quarta-feira, 23 de maio de 2012

Rio-SP-Rio-Londres


Valentina saiu de casa para ir à farmácia. Ia comprar analgésico, antiinflamatório e uns antibióticos que ainda podia comprar, essas coisas que em países desenvolvidos não se podia comprar sem receita. Depois era só colocar o casaco por cima, fechar a mala e partir para Londres no dia seguinte. Ela estava muito tranquila e decidida sobre aquela viagem, embora não soubesse bem o que faria assim que chegasse lá, nem ao certo a data de retorno. Nada disso importava. Aquela era uma viagem necessária. Era mais que turismo, férias, estudo ou aventura, aquela era uma expedição ao fundo da alma. Era a hora de se desprender de quem era, do que queria, do que parecia certo antes mas agora parecia não ter sentido algum. Valentina precisava sair do Rio, precisava esquecer São Paulo, precisava ser outra pessoa, precisava ver outras pessoas, outras línguas, outras paisagens, cenários e contextos.
Foi então que teve o estalo. Estava atravessando a Bolivar quando se deu conta de que não poderia embarcar para Londres nem para nenhum outro lugar antes de São Paulo. Precisava se desculpar. Precisava se despedir. Precisava dizer na cara dele, olhando nos olhos, que aquele amor era maior do que qualquer coisa que ela pudesse ter imaginado existir no universo, mas talvez por isso mesmo, essa grandeza exagerada, desgovernada, não era mais possível. Sem ofensas, sem promessas, sem destemperos humilhantes dessa vez. Mas uma despedida era tão necessária quanto a viagem à Londres. “Strike and run.”
De camiseta, bermuda, chinelos, 30 reais e um cartão de crédito na carteira, ela parou um táxi na Av. Nossa Sra de Copacabana e pediu ao motorista para tocar para o Santos Dumont. De lá avisou Maurício, em São Paulo, que estava à caminho, que ele lhe esperasse ligar quando chegasse em Congonhas, que ia pegar um táxi e encontrá-lo no apartamento de Moema, que ele tivesse dinheiro para pagar o táxi porque o que tinha não seria suficiente para a corrida. Maurício ouviu as ordens incrédulo do outro lado, mas entendeu e acatou tudo o que Valentina pediu e foi lhe esperar em casa.
Valentina então ligou para a mãe, avisou que ia a São Paulo, mas que já estaria de volta no dia seguinte cedo, em tempo de tranquilamente almoçar com ela e papai antes das quatro da tarde, quando partiria para o Galeão e então Londres. A mãe deu um grito “Está indo onde, menina?” e Valentina, sem tempo e paciência de dar detalhes, apenas repetiu “À São Paulo, mãe. Mas amanhã cedinho estarei de volta. Beijo, tchau.”
Maurício recebeu Valentina no portão do prédio, pagou o táxi, entrou com ela no elevador, ambos encarando o chão como se aquilo fosse a coisa mais bela e confortável do mundo. Mas sentiam na garganta um punhado de farofa faro-fino. Sem sorvete.
Entraram no apartamento que estava iluminado com aquela luz amarela do outono; aquela luz das cinco da tarde quando o sol vai embora lentamente e leva com ele boa parte do calor do dia. Era bonito e triste. E antes de se deixar dominar por esses pensamentos inúteis Valentina pediu desculpas a Maurício. Disse a ele que embarcaria para Londres no dia seguinte, que aquela era uma viagem necessária, que ela nem entendia bem ainda o porquê daquilo tudo, mas que sabia que mais cedo ou mais tarde tudo faria sentido. Maurício ouviu tudo calado. Entendeu tudo, já sabia, claro. Como era possível serem tão parecidos e gostarem de coisas tão diferentes? Como podiam ser tão diferentes e se encontrarem tanto um no outro? Aquilo era tão triste… e era preciso que agora fossem adultos, que encarassem de frente aquela necessidade de reinventarem suas vidas, cada um no seu caminho. Mas que se perdoassem, que não se machucassem mais.
Passaram uma noite incrível juntos. Se tivessem planejado, dificilmente tudo seria tão intenso, tão perfeito, exercício de tanta ousadia, parceria, desejo, amizade, amor, perdão, fim.
Ainda na madrugada Valentina pegou um ônibus de volta para o Rio. Chegou cedo, beijou os pais, foi tomar um banho, guardou os remédios, o casaco e fechou a mala; almoçou com os pais, depois tomaram café entre cigarros e risadas sobre os planos de Valentina para Londres, ali, sendo explorados com os pais ainda um pouco inseguros sobre Londres. “Gente, eu já morei no Rio de Janeiro e em São Paulo! São duas cidades muito loucas, com gente de todo lugar do mundo, buscando coisas diferentes… Londres me parece ter essas coisas mais organizadas; as pessoas parecem mais civilizadas. Eu preciso de um pouco de ordem na vida. Não se preocupem, não vou ficar lá para sempre.”
Despediram-se na porta às quarto da tarde e no dia seguinte a vida de Valentina começava em Londres, onde não havia Maurício, mamãe, papai, praia, calor e diversões fáceis. Há viagens difíceis que a gente tem que fazer.

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