terça-feira, 22 de março de 2011

As nuvens

Março é um mês nublado. As águas vêm fechar o verão. Os ventos começam a ficar insistentes, frios sem causar muita dor, vêm discretos, pegam a gente de surpresa, como naquele momento em que alguém esbarra em você e não pede desculpas.

As nuvens começaram a chegar devagarinho naquele mês de março. De sua cama a menina olhava pela janela e via o céu ir mudando aos poucos. Era a primeira coisa que fazia todos os dias – acordava e esticava o pescoço para espiar pela janela como andava o céu. Ouviu um tio, amigo do pai, uma vez dizer que os dias de céu azul eram sempre mais felizes e nunca mais se esqueceu disso.

Quando acordava e via algum traço de nuvem borrando seu ideal de céu de brigadeiro a menina torcia um pouco o nariz. E torcia para que o dia fosse feliz mesmo assim (o que nem sempre acontecia, culpa das nuvens, ela pensava).

Ela não falava disso, achava que as pessoas não entenderiam essa crença quase cega sobre algo tão naturalmente arbitrário. Mas diante de um dia radiante ela se sentia confiante para enfrentar qualquer coisa. Já num dia nublado ela notava que o seu esforço tinha que ser muito maior. E tinha certeza disso, pois sabia: coisas ruins nunca haviam lhe acontecido num dia de sol pleno.

Mas agora era março. Março acelerando seus dias como se tivesse pressa de virar a folhinha e começar logo outro ciclo, outra estação. E as nuvens, comuns para a época, começaram a se formar.

Desta vez, porém, diariamente ela notava um fenômeno diferente acontecendo diante de sua janela: as nuvens chegavam e iam se acumulando, uma sobre a outra, construindo lenta e diariamente um front entre sua cama e o seu dia condenado a não ser tão perfeito assim.

Todo dia uma nuvem nova. Todo dia uma preocupação nova. Quando chovia, a menina se excitava, ficava observando com ansiedade se a formação de nuvens fazia algum movimento. Mas não... elas continuavam ali. Talvez maiores (alimentavam-se?), talvez mais escuras (faziam-se sombras para suportar o sol nas costas?), talvez mais ameaçadoras e vingativas (sabiam elas sobre seu desejo em fazer com que aquelas nuvens sumissem todas?).

A menina era o reflexo da preocupação. A família e os amigos andavam preocupados – o que há com essa garota que não come direito, não fala mais com ninguém, fica pendurada na janela o dia todo com esse olhar perdido? Estaria apaixonada, já nessa idade? Mas a paixão não deixa as pessoas felizes? Nem sempre..., pensava quieta. Ela não respondia. Quando insistiam ela se esforçava: não tenho nada, é que o dia está tão nublado...

Quando mesmo entre as nuvens o sol aparecia, ela se animava um pouquinho. Faltava-lhe o sol. Mas nem ele compensava a falta que ela sentia do céu inteirinho azul.

Lembrou-se de um dia de verão em que estava numa ilha e viu o céu intensamente azul de vários lugares. Do meio do mar, da praia, do alto de uma montanha, de um forte em ruínas. Se fechasse os olhos ela ainda podia sentir o sol aquecendo seu rosto e sua alma se perdendo naquele infinito céu azul, da mesma cor de um extremo ao outro em seus 180o possíveis de se ver.

Lembrou-se de uma tarde de inverno em que viu o sol nascer da sua janela e se pôr do outro lado, enquadrado pela janela da sala, do outro lado da casa. Era sempre assim no inverno, vários dias frios e muito azuis, com o sol nascendo e dormindo com ela. Poucas pessoas notavam que o sol muda de posição para nascer e se pôr nos extremos do ano. Mas ela não poderia nunca ignorar esse fato com suas janelas fazendo o enquadramento do espetáculo diário. E isso ela nunca mais esqueceu, pois foi esse dia de inverno um dos mais felizes de sua vidinha ainda curta.

Lembrou-se também de uma madrugada, tão incomum de se estar na rua, mas naquela noite, por causa de um casamento de parentes, aconteceu como num sonho. Devia ser 5 horas da manhã e a noite estava virando dia. Ela via o céu limpo e intenso mudando de cor lentamente, enquanto o ar ficava doce e enjoadinho com o cheiro de dama da noite cumprimentando o dia.

Mas no outono tudo era mais difícil. Ela não tinha lembranças assim de um dia de outono. E especialmente agora com aquelas nuvens imóveis, aglomeradas no horizonte diante de si, mas tão longe do seu alcance. Era março, era outono, era uma agonia lenta e atrevida ficar ali, hipnotizada por nuvens imóveis. Ela não tinha vontade de se mover. Queria ficar como as nuvens. Sentia-se escravizada por elas.

Ela teve vontade de dormir, hibernar. Dar boa noite em março e acordar só em junho, quando o inverno já traria de volta o sol para as janelas e as nuvens, com sorte, já teriam partido.

Era pressão demais para uma criança, ela mesma pensava, confrontando sua pouca idade e seu alto atrevimento em achar que já era adulta o suficiente para estar certa disso. Mas de quê adiantava? Sua preocupação era infantil, uma fantasia talvez; mas sua tristeza era real – a falta de sol lhe tirava o brilho e a falta de céu lhe tirava a leveza que as crianças têm que ter.

A coisa boa de ser criança é que a capacidade de adaptação é sempre maior. E assim a menina desistiu de olhar as nuvens. Sucumbiu aos pedidos inicialmente pedidos e depois transformados em ordem – hora da escola, hora de brincar, hora de comer, hora de dormir... Chega de olhar para o nada!

Com o tempo ela foi perdendo o hábito de olhar o céu assim que acordava. Afinal, ela sabia: as nuvens continuavam ali. Com o tempo ela parou de pensar no assunto, já que havia tantas outras coisas que ocupavam seu pensamento e seu tempo agora. Com o tempo veio o inverno, a primavera, outro verão. Com o tempo a menina esqueceu aquele outono em que as nuvens lhe deixaram triste. Com o tempo ela voltou a ser feliz.

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