quinta-feira, 18 de março de 2010

É madrugada de novo

A madrugada sempre lhe fez bem. Sempre acolheu sua falta de sono. Sempre trouxe o sossego dos sons, da euforia do dia com suas muitas vozes, muitas cores, muitos pulsos. Na madrugada o batimento cardíaco da cidade era ainda mais baixo que o seu.
E o fim da madrugada tinha o céu com a cor mais bonita do mundo. Tinha uma luz suave e tons que se transformavam a cada micro segundo. Tinha o escuro da noite, quase suja, quase imprópria. E tinha o claro do dia, quase distante, quase rosado, nascendo ainda sem gritar.
Era aquilo que ela gostava na madrugada. Sua simplicidade em ser complexa. Sua vocação de linha tênue. Sua existência de contrastes. Sua testemunha da convivência no mesmo tempo e (quase) espaço entre o sujeito silencioso acendendo o cigarro na volta para casa e o rapaz fazendo barulho ao abrir a porta de aço da padaria.
Mas para ela a madrugada era companhia, acima de qualquer coisa. E já era quase um ritual ela esperar pela hora em que o céu ficava azul-cobalto. Se às vezes dormia antes, acordava exatamente na hora do tal azul. Era como se a cor do céu que só existe aquela hora causasse nela um efeito detectado por todos os seus sentidos ao mesmo tempo, provocados pela mudança de luz, o piar ainda baixo dos passarinhos, o cheiro do orvalho parando de cair, a temperatura da brisa deixando de ser fresca, o gosto estranho na boca na hora de acordar. E assim acordava na determinada hora. Sem alarmes, sem sustos. De forma natural e apaixonada. Via a noite se despedir do dia e aí ia (ou voltava) para a cama, a dormir o pouco que o dia lhe permitia, afinal, o mais comum são as criaturas que dormem a noite e vivem de dia.
Não ela. Para ela sua existência podia ser resumida apenas àquele momento do dia. Apenas aqueles poucos minutos importavam. Seu cansaço da noite muitas vezes derrotava sua euforia diante do dia, então ela dormia. E não se importava de ter ou não dormido antes. Nem de conseguir ou não dormir depois. O importante era estar ali, junto ao céu da madrugada, fazer-lhe companhia. Testemunhar a passagem mundana do tempo, como ele realmente é, como ele realmente nasce: tranqüilo, óbvio e repentino.

Nenhum comentário:

Postar um comentário