domingo, 20 de outubro de 2013

GUERRA

O único lugar onde a guerra pode genuinamente ser boa é na poesia. É lindo ver as palavras guerreando, engolindo-se, arriscando-se a outros sentidos. Um espetáculo de arena onde pode ou não haver feridos, já que palavras têm também esse poder, o de ferir. À despeito disso, a beleza da palavra bem forjada, dissecada com precisão de balística, no exercício surreal que é fazer poesia, nisso cabe a guerra. A paz é fácil. A guerra é difícil. E viver é guerrear.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Palavras de raiva

eu queria poder escrever com toda a raiva que sinto
expiar as palavras com a força de esfregar a alma
até que ela ficasse alva. e de alva, com drama, fuleira,
ficasse vermelha. vermelha de sangue, de raiva, de bicho vivo.
porque vivo com fome. fome de tudo que posso e mais ainda
do que não posso. do que não devo e me atrevo. desembesto.
faço tudo o que sei e mais ainda o que não sei. faço errado.
e entre um erro e outro, acerto. conserto aos poucos um pouco
do que achei não ter mais conserto. me acerto. e é desconcertante
emendar as palavras sem medo, sem buscar um sentido certo, deixar
que elas se encontrem, que se percam, que se amem, que se odeiem.
que naveguem loucas, à deriva, sem rumo, sem remo, sem rima, sem nada.
que naufraguem, que nadem muito para se salvar, mas que sobrevivam,
que não se afoguem. que experimentem a raiva de querer estar vivo.
mas essa raiva é só minha. é só meu ego comprando briga com o texto.
as palavras se defendem como podem. se enchem de plurais, se estendem.
e eu não entendo. não entendo a guerra, nem a paz, nem a regra, nem a raiva.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

poliglota troglodita

J'ai des doutes
Ek twyfel
Имам сомнежи
Tengo dudas
我懷疑
Man ir šaubas
मुझे संदेह है
Imam sumnje
მე მაქვს ეჭვი
Ako adunay pagduha-duha
Ich habe zweifel
zalantza daukat
Jag tvivlar
私は疑問がある
tenho dúvidas
em muitas línguas
menos na sua.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Rita Lee e o lixeiro



Em 1980 eu tinha 5 anos e meu irmão, Marinho, 4. Éramos parceirinhos de 'fazer arte', como diria nossa exausta mãe. Enquanto eu me pendurava em todos os lugares, Marinho, mais comportado e medroso, ficava sempre vigiando. Se dava problema (e como dava!) ele corria para chamar alguém.

Um dia ele venceu o medo e me pediu ajuda para subir num tanque que havia no fundo do quintal, assim poderia ver, sobre o muro, o caminhão de lixo passar. Criamos então nosso pequeno ritual: ele sabia o dia e a hora, ficava atento ao barulho do caminhão entrando na rua e, quando ouvia, dava o alarme e saíamos correndo. Eu, mais velha e experiente, era rápida na operação de ajudá-lo a subir no tanque, que era bem alto para o nosso tamanho. Rapidamente eu subia também para cuidar dele. 

No início fomos repreendidos, era perigoso. Explicamos então o motivo e nossos pais ficaram curiosos – vocês querem subir no muro para ver o caminhão de lixo? – mas bastou observar uma vez para que eles entendessem: não existia nada mais divertido na vida do Marinho do que ver o caminhão de lixo passar... ele acenava para todos os lixeiros e ficava encantado com a operação do caminhão. Acordava cedo já anunciando “Hoje é dia de 'lixeilo!'”.

Devidamente autorizados com a supervisão da mamãe, passamos (o que me pareceu) anos fazendo isso. Na verdade devem ter sido só algumas semanas, mas eu nunca mais esqueci esse nosso momento de descobertas.

- Marinho, o que você quer ser quando crescer?
- 'Lixeilo'!
- E você, Monaliza?
- Eu quero ser a Rita Lee!

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

9:35

saiu de casa às 9:35. era uma hora perfeita. as formigas operárias se espremiam menos na marginal pinheiros. algumas pessoas sonham com a liberdade, mas não saberiam exatamente o que fazer com ela.