Ricardo estava confuso, no olho do furacão. E detestava essa confusão. Odiava ser réu e refém da situação. Mas sei lá, as coisas se complicam, mesmo que você não queira, mesmo que evite o confronto, o conflito, a baixaria toda. Por que será que as pessoas são assim? Que tirania é essa que mora na gente e se manifesta sem controle, como se a gente fosse bicho, cavalo, serzinho vulnerável, que se satisfaz de ferir só porque se sentiu ferido. E ainda acha que isso é desculpa.
Ricardo
estava irritado, puto. Por que as mulheres eram assim, tão putas, tão loucas,
tão impossíveis de se entender? E por que ele era tão otário de acreditar numa
criatura dessas? Por que era tão impossível resistir àquela boca, àquelas
pernas de coxa grossa e bunda empinada que ela tinha.
Ela era
Manuela. Manuela magrela, comprida, ossuda, de olhos pequenos e boca grande,
dentes brancos, sorriso de menina e olhar de mulher safada, dessas que sabe o
que quer, que tem o que quer e que faz gato, sapato, rato, trapo picadinho de
você.
Manu era
mais velha (coisa de um ano ou dois) que Ricardo. Eram da mesma geração. Tinham
amigos comuns daquela época de colégio, já fazia tempo, era daí que vinha a
amizade antiga, mas adormecida por um tempo. Um tempo em que quase não se
viram. Um tempo em que cresceram, não se perceberam muito, muito ocupados cada
um com suas vidas, seus problemas, seus hábitos, manias, vícios, doenças, perda
de tempo com coisas que só fazem a gente perder tempo e saúde. E paciência
também.
Um dia se
esbarraram, numa dessas ocasiões da vida que depois fazem com que a gente se
pegue pensando se foi por isso, por aquilo, num momento propício ou
extremamente (e excitantemente) impróprio, e aí conclui que tanto faz, pode ter
sido apenas um alinhamento de planetas e signos que formaram uma sinastria
favorável. Pode ser tudo isso ou nada disso. Quem explica um encontro desses
que muda tudo, vira o mundo de ponta cabeça pra baixo, tipo uma capotagem
tripla?
Rita Lee
canta que o amor nos deixa patéticos. Diz que amor é latifúndio e sexo é
invasão, amor bossa nova e sexo carnaval. Sexo do bom, amor do bem. Manu
misturava aquela invasão toda, o carnaval, a bossa nova, o bem e o bom e também
o mau (e o mal) dentro de Ricardo. Havia qualquer coisa de angelical e diabólico nela, um
paradoxo, uma charada, uma chacota que ele não achava tão engraçado assim.
Qual era o
problema das mulheres? Por que diabos elas queriam tanto ser o novo homem? Pra
que tanta hostilidade, tanta firmeza, tanta razão? Cadê aquelas mulheres que
precisavam de proteção, de carinho, de cuidado? Porra…
Manu não
queria andar de mãos dadas. Não queria beijo em público. Não queria viajar,
sair pra dançar, beber, jogar conversa fora à toa. Ela ia de vez em quando,
mas se esquivava de romance a olhos vistos. Um beijinho roubado, uma beliscada,
um arranhão nas costelas magrelas, ok. Mas Manuela magrela não tinha vocação
para namoradinha. Não havia nada inha em Manu. Manu era um mulherão, mas nem se usava muito disso. Era quieta, discreta, na dela. Era meio maluquinha, distraída,
misteriosa. Era difícil saber o que se passava na cabeça de Manu. Mais difícil
ainda saber o que se passava em seu coração. Ela era uma mulher que a gente não notava sempre, ela se escondia um pouco. Só depois Ricardo foi perceber que na verdade ela se defendia. Não devia ser fácil ser uma mulher assim tão grande, solta, bonita, sozinha - quantas pessoas já haviam feito aquela pergunta cretina sobre como uma garota tão bonita não tinha namorado?
Ricardo
tentava penetrar a barricada emocional dela, mas era pego no contrapé da
sedução. Manu arrastava Ricardo para a cama toda vez que se encontravam.
Conversavam, tratavam-se bem, com carinho, emoção e tal, mas tantas coisas que
Ricardo queria dizer a Manu, tanto que ele desejava sua companhia e tinha
vontade de participar mais de suas coisas, de carregá-la com ele pros lugares,
de tê-la na cama dele de vez em quando e em mais vezes que ele quisesse vê-la, que
ela quisesse também com a mesma frequência, mas não, Manu não parecia ter as
mesmas vontades, não fazia planos, não marcava nada, dizia sempre “a gente vai
se falando”. E com o tempo Ricardo foi se frustrando com aquele gerúndio
incerto.
Por um
tempo ele tentou se convencer de que aquela era, na verdade, a situação ideal.
Encontrava Manu uma vez a cada uma ou duas semanas, trepavam loucamente,
conversavam horas entre cigarros, cervejas e folk music. Ricardo era um
ignorante musical, mas tinha bom ouvido. E Manu tinha paciência. Tinha todos os
discos do Bob Dylan e mostrou, um a um, comentando detalhes das canções, a
Ricardo, que gostava de Bob Dylan como todo mundo que só sabe o refrão de blowing
in the wind.
Manuela
Carneiro de Menezes era uma mulher sofisticada, entendia de artes, restaurava
quadros e fotografias antigas. Viajava o mundo para projetos de recuperação
importantes. Tinha morado na Itália e havia trabalhado no Museu do Vaticano, o
mais rico do mundo, segundo ela. Mais rico que o Louvre? perguntava Ricardo,
testando o bom senso da garota. Excluindo a Mona Lisa, que na verdade não tem
preço, o valor monetário de todas as obras do Louvre não chega à metade de toda
riqueza de ouro, diamantes, jóias e coroas que existem no Vaticano. É uma
imoralidade que a igreja, que fala em nome de deus, seja tão rica enquanto
ainda há crianças que morrem desnutridas, pobres e doentes no mundo… Ricardo
ficava quieto. Ia dizer o quê?
Ricardo era
um cara simples. Gostava de fazer contas, de gastar pouco, de pensar em
soluções para ganhar mais dinheiro seguindo o fluxo e a temperatura do mercado.
Era bom nisso. Conhecia o pregão, sabia de ações, de grandes investidores, dos
investimentos dos jogadores de futebol e empresários “da bola”. Ele e Manu
falavam de futebol, torciam para o mesmo time, assistiam na TV às vezes, mas
não sempre. Nada com Manu parecia ser para sempre. Ricardo se frustrava. Queria
a vida simples de antes, mas fora invadido pela vida complexa de Manuela.
Queria ir embora, queria não voltar mais, queria que Manu pedisse que ele
ficasse, que ele não fosse. Mas nenhum dos dois dizia qualquer dessas coisas em
voz alta.
Não eram
bons em falar. Eram bons calados, colados, uma boca dentro da boca do outro,
muitas mãos e pés e pernas misturados. Era tudo sempre tão intenso, sempre tão
forte, uma volúpia que era divertida, deixava as pernas moles, os pés
dormentes, os corpos atravessados e amontoados sobre o colchão torto na cama. A
cama, muitas vezes, completamente fora do lugar. Frequentemente Ricardo
comentava “qualquer dia esses vizinhos vão reclamar do nosso barulho.” Manu ria
e dizia que não ouvia nada, quando via, já estava tudo daquele jeito, tipo
Japão pós tsunami.
Ricardo ria
de Manu. Ria com ela. Adorava suas histórias, suas piadas, seus comentários
espertos, cheios de sarcasmo e maldade. Custava a ele perceber os momentos de
doçura dela, os momentos de guarda baixa, tipo aquele momento em que ela se
encolhia na cama feito um bichinho, e esperava as mordidinhas dele no pescoço.
Ela se retorcia de cócegas e tesão quando ele fazia isso. Era tudo uma delícia
nela, era tudo uma delícia com ela. Era difícil deixar para trás alguém tão
deliciosamente do bem.
Manu
despertava coisas em Ricardo que ele não sabia que tinha. Se sabia, já tinha
esquecido. E agora estava ali, lidando com esses sentimentos contraditórios de
querer ir e querer ficar, de não saber o que fazer, o que dizer, como explicar
a ela que aquilo era um sufoco, sendo que era também tão bom.
Numa manhã
de terça-feira, era outono e o sol estava começando a mostrar força, Ricardo
recebeu uma mensagem de Manu perguntando se poderiam se ver naquela noite. Ele
tentou resistir e disse que não podia. Ela insistiu, coisa rara. Ligou e disse
que no dia seguinte iria viajar e seria triste se não pudessem se ver, pois ela
iria demorar a voltar. Como assim?
Quando se
encontraram mais tarde na casa dela, Ricardo estava tenso, tonto, confuso.
Exatamente daquela maneira que ele mais detestava. Mas Manu recebeu Ricardo na
porta com aquele beijo que ela sempre guardava para os dias de mais saudade, aquele
beijo que abre uma bolha no tempo e se esconde num vácuo secreto, onde o resto
do mundo deixava de ter consistência, peso e importância. Arrancaram as roupas
com fome de quem tem fome. Ricardo tinha Manu nas mãos mas, naquela altura, já
estavam no mesmo nível, no nível zero, no chão, enroscados, enrolados. Quando
as costas de Manu tocaram o chão, ela sentiu frio, se arrepiou, arranhou
Ricardo, grudou-se nele feito gato temendo água ou queda. Mas ele fez mais
maldades, ele sabia que ela gostava de maldades assim, puxou pelos cabelos
entre os dedos a cabeça de Manu para o chão, beijou sua boca indecente
entreaberta para cima, como a de um peixe fisgado, mas lá embaixo, enroscado
nas escamas da pele dela, ele não sabia mais a diferença entre o peixe e a
sereia.
Amaram-se
como se fosse o último dia de existência na Terra. Os vizinhos certamente
teriam notado. Com os corpos meio inertes ainda na cama e sob o silêncio bem
cadenciado das respirações intensas, Ricardo lembrou que Manu iria viajar.
Para onde dessa vez? Para a China. Na verdade, para o Tibete. Ia restaurar
painéis de centenas de anos de monastérios tibetanos. Não sabia quanto tempo
iria ficar. Não sabia como seriam os próximos passos depois de sua chegada à
Lhasa. Não sabia se voltaria logo, se seguiria viajando até catalogar os locais
de restauro, se teria de supervisionar a compra do material, não sabia nada, só
que ia no dia seguinte. Ricardo ficou arrasado. Teve vontade de chorar,
mas se conteve, era homem. E aquela era Manu. Manu era assim, ele sempre soube. Manuela magrela, a mina da 8a Z, que jogava bola com os meninos na escola e depois beijava o felizardo escolhido da vez em algum canto da quadra. E depois ia embora como se nada tivesse acontecido.
Ao se
despedirem na porta, mais uma vez daquele jeito que era sempre tão gostoso,
Manu acabou confessando que queria estar mais perto, que queria poder levar
Ricardo na bolsa dela, sabe, igual ao gato Felix, que tem uma bolsa preta onde
tudo cabe dentro? Mas como? Ela já sabia, ele também. Não adiantava falar nada.
Então beijaram-se uma vez mais, como se fossem se engolir, como se o ar fosse
faltar porque não existia ar que interessasse ou servisse além daquele que
estava dentro do beijo deles. Ele saiu, ela entrou, a noite passou e Manu foi
morar no Tibete por tempo indeterminadamente infinito.
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