quinta-feira, 31 de março de 2011

Masala

Ele tinha um Ganesha tatuado no braço. E foi assim que eu gravei seu nome no celular. Era meio carioca, meio italiano. Tinha nome de gângster e atitude elegante-sem-frescura. Parecia gentil. Tinha um sorriso de menino e olhar de homem cruel. Estava com a família e parecia feliz. Me disse depois que era aniversário da mãe. Achei doce ele falar da mãe transparecendo amor daquele jeito, sem se preocupar se aquilo teria qualquer efeito. Tempos depois, quando me beijou de maneira violenta, aquilo confirmou dentro de mim a pequena confusão que faço sempre, de estranhar essas pessoas especiais, que a gente não encontra com muita frequência. O equilíbrio entre o doce e o sal, como no molho de tomate para não ficar ácido.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Óbvio

Eu me senti tão eletrificada, tão descontroladamente ansiosa quando ela me disse as novidades. Eu li e reli o livro que ela me deu. Eu tive tantas ideias... pensei nas soluções mais diversas. Mas aí ela começou a demorar. As coisas que eu tinha imaginado começaram a não fazer mais sentido. Me perguntei se eu não estava delirando, se não estava me enganando ou sendo enganada... mas a quem posso culpar por acreditar demais nas coisas? E agora, descontrolada novamente, estou eletrificada pelas novidades que eu já sei. Como é que pode a gente ser tão óbvio?

terça-feira, 29 de março de 2011

Quando a noite acabou

Eram irmãs. Mas não eram. Tratavam-se por irmãs porque tinham crescido juntas. E a família de uma tratava a outra como se fosse parente mesmo. Entretanto a família nem tinha mais tanta importância assim. A relação delas é que era surreal, um amor meio louco, meio doentio. Elas tinham semelhanças, não apenas físicas, de personalidade também. Mas olhando por um ângulo não muito diferente percebia-se que uma não tinha quase nada a ver com a outra.

Uma falava pelos cotovelos. A outra era quieta. Uma era séria e ria pouco. A outra não sabia ficar sem mostrar os dentes. Uma latia, mas não mordia. A outra miava, mas era muito mais perspicaz e perigosa.

Às vezes ficavam meses sem se verem. E outras vezes passavam muitos dias juntas, coladas, todas as 24 horas do dia, sem descanso. Era exaustivo às vezes, mas era bom como um bom porre.

Às vezes voltavam pra casa depois de uma noitada e entravam em casa às 9 da manhã como se fosse 9 da noite e começavam tudo de novo, sem interromper a conversa.
Em algumas noites a intensidade da conexão ficava tão insuportável que elas não agüentavam. Não conseguiam lidar com aquilo, nem com suas vidas, refugiavam-se na companhia uma da outra, mas ainda precisavam de mais. Então bebiam muito, entorpeciam-se. Passavam mal alternadamente, uma ajudando a outra a segurar os cabelos. Eram tão sincronizadas e donas da situação, que anunciavam o momento de vomitar com delicadeza e elegância. Diziam, opa, vou até a pia. E a outra dava um tempo e depois ia até lá.

Era um exagero, sabiam. Mas era um universo particular e intransponível. Dentro daquele apartamento falavam de todas as coisas. Falavam de tudo e de todos. Era como se aquele lugar fosse o forte onde as princesas junkie se escondiam e se abasteciam de torpor para continuar a viver. Qualquer coisa fora dali tinha menos importância.

Mas naquela noite, naquela em especial, a visitante precisava muito da leoa de chácara do forte. Ela precisava de alguém que ouvisse tudo, a história inteira. Não que a outra já não soubesse. Mas ela precisava contar tudo, todos os detalhes. Precisava pôr pra fora, talvez chorar, talvez gritar, ficar histérica. Precisava beber, precisava fumar, precisava tomar uns barbitúricos e ficar bem louca.

A outra até estranhou um pouco. A irmã nunca fora grande fã de drogas mais pesadas. Um bagulhinho vez ou outra. Um docinho pras festas mais animadas, mas nada muito além disso. Essa coisa de chapar era predileção da outra irmã, que gostava de extremos e nunca precisava se esforçar para passar dos limites. E divertia-se com isso mais do que ninguém.

Mas naquela noite, não. Aquela era a noite da moça falante beber e ingerir e engolir e injetar tudo o que ela quisesse. A outra ia só preparando, acompanhando, oferecendo.

Enquanto bebiam e fumavam e a baixinha preparava, sentada à mesa, os coquetéis molotov que engoliam sem reflexão alguma, a outra ia e voltava da cozinha, cruzando a copa, chegando na sala e voltando, como se estivesse numa trilha de formigas e ela mesma fosse várias formigas ao mesmo tempo, cumprimentando-se quando uma vinha e a outra voltava. Deliravam. Uma em voz alta, a outra calada.

Na sala, à meia luz, eram observadas pela tv ligada e muda, esperando sua vez de participar da história. O aparelho de som, ligado como sempre, dia e noite, com ou sem gente em casa, tocava baixinho e randomicamente músicas que batiam em seus ouvidos como bofetadas. Às vezes ouviam, às vezes não. Às vezes pareciam ouvir vozes que vinham da estante de livros. Aquelas pessoas todas que elas liam e declamavam uma para a outra, ali, desorganizadas nas estantes, às vezes pareciam sussurrar coisas para elas.

Ali, naquela sala à meia luz, sentavam-se no sofá depois de beber todos os uísques e vodcas e conhaques que haviam na casa, depois de fumar todos os cigarros e charutos e baseados, depois de tomar todos os doces, as balas, os inibex, depois de saírem e voltarem, depois de começarem tudo de novo, e vomitarem alternadamente na pia, no bidê e num vaso de cerâmica marajoara, depois de tentarem chorar e não conseguirem, depois de tudo, sentavam ali naquela sala, à meia luz, no sofá que as engoliam como se fossem jujubas licorosas. E ali descansavam dos seus delírios, de suas histórias. A falante calava e a calada entendia. Operavam numa freqüência diferente, como os cães, como os gatos. Uma freqüência só delas. E nada além daquilo, fora dali, tinha a mesma importância.

Afundaram no sofá naquela noite e esperaram até a noite acabar. Quase se afogaram. Mas quando amanheceu, a maré baixou.


[EXERCÍCIO DE ARGUMENTO baseado no conto de Fernando Bonassi “ELA ANDOU QUILÔMETROS"]

Monólogo do fim

Ele me disse que não entendia o que estava acontecendo. Que me sentia distante, que me achava triste, sem vontades, sem brilho algum no olhar. Disse que se sentiu culpado, que preferiu me dar espaço. Disse que essas coisas o deixam confuso... que ele não sabe como lidar com essas tristezas que as mulheres têm. E no meu caso era pior. Porque eu não gostava muito dessas coisas de mulher, de sentir ciúme, de gostar de novela, de falar mal da mãe dele ou odiar os seus amigos. Ele me disse que isso era muito esquisito, que ele não sabia que existem mulheres assim. Ele disse que antes tinha medo disso, de não saber lidar, de eu me tornar um bicho grande e meu apetite aumentar e eu acabar engolindo todo mundo. Ele se deu conta, enquanto falava, de que era isso mesmo que tinha acontecido. Ele disse que se sentia enforcado, mas como se ele mesmo tivesse preparado a cena, sabe? Ele mesmo, lentamente, amarrando o laço, colocando no pescoço, ajustando bem o nó... que exagero! Aí ele mesmo riu. Que constrangimento... como somos infantis. Ele disse isso e olhou pra baixo, como se procurasse alguma coisa no chão. Alguma coisa pesada e invisível para os cães, que só enxergam em duas dimensões. Eu achei mesmo que numa determinada hora ele iria começar a latir. Ou a uivar, sei lá. Eu achei que ele iria parar de falar naquela hora. Mas então ele começou a repetir algumas coisas. Disse que precisava achar onde é que ele havia falhado. Em que momento ele não tinha me dado espaço? Quando foi que eu precisei e não pude contar com ele? Vai, tenta lembrar de uma única vez em que não gozamos? Vai, me diz, é isso que ficou faltando?... Então ele parou um pouco, respirou, suspirou, ameaçou dizer alguma coisa, mas parecia que estava sem ar. Ele me pediu desculpas, disse que se descontrolou. Disse que estava exausto, que parecia que havia uma guerra acontecendo dentro dele, que ele se sentia um quadro do Bosh, invadido por criaturas estranhas numa guerra bizarra, uma guerra santa em que as duas partes têm tanta razão de que estão brigando por uma causa justa que simplesmente ficam cegas e preferem morrer a ouvir o que outro lado quer dizer... Nossa... foram tantas coisas que ele disse sobre isso que eu achei uma hora que ia entrar em transe. Um pout-pourri de músicas de dor começaram a invadir a minha cabeça. Músicas do Johnny Cash, do Elvis Costello, do Tim Maia, da Sade, do Elton John... Nossa, eu achei que minha cabeça ia explodir. E ele continuava falando. Disse por fim que tinha entendido tudo. Que estava ferido, que se sentia traído, mas não por mim, por ele mesmo, pela cegueira absurda que ele tinha tido naqueles últimos tempos. Disse que se sentia sem dignidade, mas que a culpa não era minha, que isso era coisa de homem, um ser menos evoluído, que não sabe lidar bem com a dor e com o orgulho. Ele disse que era como qualquer outro homem, que não iria jamais me dizer essas coisas se eu não tivesse provocado. Que se estivesse infeliz, ia dar um jeito de me deixar resolver as coisas, porque não teria coragem de me largar. Imagina, ele disse, imagina que presunção a minha achar que você fica melhor na minha companhia do que sozinha? Ele disse isso e riu. E nessa hora eu achei que ele ia chorar, mas ele não chorou. Ele parou de rir e seu rosto endureceu tanto que eu achei que ia quebrar. Ele respirava forte e eu podia até sentir o hálito doce dele... o hálito doce e o olhar mais amargo que eu já vi naqueles olhos. Ele ficou muito tempo assim. Eu achei que ele não ia dizer mais nada, mas ele me olhou uma hora, bem de perto, bem lá no fundo da minha alma, de um jeito quase ameaçador; então ele disse com a voz um tom abaixo do que costuma ser, se esforçando para pronunciar todas as palavras inteiras: vai embora, pode ir, eu sei que essa é a única solução, eu sei que eu vou sofrer, que você vai sofrer, que minha mãe vai sofrer, que as pessoas todas e os peixes do oceano também vão sofrer... mas o que a gente pode fazer? Nunca é bonito um amor quando acaba. E essa foi a ultima coisa que ele me disse aquele dia. Eu ouvi tudo com muita atenção. Mas não pude... não disse nada.

Bom dia, meu amor

Gosto quando você lê o jornal de manhã e espalha os cadernos, um a um, como se fossem flores de um buquê. Gosto de como você segura a xícara de café enquanto lê o jornal, com todos os dedos segurando o corpo dela ao invés da asa. Gosto do seu hálito doce e seu olhar distante enquanto espalha a manteiga no pão. Observo seus pequenos hábitos ridículos e cultivo suas manias como se fossem minhas. Já você, nem nota, nem sabe. Toma café todo dia como se fosse domingo.

domingo, 27 de março de 2011

Domingo de sol

Então o dia me estendeu a mão e disse "vem, deixa eu te dar um beijo. hoje vou te fazer feliz".

sábado, 26 de março de 2011

Lágrimas de nada

A menina chorou, chorou, chorou. A amiga segurava sua mão e não sabia o que dizer. Tinha medo de perguntar. Não sabia o que fazer para ajudar. O dia parecia ter sido perfeito. Estavam desde cedinho juntas, tinham feito mil coisas, falado de mil assuntos... tinham dado risada, tomado limonada, falado de meninos... Então a chorona se acalmou e respondeu, mesmo sem a outra perguntar – “desculpa... sabe o que é? é que às vezes sinto tanta saudade de tanta coisa, assim, tudo tão junto, que não sei... não agüento. às vezes acho que vou transbordar e acabar me afogando em mim mesma...” A outra achou aquilo muito estranho, mas ficou quieta. Às vezes não há nada a dizer.

quinta-feira, 24 de março de 2011

ROTEIRO REVISTO

Vou reescrever tudo. Vou rever e refazer do meu jeito porque do jeito que está não está bom. Vou criar outros personagens. Vou aprender a escrever diálogos. Eu sei que essa vai ser uma parte difícil, mas e daí, qual não é? Vou reaprender a fazer o que eu já sei, porque do jeito que eu sabia, já não serve mais. Vou reescrever você. Vai ter que ser muito bom, senão apago.

MEMÓRIAS

Quando ouço o Herbert Vianna ou qualquer coisa que pareça Paralamas do Sucesso, lembro daquele dia em que ouvimos no seu carro. Coisas que me lembram você... Não é uma coisa simples, sabe? Há um bombardeio diário de códigos subliminares. Música, nomes, cores, cheiros, cidades inteiras, peixes, praias, ruas, a sombra de uma árvore. Se me faz bem? Não sei. Dói de um jeito estranho, porque não sonhei, foi real. E a verdade é que jamais poderá ser do mesmo jeito novamente. Isso é bom. Não é?

quarta-feira, 23 de março de 2011

O encontro

Fora seduzido, reconhecia. Havia cometido uma canalhice, reconhecia. Mas a menina recitou Shakespeare – “quem é tão firme que não possa ser seduzido?” e então não havia nada que ele pudesse ainda fazer. Sentia-se como a presa atacada por um bicho menor e mais rápido, agindo em câmera lenta, como mostram os programas de tv. No fundo, tinha que reconhecer, era exatamente o que ele queria. Não queria seduzir. Queria ser seduzido. Há que se ter talento para ambas as coisas. E há que se ter sorte para encontrar quem perceba isso.

TAÇA GUANABARA



Ela era paulishta, como ele gostava de dizer. E ele era o carioca mais lindo que ela já tinha visto no Rio, onde era impossível não ver muitos homens lindos. “E aí, paulishta, tá goshtoso?” ele perguntava enquanto ela devorava um pote de sorvete de lichia com água de coco. “Meu, super goztozo”, ela respondia, carregando no sotaque para provocar. Ele adorava a paulistanice dela. Todo fim de semana a mesma coisa: ela voava para o Rio sexta à tarde, ele saía mais cedo da loja, passava no Mil Frutas e comprava os sorvetes de sabores estranhos que ela gostava, encontravam-se em casa, trepavam rapidinho, só pra matar as saudades, ela tomava sorvete, saíam, emendavam a sexta no sábado até virar madrugada de domingo. Aí dormiam domingo a manhã inteira, depois trepavam longa, preguiçosa e deliciosamente. Cinco minutos para recuperar as forças e lá ia ele pra cozinha achar alguma coisa pra comer. Na volta ele trazia o sorvete dela. E passavam a tarde de domingo assim, vendo o campeonato carioca, tomando sorvete e trepando mais uma vezinha no intervalo ou no final do jogo. Por causa dele ela até aprendeu a gostar dos times do Rio, apesar de convencê-lo vez ou outra a assistir algum jogo paulista na tv a cabo.

terça-feira, 22 de março de 2011

As nuvens

Março é um mês nublado. As águas vêm fechar o verão. Os ventos começam a ficar insistentes, frios sem causar muita dor, vêm discretos, pegam a gente de surpresa, como naquele momento em que alguém esbarra em você e não pede desculpas.

As nuvens começaram a chegar devagarinho naquele mês de março. De sua cama a menina olhava pela janela e via o céu ir mudando aos poucos. Era a primeira coisa que fazia todos os dias – acordava e esticava o pescoço para espiar pela janela como andava o céu. Ouviu um tio, amigo do pai, uma vez dizer que os dias de céu azul eram sempre mais felizes e nunca mais se esqueceu disso.

Quando acordava e via algum traço de nuvem borrando seu ideal de céu de brigadeiro a menina torcia um pouco o nariz. E torcia para que o dia fosse feliz mesmo assim (o que nem sempre acontecia, culpa das nuvens, ela pensava).

Ela não falava disso, achava que as pessoas não entenderiam essa crença quase cega sobre algo tão naturalmente arbitrário. Mas diante de um dia radiante ela se sentia confiante para enfrentar qualquer coisa. Já num dia nublado ela notava que o seu esforço tinha que ser muito maior. E tinha certeza disso, pois sabia: coisas ruins nunca haviam lhe acontecido num dia de sol pleno.

Mas agora era março. Março acelerando seus dias como se tivesse pressa de virar a folhinha e começar logo outro ciclo, outra estação. E as nuvens, comuns para a época, começaram a se formar.

Desta vez, porém, diariamente ela notava um fenômeno diferente acontecendo diante de sua janela: as nuvens chegavam e iam se acumulando, uma sobre a outra, construindo lenta e diariamente um front entre sua cama e o seu dia condenado a não ser tão perfeito assim.

Todo dia uma nuvem nova. Todo dia uma preocupação nova. Quando chovia, a menina se excitava, ficava observando com ansiedade se a formação de nuvens fazia algum movimento. Mas não... elas continuavam ali. Talvez maiores (alimentavam-se?), talvez mais escuras (faziam-se sombras para suportar o sol nas costas?), talvez mais ameaçadoras e vingativas (sabiam elas sobre seu desejo em fazer com que aquelas nuvens sumissem todas?).

A menina era o reflexo da preocupação. A família e os amigos andavam preocupados – o que há com essa garota que não come direito, não fala mais com ninguém, fica pendurada na janela o dia todo com esse olhar perdido? Estaria apaixonada, já nessa idade? Mas a paixão não deixa as pessoas felizes? Nem sempre..., pensava quieta. Ela não respondia. Quando insistiam ela se esforçava: não tenho nada, é que o dia está tão nublado...

Quando mesmo entre as nuvens o sol aparecia, ela se animava um pouquinho. Faltava-lhe o sol. Mas nem ele compensava a falta que ela sentia do céu inteirinho azul.

Lembrou-se de um dia de verão em que estava numa ilha e viu o céu intensamente azul de vários lugares. Do meio do mar, da praia, do alto de uma montanha, de um forte em ruínas. Se fechasse os olhos ela ainda podia sentir o sol aquecendo seu rosto e sua alma se perdendo naquele infinito céu azul, da mesma cor de um extremo ao outro em seus 180o possíveis de se ver.

Lembrou-se de uma tarde de inverno em que viu o sol nascer da sua janela e se pôr do outro lado, enquadrado pela janela da sala, do outro lado da casa. Era sempre assim no inverno, vários dias frios e muito azuis, com o sol nascendo e dormindo com ela. Poucas pessoas notavam que o sol muda de posição para nascer e se pôr nos extremos do ano. Mas ela não poderia nunca ignorar esse fato com suas janelas fazendo o enquadramento do espetáculo diário. E isso ela nunca mais esqueceu, pois foi esse dia de inverno um dos mais felizes de sua vidinha ainda curta.

Lembrou-se também de uma madrugada, tão incomum de se estar na rua, mas naquela noite, por causa de um casamento de parentes, aconteceu como num sonho. Devia ser 5 horas da manhã e a noite estava virando dia. Ela via o céu limpo e intenso mudando de cor lentamente, enquanto o ar ficava doce e enjoadinho com o cheiro de dama da noite cumprimentando o dia.

Mas no outono tudo era mais difícil. Ela não tinha lembranças assim de um dia de outono. E especialmente agora com aquelas nuvens imóveis, aglomeradas no horizonte diante de si, mas tão longe do seu alcance. Era março, era outono, era uma agonia lenta e atrevida ficar ali, hipnotizada por nuvens imóveis. Ela não tinha vontade de se mover. Queria ficar como as nuvens. Sentia-se escravizada por elas.

Ela teve vontade de dormir, hibernar. Dar boa noite em março e acordar só em junho, quando o inverno já traria de volta o sol para as janelas e as nuvens, com sorte, já teriam partido.

Era pressão demais para uma criança, ela mesma pensava, confrontando sua pouca idade e seu alto atrevimento em achar que já era adulta o suficiente para estar certa disso. Mas de quê adiantava? Sua preocupação era infantil, uma fantasia talvez; mas sua tristeza era real – a falta de sol lhe tirava o brilho e a falta de céu lhe tirava a leveza que as crianças têm que ter.

A coisa boa de ser criança é que a capacidade de adaptação é sempre maior. E assim a menina desistiu de olhar as nuvens. Sucumbiu aos pedidos inicialmente pedidos e depois transformados em ordem – hora da escola, hora de brincar, hora de comer, hora de dormir... Chega de olhar para o nada!

Com o tempo ela foi perdendo o hábito de olhar o céu assim que acordava. Afinal, ela sabia: as nuvens continuavam ali. Com o tempo ela parou de pensar no assunto, já que havia tantas outras coisas que ocupavam seu pensamento e seu tempo agora. Com o tempo veio o inverno, a primavera, outro verão. Com o tempo a menina esqueceu aquele outono em que as nuvens lhe deixaram triste. Com o tempo ela voltou a ser feliz.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Te pergunto uma canção

Vencer a vaidade, o medo sem razão – por insegurança, incertezas, dúvidas bobas... – vencer isso tudo parece, mas não é difícil demais. O que há para ser vencido? Saber se há possibilidade de sucesso ou a possibilidade do fracasso? Se for o sucesso então vamos celebrar, viver cada minuto, escrever aquela história em que a gente fica se beliscando para ter certeza de que é real. Mas se for o fracasso... o quê? Decepção, saudade, rejeição, tristeza? Isso não é o pior. Pior é o limbo, derrota para moinhos de vento. É ter mais medo da dúvida do que da resposta. E se você não tivesse medo, o que faria? Ouvi dizer que o mundo vai acabar em 2012. Me deu medo de ser verdade e talvez ser pouco tempo para estar onde queremos, com quem queremos, fazendo o que realmente queremos fazer.

Passei a ligar menos para as coleções, a posse de coisas e pessoas, acumular mais do que me emocionar. Mas os ciclos se alternam como as estações do ano. E você se vê tendo de voltar às coleções, às convenções, às necessidades não só de pagar contas, de estar preparado para imprevistos, oportunidades; mas também às necessidades de produzir, de conviver, de aprender e reaprender. Andar para frente, mesmo que tenha que dar um ou dois passos para trás. Ou para o lado. Ou dançando com leveza conforme a música, porque no fundo tudo isso poderia ser apenas uma canção.

domingo, 20 de março de 2011

PELAS PAREDES

Olhou para as paredes assustada, como se seus maus pensamentos fossem declamados como poemas amorais. Olhou para as paredes como se elas pudessem olhar de volta em reprimenda. E depois deu de ombros, como faria não só com paredes, mas também com todo o resto que já não servia mais. Precisava de horizontes, de amplitude, não de paredes, de divisão. De concreto agora só o medo.

NOTAS DE OUTONO

O verão acabou sorrateiro, como num fade out. Acabou lento e quieto. Quebrou devagar como faz a lua já no dia seguinte ao de ser a mais cheia do ano. O verão acabou quase sincronizado com o fim do carnaval, com gosto de fim de férias e ressaca de brigadeiro... Já é outono, é o que diz o termômetro, o calendário, as cores do céu, escuro mais cedo, frio mais tarde. Já é outono de novo e de repente já passou muito tempo desde aquele dia no verão.

Café

O que explica gostarmos do que nos faz mal? Cerveja, cigarro, café, gente que não nos quer, que não nos estima ou, pior, que não nos suporta... Por que será que há coisas tão óbvias e determinantes com as quais temos de lidar mesmo que o gosto seja amargo e que o estômago recuse a invasão? E lidamos por escolha própria. Nos envenenamos e achamos bom. Nadamos no próprio problema como se ele fosse uma piscina rasa e não o mar de ondas ora pequenas ou grandes – esquecemos que a piscina é o parêntese, aquele momento precioso no tempo, e o mar em toda sua vastidão é essa vida que não é só sua, só minha, mas de todos e tudo mais que acontece a nossa volta. Eu não gosto das ondas grandes, mas elas existem. Eu gosto muito de café, mas meu estômago não.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Pó de colombina

O carnaval estava ali na esquina, pra gente dobrar e ver o que ia acontecer. O carnaval estava ali, diferente de antes, mais escuro e carregado nas cores, mais denso e quase frio. Já era março e havia águas, quase inofensivas, quase a brincar – elas também – o carnaval oscilante, ora vagaroso, ora vigoroso. O carnaval estava ali, mas agora já são cinzas.

Fim de recreio

Não me resta ser musa se não há você a se inspirar. Não me resta saber se você quis, quer ou há de querer – não me resta, não preciso, nem queria. Eu queria era escolher, era ser certeira uma vez mais – eu queria olhar e saber. Mas me cansa brincar. Me cansa o carnaval. Me cansa não resolver se assim é melhor ou se continuo buscando de outro jeito.

Something tells me you’re not doing all the things you’d like to

Something tells me you’re not doing all the things you’d like to. What can I say? I’ve been so wrong in trying foreseeing every little detail, trying to be carefull and end up messing things largely up... Either way, something tells me you should be writing more, drinking more, living more outside this great and empty castle you’re building for yourself.

‘Happiness is only real when shared’ – remember this? So don’t lock your heart, man. Don’t be so dull and dazed. Put yourself together and help me a bit around here, won’t you?

I don’t have a map. And I don’t have a clue of what we’re supposed to do now. I’m stuck in my own swampy emotions and I just can’t get out of it.

I want to get out, believe me. I want to simplify and just let things happen, doing whatever it folds for me. I’m not so worried anymore about doing what everybody else expects, nor what’s obviously more advantageous, I’m just looking for some peace, you know? Aren’t you?

So I’m here, waiting for things to happen. Thinking about you and everything else, all so huge... and I’m here, terrified, frozen, numb in a state I’ve never pictured myself before.

And wanted to tell you this ‘cause something tells me you’re not doing all the things you’d like to. Hope you manage to do them. And maybe I’ll manage to do mine.

Sonho de sereia

Ontem dormi cedo e sonhei com você. Estávamos no mar e você nadava até mim. Eu esperava, flutuando, vendo você de longe, nadando tão facilmente para chegar até mim. E quando você chegou estava ofegante, ficou sem jeito ao me ver, não sabia bem o que dizer, não tinha planejado... mas disse algo e sorriu. E isso bastou. Eu me enrosquei em você, e você abraçou minhas pernas com as suas. E sorrimos novamente. Minha pele, você disse, parecia lisa como a de um peixe – ou uma sereia! – Ontem dormi cedo e sonhei que era uma sereia. Sua sereia.

Oito horas

Oito horas. Acho sempre estranho quando o tempo se divide assim. Uma hora mais tarde. O tempo ficando mais longo. Nós ficando mais velhos. E distantes.

Nuvens infelizes

Pairou sobre eles uma nuvem de dúvidas, negra e pesada, como essas do céu do verão paulista. Vamos esperar então que chova, sabendo que há uma violência iminente, mas que depois dela o sol pode brilhar novamente – e um céu claro é sempre mais bonito de olhar.

Vamos esperar com a calma de um monge e a alegria de uma criança.

O amor é só o amor

O amor é só o amor.
Acontece de encontrar o olhar de alguém e alguma coisa brilhar.

O amor é só o amor.
Acontece de a gente insistir sem muito esforço. Aplicar a boa intenção e esperar o olhar de volta – e quando ele volta, saber que ele está voltando.

O amor é só o amor.
É sonhar de olhos abertos, sob a lua, sobre uma pedra sobre o mar, debaixo de uma árvore, no silêncio da madrugada.

O amor é só o amor.
Existem instantes de intensidade máxima. E pausas longas, de aparência interminável. Há que se ter paciência, perdoar as demoras, as falhas, os enganos e deixar a vida trazer novos acertos.

O amor é só o amor.
Só ama e é amado quem está pronto e sabe o que fazer com o amor – e ainda que não saiba, que esteja pronto e disposto a aprender.

Há que se saber esperar pelo amor.

A paz fractal

Os movimentos às vezes são pequenos. Coisas que adiamos sem motivo, pequenas obrigações deixadas para depois, coisas que geram senões, senão já estariam resolvidas. A gente se engana com coisas, tempos, pessoas, oportunidades – a gente se engana com a gente mesmo.

Pensar reto não é difícil, mas nosso funcionamento é fractal, assim como as praias, o contorno das estrelas, o universo...

A gente tem que se perdoar por ser difícil, mas sem a condescendência de não tentar. Tudo bem começar por pequenos movimentos – são eles que impulsionam todo o resto (para o pacífico ou atlântico).

TATTOO YOU

Ele achou que podia esquecer, deletar aquela parte. Mas percebeu, não é tão simples. As pessoas cruzam nossa vida por uma razão. E não saem mais. Tornam-se parte do que somos, tatuagens; entram na história e não há como pular o capítulo. Mesmo que se queira esquecer elas ficam lá, no momento vivido junto, dividindo bobagens, risos, choros... coisas que nos fazem ser agora o que não éramos há 5 minutos.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Dança da Esperança

Danço só. Porque quero. Danço com quem quero. Quando preciso. Enquanto espero. Quando tenho vontade. Quando o desejo manda ou regula ou tempera. Danço com outros como se fossem você. Danço à espera de nossa dança. Danço sem ter um porquê.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Flores são exigentes

Você exigiu, como uma flor, que eu te cuidasse. Desafiou minha sensibilidade e persistência. Questionou, calado, minha habilidade com sua delicadeza. Me mostrou que as flores são frágeis e implacáveis - se você não cuida como precisam, elas fenecem antes da hora e aquela beleza murcha passa a ser um atestado de sua incompetência. Mas me ensinou também que há flores e flores. E algumas delas morrem mais cedo porque assim é que é a natureza. E outras flores virão.