segunda-feira, 5 de abril de 2010

Lacunas

Mas era duro não pensar nele. Nela também. Havia se apaixonado pelos personagens, embora ainda estivesse com raiva dela. Não conseguia perdoar sua partida inesperada, sua falta de piedade com ele, seu excesso de coragem...

O livro já estava na estante e ela precisava deixar aquela história de lado e ir viver a própria vida. Sentia-se forte, estava bem disposta, pensando até em voltar a correr. Mas a todo momento alguma parte do livro lhe vinha à cabeça trazendo lembranças, talvez causadas pela semelhança dos personagens da história com os personagens de sua própria vida.

Não conseguia esquecer o homem pálido parado ali, diante do aquário, no meio da madrugada, tão só que nem conseguia mais sentir tristeza. As marcas dela pela casa. O jornal espalhado sistematicamente pela mesa e cadeiras da cozinha. A geléia de morango - no seu caso seria de figo - guardada sempre na porta da geladeira.

O duro de viver com alguém, pensava, é que você se mistura na história do outro. Detesta algumas maneias, mas adota outras. Adota atitudes, bons e maus hábitos que não são seus. E quando a pessoa parte, ou mesmo quando é você quem parte, aparecem enormes buracos na sua vida e na sua alma. Há uma perda de identidade. Há uma perda de rumo.

E ela via isso ali, naquele final do livro, quase abrupto, com ele paralizado com o controle remoto na mão, sem bússola, sem chão, sem pedaços de si próprio.

Abriu a geladeira, pegou a geléia de figo, tentou abrir o vidro, mas a tampa estava dura, há semanas intocada, açucarando solitariamente ali na porta. Tentou mais uma vez e conseguiu. Sentou-se no chão da cozinha com as costas encostadas no armário frio da pia. Enfiou o dedo no pote pela metade e tocou a pasta de figo vitrificada. Ela adorava aquela sensação de pequenos cristais quase cortantes, misturados com a fruta melecada, quase derretida, quase nojenta.

Enfiou o dedo na boca devagar e lembrou-se de quando fazia aquilo com ele. Ele não gostava de figo, aquilo era mania dela. Nunca comia. Mas adorava quando ela fazia isso, quando mergulhava o dedo no pote de geléia e depois lambia. Lhe dava vontade de ter o dedo dela na sua boca também. Era o único jeito de lhe fazerem comer geléia de figo - lambendo do dedo dela. Eram capazes de comer um pote inteiro assim.

Ela lambeu os dedos com restos de açúcar mais uma vez e fechou o vidro. Olhou a lixeira a uns dois metros e o arremessou. O vidro pesado fez um estrondo repentino e violento quando atingiu o fundo da lixeira, mas ela gostou. Cesta de três pontos!, pensou. Levantou-se, lavou as mãos, trocou de roupa, calçou o tênis e foi correr.

2 comentários:

  1. oi, querida!
    conheci teus blogs por uma simples tuitada de xico sá. li, reli, li, reli...favoritei, achei que tu tava tirando com minha cara, respirei fundo...
    enfim, teus textos pra mim hoje em dia, são todos meus sentimentos descritos por você. me pego boba, a cada texto novo ou velho. digo até, que não tem clarice e caio fernando que fale tanto das minhas picuinhas por aí do que você.
    há tempos estava pra te dizer o prazer que seus textos me proporcionam. é um encontro mesmo! mas sempre fiquei acanhada... mas ao ler esse, me veio em mente um dos meus livros favoritos: verão no aquário, de lygia telles.

    enfim, sem mais delongas! sou frequentadora assídua de todas essas coisas além das outras.

    obrigada e desculpa pelo bombardeio de coisas aqui! hahaha

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  2. laís, eu sou um desastre com a administração dos blogs. escrevo e só. esqueço de ver o q as pessoas comentam. o q não quer dizer em absoluto q não ligo para o q dizem. sua mensagem me deu uma alegria enorme - a de saber q eles realmente podem falar com as pessoas, mesmo q eu nem saiba quem elas são. eu sou uma amadora, sabe? não tenho vivência do mundo literário, dos q escrevem profissionalmente, mas venho flertando com essa história já há algum tempo. sinto q está começando a ficar sério. muito legal vc ter me dito tudo o q disse. agora faz parte da minha história. beijo!

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