quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Registro

O moço era alto, magro, timidamente bonito. Era bonito se olhássemos de perto, mas de longe era um homem normal, desses que a gente vê no metrô. Tinha pilhas e pilhas de cds em casa. Tentava mantê-los em ordem alfabética, mas era difícil porque ele tinha dificuldade em colocá-los de volta no lugar devido quando os tirava de lá para ouvir. Mesmo que as caixinhas ficassem a poucos centímetros de onde moravam. O equipamento de som era pequeno e poderoso, como costumam ser esses equipamentos hoje em dia. Mas ele ainda sonhava com o que tinha antes, que na verdade nem era seu, mas da ex-mulher, Priscila, que conseguia ter o mesmo gosto exagerado que ele por música e consumo obsessivo de tudo ligado ao assunto. Quando se separaram foi um drama. Não que tivessem brigado, xingado e magoado muito um ao outro. Nada além do normal que toda separação tem. Mas separar os discos, cds, dvds, vhs (quem ainda via isso hoje em dia? nem videocassete existe mais!) e livros, revistas, cartazes e outra pequena infinidade de coisas inúteis e queridas foi certamente um dos momentos mais difíceis de sua vida. De repente sair da vida de Priscila era mais fácil que fazer a mudança da casa dela. Mas ele ia embora com carinho. Com Priscila ele havia aprendido coisas muito boas - o gosto por The Clash, por exemplo, que ele nunca antes tinha conseguido sacar direito, e a prática (ou ao menos tentativa) de organizar as coisas em ordem alfabética. Menos os livros. Os livros ele continuava organizando por assunto e tamanho. Para os livros o cérebro dele funcionava de outra maneira, de um jeito que ele nunca conseguiu explicar e Priscila nunca se incomodou muito em entender. Cada um é do jeito que é, dizia ela, displicentemente. Mas gostava dela mesmo assim. Se ela desse mole ele ainda lhe daria uns beijos facilmente. Mas só uns beijos porque Priscila já lhe era impossível de se conviver. Por mais amor que houvesse as manias dela deixavam-no irritado. E aquele jeito sempre feliz demais causava-lhe uma desconfiança de que ela se esforçava demais para sempre estar tão bem. E ainda que não fosse a intenção dela (ou era?) ele se sentia pressionado a sempre estar tão bem também. O que seria absolutamente insignificante se ainda estivessem apaixonados. Mas já não era mais o caso. A obsessão nova dele chamava-se Julia. Sem acento, como ela gostava de dizer. E Julia gostava de Led Zeppelin. E nunca mais ele conseguiu ouvir Dazed and Confused sem pensar nela. Conheceu Julia na festa de um amigo de uma amiga de Julia, que nem ele nem ela conheciam direito. Era uma festa à fantasia e nenhum dos dois estava fantasiado. Possivelmente não teriam se visto se lá pelas tantas ela não lhe desse uma cabeçada no cotovelo quando a festa inteira pulava enlouquecida gritando fuck you I won't do what you tell me. Poxa, você me deu uma cotovelada que quase me matou, disse ela meio rindo, meio chorando, coçando a cabeça descabelada no final da sessão rock n'roll da festa com uma mão e com a outra empurrando a barriga dele como se já se conhecessem há muito tempo. Naquela noite, depois da discussão sobre quem bateu em quem, depois de uns dois cigarros no meio da rua (os lugares agora expulsam os fumantes temporariamente dos lugares...), depois de uns três uísques cada um, ainda pularam muito mais ouvindo AC/DC, Twisted Sister e outros clássicos e lixos divertidos que ele não conseguia mais lembrar. Julia praticamente pulou no seu pescoço. Ele adorou. Ia mesmo pular no pescoço dela. Mas gostou de deixá-la fazer o movimento primeiro. Julia tinha o beijo mais gostoso que ele havia experimentado no último ano inteiro. Beijando Julia ele conseguiu pensar apenas em Julia, aliás, beijando Julia ele conseguia evitar de pensar em qualquer outra coisa. E há muito tempo ele não se sentia assim. Talvez desde Priscila. Mas isso há uns 5 anos atrás, quando se conheceram. Porra, porque será que ele não conseguia manter o mesmo entusiasmo do começo das coisas? Ninguém conseguia, ele pensava. E no segundo seguinte voltava ao pensamento que estava tendo antes sobre Julia - era bom sentir aquele entusiasmo de novo. Depois da festa ele deixou Julia na porta do prédio dela. Ela não o convidou para subir, nem ele se ofereceu, mas pegou o telefone dela e ligou logo em seguida para que ela tivesse o dele. Não subir era a última de suas preocupações até o momento em que Julia desceu do carro e bateu o portão do prédio. Estavam um tanto bêbados, então melhor deixar para outro dia, pensou ele tentando convencer-se (inutilmente) de que em outra oportunidade seria melhor. Falaram-se de novo só depois de alguns dias. E depois saíram e beijaram-se loucamente e quando Julia o convidou para subir ele não entendeu como é que pôde deixar isso passar em branco naquela primeira noite. Saíram várias outras vezes. Ela sumia de vez em quando. Ele sumia de vez em quando. Mas ele continuava com ela na cabeça e tentava manter uma certa frequência em vê-la. Um dia na casa dela ele pegou o cd do Mothership que estava em cima da mesa, sobre uma pilha de uns outros 5 cds, olhou em volta e viu a pequena estante com mais uns cento e poucos cds talvez e perguntou a ela se eles estavam em ordem alfabética. Não, eu tenho poucos cds, ela respondeu e explicou que preferia ter as músicas no computador e no ipod e os cds que estavam ali eram os que ela considerava essenciais e estavam organizados por banda, numa ordem meio própria. Os que estavam em cima da mesa estavam ali para guardar. E o Mothership era uma das coisas que ela mais ouvia na vida. Jura? Ele perguntou parte surpreso e parte seduzido pela explicação toda minuciosa dela. Porra, Led Zeppelin era uma de suas bandas preferidas... E qual dos dois você ouve mais, o um ou o dois? Ele perguntou com o Mothership na mão, sem conseguir disfarçar a empolgação. Ela respondeu que ouvia igualmente os dois e riu – e ele adorava aquela risada dela, mostrando muitos dentes. E meio minuto depois ela completou dizendo que ouvia igualmente os dois mas gostava mais do um porque tinha Dazed and Confused. E então passaram a noite ouvindo o Mothership muito alto, como ela gostava. Ele se sentiu confortável na casa dela. Gostou de passar a noite. E chacoalhou a cabeça tentando afastar os pensamentos indevidos de planos ridículos de futuro no dia seguinte. Ele tinha essa mania de achar que um dia encontraria a mulher ideal. Mas a verdade é que não queria que isso acontecesse agora. Estava solteiro, precisava aproveitar outras coisas. Coisas que a gente só faz solteiro. Mas estava meio que hipnotizado por Julia. Pensava nela com uma constância chata, que lhe tirava um pouco a concentração das coisas. Pensava nas músicas todas que queria ouvir com ela. E ficava um pouco irritado com o sumiço eventual dela. Achava um pouco de descaso e talvez falta de interesse por ele. E chacoalhava a cabeça de novo para afastar o pensamento, tentando convencer-se de que era melhor assim, porque a última coisa que ele queria era que a garota grudasse nele bem agora. Estava com problemas em administrar as emoções contraditórias que Julia lhe causava. Numa determinada manhã, de novo na casa dela, acordou com Chris Robinson cantando canções que ele não conhecia. Isso é Black Crowes? ele perguntou a Julia que estava na cozinha. Sim! É o disco dois do Warpaint, ela respondeu apontando a caixinha em cima da mesa. Ele pegou a caixinha e foi para a sala. Sentou-se no sofá e ficou lá ouvindo, ainda sonolento, músicas que ele não conhecia. Uau! Como posso nunca ter ouvido esse disco? Ele perguntou a ela em tom confessional, quase culpado, já que gostava tanto daquela banda e nunca tinha ouvido o cd que era bom pra cacete. E com uma xícara de café na mão ela lhe explicou que também tinha conhecido aquele disco recentemente, depois de ver o dvd na casa de um amigo. Era um sábado de manhã e ela o convidou para ficar. Passaram o dia entre o sofá, a cama e os dvds e cds do Black Crowes – que coisa genial ela ter tantos cds do Black Crowes... No fim da tarde Julia disse a ele que tinha adorado o dia, mas tinha um compromisso a noite. Ia ver um filme da mostra de cinema com um amigo que tinha comprado ingresso para ela. Não podia convidá-lo. Tudo bem, ele pensou, então depois a gente se fala. Eu te ligo amanhã, ela disse. Ele foi para casa, mas antes passou numa loja no caminho e comprou o Warpaint, lindamente embalado num pack promocional com cd e dvd, como ela havia lhe indicado. Nos dias que se seguiram ele ouviu todos os discos que tinha do Black Crowes. E contraditoriamente tentou evitar um pouco pensar em Julia. Ele estava interessado demais nela e ela parecia não ter o mesmo interesse por ele. Pelo menos é o que ele achava, mas não estava a fim de perguntar. Passaram-se alguns dias. Ele não ligou nem mandou mensagens. E ela também não. Ele já estava distraído com outras coisas, mas ainda pensava um pouco em Julia. Um pouco a mais do que gostaria. Mas não ia ligar. Ela tinha dito a ele que ia ligar no dia seguinte e nunca ligou... aquilo o deixava meio puto. Um orgulho bem idiota, admitia. Passaram-se algumas semanas. Um ou dois meses talvez. Paul Mccartney veio para o Brasil e todo mundo só falava nisso. Ele viu o segundo dia da apresentação. Lembrou-se da última vez que havia visto, em 1993, e o quanto tinha sido lindo. E mais uma vez o melhor beatle que já existiu fez um show maravilhoso – a discussão sobre o melhor beatle era sempre calorosa entre ele e Priscila, a ex-mulher, que dizia com muito fervor que o melhor beatle era o George e ficava irritadíssima com o escárnio dele ao dizer que o fantástico George não tinha a mesma competência, talento e sorte do Paul. – Priscila tinha visto o show no primeiro dia e ele não pôde deixar de pensar muito nela quando Paul tocou Something. A melhor música do show talvez. Mas pensou em Julia ao ouvir Let me roll it, My love, Eleanor Rigby, Band on the road, Paperback Writer, Helter Skelter e talvez mais algumas outras. Chacoalhou a cabeça de novo no dia seguinte, ao pensar novamente em Julia e no quanto queria vê-la. Voltando pra casa, caprichosamente, o rádio do carro começou a tocar Rock and roll. Porra, porque será que as rádios sempre tocam o lado A dos discos? Podiam muito bem tocar Dazed and Confused, por exemplo. Ele chegou em casa e foi procurar o Mothership para ouvir. Estava meio por cima da pilha de cds desorganizados em cima da mesa. Ele pensou por um segundo que nunca mais iria conseguir colocar ordem de novo naquela bagunça... Quando abriu a caixinha, para seu desespero, o disco um não estava no lugar. E ele não queria ouvir o dois. Ele queria ouvir o um! Como assim o disco não estava lá? Ele nunca guardava os cds nas caixinhas erradas... Ou será que guardava? É, de vez em quando pode acontecer. Que merda, pensou. E já derrotado pela falta de vontade de procurar o disco desaparecido, ele resolveu então ouvir Black Crowes. Encontrou o Warpaint com algum esforço, soterrado por outros cds, misturados aleatoriamente sobre a mesa que já não tinha mais espaço para nada. Abriu a caixinha do Warpaint e encontrou lá dentro o Mothership um. Meu deus, então está aqui! Respirou aliviado e não pôde deixar de rir da própria confusão. O Warpaint por sua vez estava na caixinha do By your side e nesse momento ele deu-se conta de como sua cabeça confusa atuava de maneira completamente óbvia. Pensou em Julia. Colocou o Mothership um para tocar muito alto, sentou-se no computador e escreveu para ela um email longuíssimo, contando sobre como havia pensado nela no show do Paul, nas últimas semanas em que não se viram nem se falaram, na confusão sobre a troca de cds nas caixinhas e em todas as coisinhas idiotas que ele adoraria ter dito a ela e não tinha tido chance... Ele escreveu, leu e releu a mensagem muitas vezes, mas não enviou. Sei lá, algumas coisas funcionam muito bem na nossa fantasia, mas não são tão simples assim de serem colocadas em prática, pensou. Leu o email mais uma vez e viu ali coisas muito boas. Coisas que talvez ele pudesse usar em alguma canção. Leu uma última vez para se despedir e o apagou. O computador, desgraçado, o desafiou com a pergunta clássica: tem certeza? E sem pensar muito no assunto ele respondeu que sim. Apagou o email do draft e Julia da memória. Não queria ter mais nenhum registro daquela história. Mas nunca deixou de pensar nela toda vez que ouvia Led Zeppelin.

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