. É disso que estou precisando.
Felipe –  Nem faz tanto tempo. Andei ocupado, você sabe.
Helena –  Eu sei. Mas preciso de uma noite assim. Gosto de dormir com você. Gosto quando a gente se encaixa e eu fico ouvindo você respirar.
Felipe –  Hmmm, sim, eu gosto disso, desse encaixe.
Helena –  Eu não gosto muito quando você ronca.
Felipe –  É, imagino. Não deve ser nada confortável.
Helena –  Mas você não ronca sempre.
Felipe –  Eu nunca sei quando ronco.
Helena –  Você quase sempre ronca, mas ronca baixinho, de um jeito cadenciado. De alguma maneira absurda, isso me ajuda a dormir.
Felipe –  Lena…

sábado, 14 de julho de 2012

Percebe depois


Durante aqueles meses foi feliz como nunca na vida. E por várias vezes depois disso, tentou entender como tudo acontece assim, sem que a gente se dê conta.
Há como registrar aquele momento de um modo que ele seja repetido com realidade toda vez que sentirmos necessidade de viver aquilo de novo? Há como enquadrar, guardar numa caixa, num arquivo, num frame, fazer um back up?
Mas durante aqueles meses foi impossível pensar nisso. O tempo estava inteiramente tomado. Viviam naquele ritmo frenético do piloto automático, programado para ligar e desligar com um alarme acertado com antecedência. E conferido.
Há na ignorância uma bênção, é claro. Não a ignorância estúpida, é claro. Mas na ignorância de ser ingênuo; de não conhecer a profundidade dos fatos; de ter algumas coisas como certas e não duvidar delas pelo conforto do caminho seguro.
Há na angústia da fome a recompensa do que não se pensava ser possível, seja isso bom ou ruim. Há na descoberta das fronteiras os perigos que não se conhecem, as coisas desnecessárias, os erros e as adversidades. E por mais errantes ou seguros que sejam os caminhos, nenhum deles é seguramente garantido.
Quando pensava nisso tudo e lembrava que durante aqueles meses foi feliz como nunca na vida, às vezes desejava que nada daquilo tivesse realmente acontecido.

Acontece


Eu desci pela rua à pé, só, prestando atenção na sombra que caminhava no meu ritmo, imitava os meus passos e parecia mais feliz que eu, ainda que eu não visse seu sorriso. Eu pisava devagar, tentava não fazer barulho, não atrapalhar aquela sinfonia secreta da rua, seu som de frequência baixa, que só quem presta atenção percebe. Eu não queria que me percebessem, que me vissem caminhar, que seguissem minha sombra. Há na gente essa ideia de que andar pelas ruas na madrugada não é seguro. Se não pelas coisas que não existem - e de que temos medo - tememos pelo mal real e violento que existe; a morte iminente, inerente à própria vida.
Eu desci a rua toda à pé, no passo firme e decidido de quem está indo, focado, inalcançável. Tudo pode acontecer. Mas nada acontece.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O que há na sexta-feira


Gente lentamente apressada. Para onde vai tanta gente? Vão fazer o quê com tanta pressa? Os rostos cansados na janela do ônibus, os olhos de frio das pessoas que atravessam a rua. Vão para casa, vão para o trabalho, a sexta começa ou termina tudo outra vez? E o que há no ar que excita as pessoas? O que há na sexta-feira que cabe tudo o que não pode ser uma semana inteira?

Vento que passou


O que não serve mais, o vento leva feito as cinzas do cigarro.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

As melhores coisas da vida


O cheiro do café de manhã. O beijo, aquele, melhor do mundo. As cores e os sons do fundo do mar. Dormir uma noite inteira e acordar com a luz do dia ainda fraquinha. Comida de mãe. Sorvete de limão no calor. Um mergulho para refrescar as ideias. Aquela blusa de moletom. Uma surpresa boa no meio da tarde. Uma melodia que traz lembranças. Uma música cuja letra foi feita para você. Coisas que a gente não explica, não mede, não pede, não precisa. Coisas que se disfarçam de bobagens, de oportunidades; coisas que acontecem de vez em quando. Coisas que não têm título, mas se tivessem, poderiam ser as melhores coisas da vida.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Aceito

Às vezes você tem que aceitar que algumas coisas simplesmente não fazem sentido.

História abstrata


Tinham coisas para dizer um para o outro. Tinham história. Tinham histórias, páginas e páginas escritas, fotografadas, documentadas. Tinham um livro inteiro, cheio de  ilustrações surrealistas com as formas de Dalí e as cores de Chagall. Tinham atravessado países, línguas, limites. Viram de perto desertos e oásis. E outras coisas que não tinham plural, como eles e os moai da Ilha de Páscoa. Agora de que adiantava tanta fome, tanta sede, tanta piedade? Pediram-se desculpas mil vezes e nenhuma delas foi suficiente para perdoar. Tinham tanto a dizer, mas não encontravam as palavras. E aquilo que já não precisava ser dito continuava a se repetir, como num disco riscado. Num determinado momento se perguntam como tudo aconteceu. E embora lembrem-se de cada linha da história, não sabem explicar a bola de neve, o novelo de lã depois do nó, a borboleta que entrou no casulo verme e saiu de lá colorida para morrer 24 horas depois. Quem se importa com as coisas não ditas, não feitas, não vividas, não vistas? Eram como aquela borboleta, azul como o laço de Alice.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Confusões de sexta-feira


Por mais sexta-feira que seja, tem dias que a criatividade e a motivação resolvem unir forças e fazer motim. Põe a culpa na sinusite, na enxaqueca ou em qualquer dor que doa, e resolvem fazer greve. Reinvidicam serem melhor remuneradas, reconhecidas, apreciadas. Te lembram que a vida desregrada e as doenças mal curadas voltam como bumerangue, direto na nuca, com efeitos colaterais alucinógenos de tão cruéis. Pois sexta-feira é um dia ruim para greves. Atrapalham o trânsito, irritam quem tem o azar de cruzar com elas, conseguem solidariedade, mas duram pouco na memória. Sexta-feira é um dia em que acontece muita coisa. E já que é dia de todos os santos, não custa pedir: deus nos livre de perder o bom humor!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Beijos necessários


Quero te beijar em lugares públicos, impróprios, à despeito de quem olha.
Quero te beijar como se fosse te engolir; como se cada beijo fosse o primeiro ou o último; como se nada mais importasse ou existisse.
Quero te beijar sem me preocupar com a hora, com os prazos, com as obrigações mundanas.
Quero te beijar como se teu beijo fosse meu ar comprimido e, sem ele, eu não pudesse respirar.
Mas quero viver. E quero que teu beijo me salve, me resgate, me ajude a cruzar o dia, mesmo que não haja nele nada mais importante ou melhor do que te beijar.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

MANUAL DE INSTRUÇÕES DE SOBREVIVÊNCIA NA SELVA


Conserve os bons hábitos. Durma bem, acorde cedo, alimente-se de maneira saudável. Exercite-se, leia, raciocine. Mantenha-se informado. Cerque-se de boas companhias, interaja. Cuide bem dos amigos, da família, dos animais, das plantas e do planeta. Pague suas taxas, suas contas, seus pecados, se for o caso. Tome seus remédios, tome boas decisões. Lembre-se de dizer por favor, com licença e obrigado – e nunca subestime o quão poderosas coisas simples, como a gentileza, podem ser. – Cuide-se para não praguejar, não reclamar demais, não perder o bom humor e a esperança. Não espere que façam por você o que só você pode fazer. Viver bem é simples. Pena não haver manual.