terça-feira, 29 de março de 2011

Quando a noite acabou

Eram irmãs. Mas não eram. Tratavam-se por irmãs porque tinham crescido juntas. E a família de uma tratava a outra como se fosse parente mesmo. Entretanto a família nem tinha mais tanta importância assim. A relação delas é que era surreal, um amor meio louco, meio doentio. Elas tinham semelhanças, não apenas físicas, de personalidade também. Mas olhando por um ângulo não muito diferente percebia-se que uma não tinha quase nada a ver com a outra.

Uma falava pelos cotovelos. A outra era quieta. Uma era séria e ria pouco. A outra não sabia ficar sem mostrar os dentes. Uma latia, mas não mordia. A outra miava, mas era muito mais perspicaz e perigosa.

Às vezes ficavam meses sem se verem. E outras vezes passavam muitos dias juntas, coladas, todas as 24 horas do dia, sem descanso. Era exaustivo às vezes, mas era bom como um bom porre.

Às vezes voltavam pra casa depois de uma noitada e entravam em casa às 9 da manhã como se fosse 9 da noite e começavam tudo de novo, sem interromper a conversa.
Em algumas noites a intensidade da conexão ficava tão insuportável que elas não agüentavam. Não conseguiam lidar com aquilo, nem com suas vidas, refugiavam-se na companhia uma da outra, mas ainda precisavam de mais. Então bebiam muito, entorpeciam-se. Passavam mal alternadamente, uma ajudando a outra a segurar os cabelos. Eram tão sincronizadas e donas da situação, que anunciavam o momento de vomitar com delicadeza e elegância. Diziam, opa, vou até a pia. E a outra dava um tempo e depois ia até lá.

Era um exagero, sabiam. Mas era um universo particular e intransponível. Dentro daquele apartamento falavam de todas as coisas. Falavam de tudo e de todos. Era como se aquele lugar fosse o forte onde as princesas junkie se escondiam e se abasteciam de torpor para continuar a viver. Qualquer coisa fora dali tinha menos importância.

Mas naquela noite, naquela em especial, a visitante precisava muito da leoa de chácara do forte. Ela precisava de alguém que ouvisse tudo, a história inteira. Não que a outra já não soubesse. Mas ela precisava contar tudo, todos os detalhes. Precisava pôr pra fora, talvez chorar, talvez gritar, ficar histérica. Precisava beber, precisava fumar, precisava tomar uns barbitúricos e ficar bem louca.

A outra até estranhou um pouco. A irmã nunca fora grande fã de drogas mais pesadas. Um bagulhinho vez ou outra. Um docinho pras festas mais animadas, mas nada muito além disso. Essa coisa de chapar era predileção da outra irmã, que gostava de extremos e nunca precisava se esforçar para passar dos limites. E divertia-se com isso mais do que ninguém.

Mas naquela noite, não. Aquela era a noite da moça falante beber e ingerir e engolir e injetar tudo o que ela quisesse. A outra ia só preparando, acompanhando, oferecendo.

Enquanto bebiam e fumavam e a baixinha preparava, sentada à mesa, os coquetéis molotov que engoliam sem reflexão alguma, a outra ia e voltava da cozinha, cruzando a copa, chegando na sala e voltando, como se estivesse numa trilha de formigas e ela mesma fosse várias formigas ao mesmo tempo, cumprimentando-se quando uma vinha e a outra voltava. Deliravam. Uma em voz alta, a outra calada.

Na sala, à meia luz, eram observadas pela tv ligada e muda, esperando sua vez de participar da história. O aparelho de som, ligado como sempre, dia e noite, com ou sem gente em casa, tocava baixinho e randomicamente músicas que batiam em seus ouvidos como bofetadas. Às vezes ouviam, às vezes não. Às vezes pareciam ouvir vozes que vinham da estante de livros. Aquelas pessoas todas que elas liam e declamavam uma para a outra, ali, desorganizadas nas estantes, às vezes pareciam sussurrar coisas para elas.

Ali, naquela sala à meia luz, sentavam-se no sofá depois de beber todos os uísques e vodcas e conhaques que haviam na casa, depois de fumar todos os cigarros e charutos e baseados, depois de tomar todos os doces, as balas, os inibex, depois de saírem e voltarem, depois de começarem tudo de novo, e vomitarem alternadamente na pia, no bidê e num vaso de cerâmica marajoara, depois de tentarem chorar e não conseguirem, depois de tudo, sentavam ali naquela sala, à meia luz, no sofá que as engoliam como se fossem jujubas licorosas. E ali descansavam dos seus delírios, de suas histórias. A falante calava e a calada entendia. Operavam numa freqüência diferente, como os cães, como os gatos. Uma freqüência só delas. E nada além daquilo, fora dali, tinha a mesma importância.

Afundaram no sofá naquela noite e esperaram até a noite acabar. Quase se afogaram. Mas quando amanheceu, a maré baixou.


[EXERCÍCIO DE ARGUMENTO baseado no conto de Fernando Bonassi “ELA ANDOU QUILÔMETROS"]

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