sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Falsas memórias


Há muitos anos não ia ao relojoeiro da Rua Oliveira Mendes. Quando era criança, ia ao relojoeiro com o avô, um homem alto, altivo, elegante. O avô naquela época tinha uma moto. Aliás, não era uma moto, como dizia; era uma Norton. Vestia-se de camisa (muito bem engomada), gravata preta (sempre!), sapatos lustrosos e uma jaqueta de couro que era pesada como uma armadura. Mas Luís era leve, era um menino franzino; o avô sempre dizia que, de tão leve, esquecia que o neto estava na garupa. Quando o avô morreu, Luís herdou sua coleção de relógios. A Norton, infelizmente, há muito já havia sido trocada por sucessivos automóveis, exigência da avó, que não via mais cabimento naquelas aventuras motocicísticas. Talvez influenciado pela avó, Luís jamais havia tido uma moto, e sublimava a vontade aumentando a coleção de relógios. Juntando os que havia herdado do avô, mais os seus (alguns novos, outros antigos, comprados em feiras e antiquários), devia ter hoje cerca de duzentos relógios de pulso. Nunca usava os antigos, mas cuidava deles, limpava, dava corda, admirava. Passado um tempo, porém, Luís percebeu que os relógios precisavam de manutenção especializada. Alguns estavam visivelmente envelhecidos e começando a ter problemas de funcionamento. Lembrou-se então do relojoeiro frequentado pelo avô, na Rua Oliveira Mendes. Mas aonde ficava aquele lugar? Procurou no mapa, perguntou a avó e a um tio mais velho, que já não respondia mais às coisas com muita coerência, e ninguém se lembrava do relojoeiro. Luís era muito criança naquela época para saber com exatidão… lembrava-se que iam pela vinte e três de maio, saíam por uma rua inclinada, passavam por trás da catedral da Sé, mas depois entravam por ruelas do centro em que carros já não circulavam mais. Possivelmente motos também não deveriam circular por ali. O avô desviava de pedestres, dizia que antes haviam carroças e bondes naquelas ruas. Luís achava aquele caminho uma grande aventura, mas não se lembrava de todos os detalhes… A verdade é que mesmo as lembranças do avô já começavam a lhe escapar. Lembrava-se da figura esbelta dele, do contorno das sombrancelhas e do bigode, do cheiro que tinha o seu cabelo, mas tudo isso como se o avô estivesse num sonho. E outras coisas, como conversas, nomes, conselhos, já não lembrava com total clareza. A própria feição e a voz do avô, se não se concentrasse, Luís tinha dificuldade em se lembrar. Mas lembrava disso – do avô dizendo em tom de aventura “vista-se! hoje vamos ao relojoeiro da rua Oliveira Mendes.” Luís fez de tudo – procurou no mapa, perguntou a outras pessoas, aos serviços de informações, a outros relojoeiros do centro, mas ninguém conhecia uma rua com aquele nome ou qualquer outra coisa que pudesse levar Luís àquela rua ou ao relojoeiro, se é que eles ainda existiam. Tentando puxar pela memória, Luís andou pelas ruas do centro, algumas que ainda tinham trilhos de bonde, sem nunca conseguir encontrar a tal rua Oliveira Mendes. Nunca entendeu se aquilo era um segredo do avô, uma confusão da memória dele (ou da sua) com o nome da rua… Foi obrigado a encontrar outro relojoeiro.

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