quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A subida de Alpamayo


Quando eles se conheceram, estranharam-se. Ela lhe pareceu distante, como se forjasse sua naturalidade para lidar com as pessoas que não conhecia. Ela era uma outsider, sentia-se perdida, mas a ele parecia que ela apenas queria sumir dali, pular direto para o dia seguinte no calendário, quando a programação seria mais previsível. Ela tinha nome de musa - Jane - mas ele não sabia o porquê, só achava esnobe.

Ela olhava para ele, como para qualquer pessoa, e tentava apenas enxergar através delas. Sentia-se perdida. Sentia-se culpada por não estar feliz como estavam os outros. Sentia-se culpada porque tinha escolhido estar ali, queria estar ali, mas seu coração não estava. Ela olhava para todos e via a excitação infantil brilhar em cada retina. Menos na dele. Ele não lhe parecia triste, mas parecia cansado. Talvez, como ela, ele só quisesse sumir dali por um instante, pular o dia e chegar logo ao dia seguinte.

No dia seguinte ela se apresentou melhor a ele. Iam subir uma montanha juntos. Ela achou importante dizer aos guias que aquela era a primeira vez que ela subiria aquela montanha. Eram três guias: Filipe, Amanda e ele, Davi. Ela falava com eles e sempre terminava o que estava dizendo olhando para Davi. Não queria fazer distinção, mas Davi era naturalmente o líder da matilha.

Havia um guia para cada cinco pessoas, mais dois assistentes, que ajudavam com os equipamentos, barracas e mantimentos. Ou seja, ela ficaria cinco dias em condições rústicas convivendo com vinte desconhecidos.

- Então você nunca escalou o Alpamayo? E já escalou alguma montanha peruana antes? – perguntou Davi, curioso sobre a origem de toda a experiência de Jane, que lhe fora assegurada por Filipe.

- Não. Apesar de já ter escalado o Aconcágua, não escalei nenhuma outra montanha andina. Nem nenhuma outra fora do Brasil ou Argentina. – Jane respondeu com simplicidade, o que parecia um absurdo para Davi.

- Mas você é profissional? Tem um currículo respeitável de montanhas, pelo que o Filipe me disse. – Davi agora estava mais curioso que preocupado.

- Ah, eu adorei escalar com o Filipe. Mas não sou profissional. Fiz alguns cursos, pratico bastante e adoro fazer essas viagens, mas não sou profissional. Participo dessas expedições de “férias”. Mas sei lá... tenho gostado tanto que, de repente, em algum momento essa paixão pode mesmo virar uma coisa séria. – ela disse, sentindo os olhos desfocarem.

Agora Davi via, nos olhos dela, aquele brilho que ela havia visto ontem nos olhos dos outros. Dar-se conta disso provocou nele sentimentos contraditórios, de identificação e respeito, mas também de dúvida e ansiedade. Era estranho sentir aquela atração por uma desconhecida.

Davi era o guia do grupo onde estava Jane. Além dela, havia mais um casal argentino e o filho deles com um amigo. Eram bem experientes também, por isso estavam no grupo de Davi. Jane, em princípio achou a divisão estranha, mas depois entendeu: Filipe, seu único conhecido, ia liderar um grupo de brasileiros mais jovens e menos experientes em escalada. Ele mesmo, ainda não tinha tantas montanhas em seu histórico quanto Jane, mas estava completando sua formação como guia, por isso ia com o outro grupo. Era uma pena, ela achava, porque embora não houvesse nenhuma história romântica entre eles, ela e Filipe tinham feito uma expedição juntos pela Serra Fina e desde então, apesar dela morar no Rio de Janeiro e ele em Porto Alegre, viviam em contato e tentando combinar outras viagens para escalar.

Davi percebeu que Jane preferia o outro grupo, mas fingia não se importar. Era assim que fazia sentido. E ela ia perceber. Jane percebia uma certa indiferença em Davi. Mas parecia uma coisa com ela, porque para todos os outros ele parecia muito atento. Custou a ela perceber que, na verdade, a indiferença estava mais para despreocupação. Ele confiava nela. Tinha observado seus movimentos, conversado sobre suas viagens e experiências. Ele estava tranquilo com ela, não precisava tomar conta.

Com o passar dos dias, ficaram muito próximos. A expedição andava bem. Todos tinham ritmos parecidos, estavam treinados e saudáveis. Tudo ia bem. E Davi sentiu que podia relaxar. Ele andava pela trilha e atacava a montanha como se fizesse aquilo todos os dias. Jane olhava admirada. Sempre admirou essas pessoas apaixonadas, que fazem coisas difíceis parecerem uma brincadeira, que são líderes naturais, criaturas carismáticas mesmo quando são duras, pessoas gostadas pelos outros em qualquer ocasião. Não tinha inveja. Ela mesma se sentia assim, alguém com capacidade de liderança e carisma, mas não queria ser líder. A relação dela com isso era diferente: enquanto Davi fazia da sua paixão uma profissão, Jane buscava ainda entender o que aqueles desafios significavam para a vida dela. E não queria ninguém seguindo-a. Queria companhia, gostava de pessoas, mas não queria ter a responsabilidade de dizer aos outros o que fazer. Pelo contrario: Jane achava-se geniosa e tão independente, que acabava sentindo-se só, então gostava de ser guiada, de permitir que lhe dissessem o que fazer na hora-limite, pois na vida “real”, ela não permitia que ninguém fizesse isso.

Jane e Davi haviam nascido no mesmo dia, do mesmo ano, com um mês de diferença. E essa foi apenas uma de dezenas de coincidências que descobriram entre si nos dias que se seguiram.

Quando a expedição acabou, estavam ambos realizados e tão felizes que não se continham. Era a oitava expedição de sucesso dele naquela região. E a primeira vez dela no alto de Alpamayo, a montanha considerada por muitos como a mais bonita do mundo. Jane achava que a montanha mais bonita do mundo, na verdade, era o Everest, mas achava muito difícil que um dia fosse conseguir escalar o Everest, então escolheu Alpamayo para ser a “sua” montanha mais bonita já escalada. Concluir a expedição com tanta facilidade e vibração enchia-lhe a alma de uma alegria que não conseguia sentir com nenhuma outra coisa.

No último dia juntos, Davi contou muitas coisas para Jane. Coisas que ela não poderia imaginar. Por trás dos olhos cansados dele havia toda uma história com idas, vindas e reviravoltas. Ele falou pouco sobre as outras expedições, mas contou sobre algumas dificuldades já ocorridas e como ele tinha lidado com elas. Jane também contou suas histórias para Davi, abriu seu coração de um jeito tão escancarado que ele se sentiu mergulhado na caixa de pandora. Foi uma experiência intensa, uma troca de energias que mal podiam acreditar que estava acontecendo. Não eram mais dois estranhos, como naquele primeiro dia. Aquele primeiro dia não parecia ter sido há cinco dias atrás. Estavam com a alma repleta da aventura que haviam acabado de partilhar. E parte dela era a permissão que um havia dado ao outro para invadirem sonhos, gostos, coincidências, decepções e desafios da vida diferente que levavam.

Quando se despediram, não sabiam como a história ia continuar. Se um dia iriam se ver de novo. Se voltariam a escalar juntos. Se a amizade sobreviveria à distancia e à paixão que não puderam conter um pelo outro; paixão deixada de lado porque não cabia ali, naquelas condições de altitude, temperatura e pressão.

Despediram-se com um beijo e um adeus tímido. Jane já era musa de alguém. E Davi o líder de outras matilhas. Todo o espaço que haviam dado um ao outro, davam-se conta agora, não fazia parte da continuação da vida normal, à qual tinham que retornar. Mas aquele encontro havia mudado alguma coisa dentro deles. Eram maduros e sabiam que a vida é assim – muda todos os dias. Mesmo assim, sabiam, naquele momento, cristalizado lá no alto da montanha mais linda do mundo, um mudou no outro a história que escreviam de suas vidas. Suas páginas tinham ficado marcadas, como uma passagem daquelas de tirar o fôlego, num bom livro. E enquanto caminhavam no aeroporto agora, cada um para pegar sua conexão diferente, sentiam, ao mesmo tempo, aquela dorzinha de quem chega à última linha de uma história que adorou.

sábado, 27 de agosto de 2011

OS OUTROS SÃO OS OUTROS

rio de mim mesma com muito escárnio. acho melhor assim. melhor que eu ria, que riam de mim. divirto-me bem mais rindo de mim do que dos outros.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

VOTO

De repente, o silêncio; ausência de voz, de nós, deles e todo o resto. Porque mesmo vivendo isso todos os dias, ou pelo menos em muitos dias, é raro perceber o silêncio e o corte na normalidade das coisas que ele faz. Estranhamos o silêncio como se ele fosse a falta do que não conseguimos expressar. Que bobagem. Se você puder notar, repare, é no silêncio que moram os melhores segredos, esses mesmos, que as palavras não sabem como dizer.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

EDIÇÃO ESPECIAL

Será que vamos lembrar dessas coisas depois? Outro dia eu chorei muito achando que tinha perdido minha memória. Já pensou, esquecer que meu pai me deu um conjunto de canetinhas e todo dia eu fazia um desenho diferente para dar a ele? Talvez eu quisesse esquecer algumas coisas, especialmente essas que doem e fazem sentir como se o tempo nunca mais fosse passar. Mas se eu pudesse escolher, acho que teria tanta dúvida, ia temer tanto apagar as coisas importantes. Sim, porque elas se escondem nas curvas, em pequenas brechas das memórias mais bobas ou infantis.

sábado, 20 de agosto de 2011

JEAN GENIE

Os dias passam. Velozes como uma estrela cadente. Na verdade demorando mil anos para passar. E a dor, que não passa, esmaece nas extremidades; não deixa claro onde tudo começa ou termina. O que está no meio é o que nos faz sorrir. Alvo fácil de mira difícil.

CAFÉ FRIO

Quando o tempo esfria, ele sente vontade de tomar café. Ela acha graça. Não toma café. Mas adora o gosto amargo que o beijo dele tem.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

PÉROLAS E PEDRAS PRECIOSAS

Sentados na beira do píer, ele me contou sobre seus sonhos. O cenário era de uma beleza surreal e eu tive a sensação de também estar sonhando. Ríamos como dois bobos, só porque tudo parecia engraçado. Só porque era engraçado o inusitado da situação: nós dois ali, dois estranhos, dividindo anseios e sonhos, falando de poesia, dos luxos que preenchem a alma. Eu falei sobre navegar ser preciso. E ele me falou sobre as pedras que guardava para seu castelo. Confissões cheias de amor e dor, preciosidades que moravam no céu e no mar dentro e ao redor deles.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

EM VOLTA

Te mando embora, mas você volta. Sai da minha vida só para voltar mais tarde, como um animal faminto. Não quer saber se eu tenho fome. Ou sede, ou frio, ou medo. Não quer saber se eu senti falta, se senti dor, pena ou raiva. Volta para mim como uma canção antiga, que eu jamais pude esquecer; cuja melodia, alojada em minha memória, pode ser ressucitada com um beijo leve.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

RASANTE

Ele me deu novas instruções. Teve o cuidado de um ourives, mas me deu uma missão. Se esqueceu que sou kamikaze. E me beijou com um adeus de quem queria voltar.

PERGUNTAS INFANTIS

Quando a gente é criança, tem todas as perguntas. Adulto, a gente acha que tem as respostas; se confunde, responde as coisas com pressa, descuida das respostas. Não percebe, mas o tempo anda ainda mais rápido do que a gente já sabe. E, sem notar, acumulamos perguntas sem resposta, respostas erradas, questões fora do lugar. Se existe uma hora certa de parar e recalcular, deve ser esta; avaliar as possibilidades direito, pensar com o carinho e a curiosidade da criança que fomos para começar a perguntar de novo.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

UM CAFÉ


Ele me chamou para um café. Eu estava meio sem vontade, mas fui.

Ultimamente andava sem vontade das coisas, sem paciência para as pessoas, cansada de minha própria impaciência e falta de interesse. Por isso fui.

Foi bom vê-lo. Ele estava bonito, empolgado, fazendo planos. A alegria dele era inspiradora.

Ele levou um livro e eu achei que era para matar o tempo enquanto eu não chegava, porque, ele sabe, eu vivo me atrasando. Mas num dado momento ele disse que queria ler para mim um trecho do livro. Perguntou se podia - ele era muito educado. E eu disse: claro!. Então ele começou:

"O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:

- Não chore assim!

A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; via-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião, tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma coisa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:

- Não ria assim!"

Quando ele terminou, eu ria, mas meus olhos estavam inundados. Ele sabia que aquele era o meu livro favorito. E eu nem lembrava mais direito da história, nem que ele sabia sobre meu livro favorito.

Minha cabeça então se encheu de memórias. E quando ele fechou o livro, deu um gole no café e depois sorriu para mim, eu senti o sabor das lembranças com aquele gosto doce e amargo do café que eu bebia também.

Eu não disse nada, mas ele entendeu. A gente sabe quando o outro sente a mesma coisa.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

INTENTO

Seu amor, de mentira, me preenche de verdade. O seu amor, verdadeiro como a maldade, me engana, me atrai e trai. Meu amor, de verdade, a verdade é o que a gente sente. E as mentiras, sinceras desculpas pro que não podemos fingir. Me ame do seu jeito e eu te amo do meu. O que a gente não souber, a gente inventa.

AMORES E HUMORES

Sem jeito, ele diria algo divertido, só para distrair o mal humor dela. Ela mesma mal suportava o próprio mal humor. Olhava para ele e não entendia como todo aquele amor não enjoava, como todo aquele esforço para deixar tudo bem não o exauria. E ele olhava para ela e pensava apenas que ela era divertida até mal humorada.

INVASÕES

você invade minha rotina. diz que eu sempre entendo o que você diz. se envaidece com minha atenção. se lambuza com meu afeto feito criança tomando sorvete de manga. eu te seduzo. e você me arrasta para sua solidão invisível, me acarinha de maneira doce e bruta, me venda e me deixa tonta. diz que precisa de proteção mas nem percebe que também não me protejo.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

UM SORRISO PARA ELE

ainda há pouco ele me fez sorrir de um jeito bobo, despretensioso... eu ri sem querer, sem nem perceber que o dia de repente tinha ficado bonito, como se não houvesse mais nada para se preocupar na vida. fazia um tempo que eu não percebia isso, que existem pessoas assim, que fazem a gente esquecer que o mundo é um lugar complicado, mas pode ser também bem simples se você, por um momento que seja, puder esquecer de todo o resto e trocar a importância das coisas por um sorriso bobo, despretensioso.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

PAISAGENS

paisagens são como portais para um mundo fantástico onde nada tem tanta importância diante do gigantismo e da brutalidade da terra, do céu, do mar e todas as suas cores verdes, azuis, amarelas e brilhantes, incapazes de serem descritas ou fotografadas com fidelidade porque são reais demais. paisagens são como passagens secretas que nos transportam dos lugares que visitamos e nos levam ao interior de nós mesmos, um lugar que conhecemos pouco, cheio de emoções que despertam acionadas pela estampa do que os olhos vêem.

UNIVERSO EM DESALINHO

mesmo com os olhos cansados, pôs-se então a observar a linha do horizonte, que dividia o céu e o mar, sem entender bem onde acabava um e começava o outro. pôs-se a pensar também sobre a linha invisível que lhe cortava em dois meridianos, um que queria voltar no dia que se punha ali junto com o sol; outro que queria avançar naquele azul profundo surgido com a noite que começava. e mais uma vez se perdeu nas divisões invisíveis a olho nu. uma viagem particular às linhas que dividem os continentes, os pensamentos, os sentimentos, o dia, a noite e o desalinho das nuvens de magalhães.

O SAL, O SOL, A LUA

daqui não vejo a lua.
não vejo se sua cama segue vazia.
o sol segue escaldante.
e, displicente, você me segue.
aqui não há silencio, exceto pelo mar.
e sinto falta do silencio da sua voz.
aqui vivo um sonho real. é o q eu esperava.
você é o q eu não esperava.
alojado na minha pele como o sal.
agora, com todo o mar me abraçando, ainda me falta sal. e sono.