sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sexual Healing

Numa amizade de infância às vezes encontra-se forças duvidosamente poderosas. E é verdade o que dizem sobre um homem e uma mulher não poderem ser genuinamente apenas amigos. Existe sempre o risco iminente da natureza animal que tem dentro de um e dentro de outro sincronizar, e aí adeus! - atacam-se com fome primitiva. Pode ser que isso nunca aconteça. Mas eventualmente acontece.

Ela estava triste de uma maneira abissal e bonita. Sua tristeza era uma bobagem, mas era genuína. Era só dela. Sentia-se boba, criança, dramática. Sentia-se cansada de tanta energia disperdiçada. O cansaço era físico, químico, biológico, astral... E quando o telefone tocou insistente ela teve vontade de chorar, mas de alguma forma via aquele chamado como uma oferta de resgate.

Quando ela atendeu com voz pastosa, ele desdenhou um pouco. No fundo sentiu uma pena que lhe era até incômoda. Achava-a dramática, como toda mulher. Mas boa amiga, como poucas mulheres. E ele mesmo não estava passando tempos muito felizes. Tinha a vida cheia, mas sentia-se só. E perguntava-se, ainda sem saber direito o porquê de perguntar-se isso, se era aquilo que ela sentia também.

Ela ficava um pouco irritada ao perceber o escárnio dele ao telefone sem que ela tivesse dito muito mais do que um alô. Já estava arrependida de ter atendido, mas de repente era bom ouvir uma voz amada àquela altura. Todo o amor de todos os amigos parece tanto quando estamos tristes, e mesmo assim não consegue preencher o vazio do peito. Mas a voz dele era um alento. E lhe trouxe vontade de sorrir.

Meia hora depois ele tocava a campainha do prédio e entrava pela porta da sala ofegante dos dois lances de escada que pareciam-lhe o Everest. Deu-lhe um beijo na testa sem prestar muita atenção e foi até a janela acender um cigarro. Ela parecia mais magra. E alguma coisa nela estava divertida esta noite.

A mera presença dele ali enchia a casa de som e cor. Conheciam-se há tanto tempo e ela sempre se assombrava com o quanto a presença dele lhe fazia bem. Quando pensava nele ou tinha saudade porque às vezes o tempo dá uma atropelada na gente e ficamos sem ver essas pessoas de quem gostamos tanto... mas quando pensava nele, tinha a lembrança do loirinho de 12 anos com quem jogava bola na escola.

Ele estava olhando para ela como se pudesse ler o que estava se passando naquela cabecinha perturbada. Pediu para que ela dissesse tudo. Pôr pra fora era bom. Mas ela não estava a fim. Ele apagou o cigarro, fechou metade da janela e foi colocar uma música, porque a noite estava fresca e seria divertido rir das desgraças um do outro ouvindo música e tomando qualquer coisa alcólica, como já haviam feito tantas vezes.

Ela já sabia como aquilo iria acabar. Já imaginava a cabeça parecendo inchada de tanta ressaca na manhã seguinte e a desagradável (e absolutamente inútil) sensação de estar incomodando os vizinhos com risadas histéricas e mais altas ainda que o som madrugada adentro. Mas era justamente daquela histeria que ela estava precisando. E ficou olhando o menino loirinho colocar uma música para tocar.

Música alimenta a alma, gostavam de pensar. Álcool e cumplicidade também. E a sincronia entre eles era tão doce que era enjoativa, mesmo que ainda se comportassem como crianças de 12 anos entre si. E ofendiam-se e diziam-se coisas ridículas e infames simplesmente porque podiam. Entendiam-se assim. E ninguém mais entendia porque entendiam-se tanto. Mas ninguém ligava pra isso.

Ben Harper tocava canções suaves e poderosas usando apenas um violão. Ela amava Ben Harper e ele gostava também, sobretudo daquelas músicas acústicas. Ela parecia-lhe bem. Ele parecia-lhe confortável. Ela colocou a cabeça no ombro dele. De repente estavam fundidos no sofá. De repente estavam fundidos numa coisa só.

Sexual Healing estava lenta e delicada naquela versão do Ben Harper, alheia às bocas, mãos, roupas, almofadas do sofá e barulho de copos e o universo todo confuso no meio daquelas duas pessoas que ignoravam o fato de que conheciam-se tanto. E paradoxalmente era tudo novidade. E explosivo. E saboroso. E estranhavam-se ao trombarem os olhares. E riam-se disso.

Horas depois, exaustos e ainda incrédulos, respiravam o silêncio recente. Sonolento, ele ajeitou a cabeça para ouvir o que ela tinha a dizer. Agora entendi!, ela disse. Agora entendi o que ele queria dizer com Sexual Healing. Ele também entendia e disse a ela: Marvin Gaye deve ter praticado bastante. Concordaram: sexo é terapêutico. E riram-se da própria ruína estampada no caos deixado na sala e na amizade.

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