Crio meus anticorpos da resistência com quem cria seus filhos – para que
sejam capazes de sobreviver a qualquer coisa. Percebo que as coisas que não me
matam me fortalecem. Concluo portanto que podemos ser resistentes às coisas
mais hediondas como as doenças, a fome, a saudade e a paixão.
quinta-feira, 31 de maio de 2012
terça-feira, 29 de maio de 2012
Sereias iludidas
Há castelos de areia bem resistentes. Mas de vez em quando a maré enche que transborda. Não há heróis, apenas alguns super-heróis, desses dos quadrinhos, alteregos, homenagens, imitações. Nenhum deles enfrenta as ondas do mar. Só as sereias sabem sobre iludir os homens que não se afogam. E elas não vivem em castelos.
Você não sabe de nada
Você não vê a lua que sorri. Não viu o sol que se pôs e deixou o céu inteiro laranja. Não viu como choramos, como pedimos e tentamos que as coisas fossem diferentes. Você não sabe de onde tiramos força. Acho que nem nós sabemos. Há uma beleza triste na solidão, na fome de não ter todas as respostas, na falta daquela mão que te acorda quando você acha que está se afogando, mas está apenas sonhando. Você pode acordar alguém, pode velar seu sono, enxugar suas lágrimas, mas não pode chorar, dormir e acordar por este alguém, realizar seus sonhos. A gente pode viver várias vidas dentro de uma só, só não pode viver a vida que não é nossa. Não pertencemos a ninguém. E você não me pertence. Não vê a lua que me sorri, não sabe do que me faz falta, do que me faz bem e do que me faz mal. Você não sabe do que estou falando. Você não sabe de nada.
O que dura enquanto o tempo passa
Como tudo o
que não é feito para durar, o tempo passa; faz, desfaz e seguimos mudando, já
que não somos de pedra.
Como tudo o
que não é feito para durar, os sonhos acabam, as histórias acabam, pessoas e,
mesmo lugares, deixam de existir; ou de importar, o que dá quase no mesmo.
Como tudo o
que não é feito para durar, somos perecíveis, todos nós, mesmo que uns um pouco
mais que outros.
Vivemos
como se fôssemos imortais, mas convivemos diariamente com pessoas, bichos,
plantas… seres que morrem, que acabam, que não foram feitos para durar.
Quanto
tempo é tempo demais? Viver é bom. É dose única – embora precise de várias
doses para equilibrar o corpo que é fraco, máquina difícil de cuidar. Viver é
caro, é raro. Há muita gente que apenas existe, sub-existe. Há gente que se
mata para sobreviver. Há quem consiga. Há quem apenas mate e nunca conseguimos
entender direito o porquê. Somos todos perecíveis, apenas uns um pouco mais que
os outros.
Como tudo o
que não é feito para durar, as viagens terminam, os ciclos se encerram, as
estações se confundem na atmosfera alterada, mas ainda assim, o outono se funde
no inverno e só assim acontecem também a primavera e o verão. Nos repetimos,
mas as coisas nunca são iguais e há um motivo que explique isso e também a
inversão das estações no outro hemisfério.
As
distâncias duram. As dores duram. As faltas duram. As lembranças duram para
sempre – seja o sempre a duração breve ou longeva de uma memória.
Há coisas
que duram, mas eventualmente elas também mudam. Distâncias diminuem, dores
passam, faltas são absorvidas pela vida que flui; há lembranças que sem querer
esquecemos. Há que se esquecer. E deixar que o tempo
passe e que as coisas durem o tempo que precisarem durar.
segunda-feira, 28 de maio de 2012
Vicious habits / Hábitos viciosos
“Vicious”,
do jeito jocoso que pensava Lou Reed. Era assim que ele conseguia definir
aquela mulher. Ela era “vicious”. Seria simples traduzir como “viciante” ou
“viciosa”, mas não, “vicious” no seu sentido muito mais completo em inglês,
tinha significados que não eram compreendidos e usuais em português.
Literalmente, “vicious” tinha como sinônimos as palavras todas que podiam
descrever o jogo daquela mulher: vicioso, perverso, viciado, depravado, mau, imoral,
rancoroso, vingativo.
No fundo
ele sabia que o melhor era manter-se longe, então custava-lhe entender porque
algo que se manifestava no fundo dos pulmões lhe causava aquela ausência de ar
toda vez que se encontravam. Ela era tudo o que uma mulher não devia ser, era
solta, ocupada, irreverente, estava sempre com alguém diferente, raramente
sozinha. E quando estava sozinha era irritante ver a fila de idiotas bancando o
bobo da corte para chamar sua atenção. E ela ria fácil. E seu sorriso de mil
dentes parecendo estrelas deixavam as suas pernas inexplicavemente moles, assim
como seus miolos.
Ela era uma
mulher comum, dessas que se você cruzar numa banca de jornais, nem vai prestar
atenção no cigarro Dunhill que ela compra. Esse é o tipo de coisa que você só
presta atenção se tem que barganhar por um trago naquele cigarro estranho, que
ela diz que não é dela, quando se recusa a te dar um cigarro no fim da noite. E
você não sabe se ela está lhe negando um cigarro ou lhe dando o privilégio num
trago do cigarro que esteve há pouco na boca dela.
Mas numa
pista de dança aquela mulher não era a mesma da banca de jornal. Ela entrava na
pista com passos elegantes. Já tinham se cruzado em tantas festas… A primeira
vez que colocou os olhos nela, ele lembrava, havia sido numa pista de dança, lá
pelos idos dos anos 90. Ela era mais jovem, mais contida, mas já tinha aquela
alegria solta, de quem sabia das coisas, de quem dançava como se não houvesse
ninguém mais ali. Ela era sexy, seus movimentos eram de uma mulher que sabe
como lidar com um homem na cama. Ele sempre tinha tido esse conceito – o de que
a mulher que é incrivelmente sexy numa pista de dança era, indubitavelmente,
incrivelmente boa de cama. Era uma teoria comprovada, ele achava, tinha
certeza.
Alguns
anos depois, já não eram tão
jovens nem tão contidos, mas ela continuava tendo aquela alegria solta, de quem
sabia ainda mais das coisas e por isso tinha aquele olhar de quem estava sempre
no comando, defendida, sem permissão para maiores aproximações. Era o tipo de
mulher que a gente não via sozinha. Aquilo lhe irritava. E quando, de vez em
quando, os olhares se cruzavam numa festa, num bar, num show ou qualquer outro
canto escuro da cidade, ela desviava, se esquivava como se estivesse fugindo de
alguém lhe pedindo esmolas ou apontando-lhe uma arma. De longe ela parecia uma
mulher poderosa. De perto ela parecia uma mulher assustada. E ele não sabia
quem ela realmente era. E não sabia, portanto, o que poderia lhe dizer.
Mesmo assim
seu cromossomo, sua criação, seu dna de homem rústico não aprovavam aquela
mulher. Ela era “vicious”. Ela estava sempre com alguém diferente. Ela parecia
estar sempre se divertindo. Ela contava histórias e estava sempre cercada de
gente que gostava de ouvir suas histórias. Ela bebia como um homem e não era
raro que ele mesmo não pudesse, de fato, fazer esse julgamento, pois ele mesmo
bebia demais, bem mais que ela. Mesmo assim, não era bom que ela bebesse como
um homem. Não era bom que ela fosse assim, tão femininamente homem. Ele não
gostava disso. Sua cabeça de cima insistia nisso, o tempo todo. A outra cabeça,
porém, perdia o juízo quando via a menina dançar, passar, desfilar com umas
roupas estranhas, que estranhamente ele sempre gostava. Até isso era “vicious”
nela.
Há um
estudo que diz que a paixão e o vício atuam numa área do cérebro que é muito próxima.
Daí a confusão mental, a perda da sensação de realidade, as atitudes impulsivas
e muitas vezes inconsequentes. A gente tem que se livrar dos vícios. Substituir
os maus hábitos por bons hábitos. Ser um ser humano equilibrado não é para
qualquer um, não, não é. De alguns vícios, pensava ele, era melhor livrar-se
aos poucos; outros, porém, era melhor cortar de uma vez.
algo de bom!
há que se agradecer todos os dias pelos lugares, as pessoas, as canções, as decepções, enfim, os caminhos que nos mostram todos os dias algo de bom.
O que não faz sentido.
O que não se disse, o que não foi escrito, vivido, passado a limpo, tentado. O que não foi feito, o que foi desfeito, o que não se recuperou, o que não se curou, o que não foi salvo, resgatado, restaurado, restabelecido, estabelecido, porque há coisas que são difíceis. Há coisas que depois não fazem mais sentido.
quarta-feira, 23 de maio de 2012
Rio-SP-Rio-Londres
Valentina
saiu de casa para ir à farmácia. Ia comprar analgésico, antiinflamatório e uns
antibióticos que ainda podia comprar, essas coisas que em países desenvolvidos
não se podia comprar sem receita. Depois era só colocar o casaco por cima,
fechar a mala e partir para Londres no dia seguinte. Ela estava muito tranquila
e decidida sobre aquela viagem, embora não soubesse bem o que faria assim que
chegasse lá, nem ao certo a data de retorno. Nada disso importava. Aquela era
uma viagem necessária. Era mais que turismo, férias, estudo ou aventura, aquela
era uma expedição ao fundo da alma. Era a hora de se desprender de quem era, do
que queria, do que parecia certo antes mas agora parecia não ter sentido algum.
Valentina precisava sair do Rio, precisava esquecer São Paulo, precisava ser
outra pessoa, precisava ver outras pessoas, outras línguas, outras paisagens,
cenários e contextos.
Foi então
que teve o estalo. Estava atravessando a Bolivar quando se deu conta de que não
poderia embarcar para Londres nem para nenhum outro lugar antes de São Paulo.
Precisava se desculpar. Precisava se despedir. Precisava dizer na cara dele,
olhando nos olhos, que aquele amor era maior do que qualquer coisa que ela
pudesse ter imaginado existir no universo, mas talvez por isso mesmo, essa
grandeza exagerada, desgovernada, não era mais possível. Sem ofensas, sem
promessas, sem destemperos humilhantes dessa vez. Mas uma despedida era tão
necessária quanto a viagem à Londres. “Strike and run.”
De
camiseta, bermuda, chinelos, 30 reais e um cartão de crédito na carteira, ela
parou um táxi na Av. Nossa Sra de Copacabana e pediu ao motorista para tocar
para o Santos Dumont. De lá avisou Maurício, em São Paulo, que estava à
caminho, que ele lhe esperasse ligar quando chegasse em Congonhas, que ia pegar
um táxi e encontrá-lo no apartamento de Moema, que ele tivesse dinheiro para
pagar o táxi porque o que tinha não seria suficiente para a corrida. Maurício
ouviu as ordens incrédulo do outro lado, mas entendeu e acatou tudo o que
Valentina pediu e foi lhe esperar em casa.
Valentina
então ligou para a mãe, avisou que ia a São Paulo, mas que já estaria de volta
no dia seguinte cedo, em tempo de tranquilamente almoçar com ela e papai antes
das quatro da tarde, quando partiria para o Galeão e então Londres. A mãe deu
um grito “Está indo onde, menina?” e Valentina, sem tempo e paciência de dar
detalhes, apenas repetiu “À São Paulo, mãe. Mas amanhã cedinho estarei de
volta. Beijo, tchau.”
Maurício
recebeu Valentina no portão do prédio, pagou o táxi, entrou com ela no
elevador, ambos encarando o chão como se aquilo fosse a coisa mais bela e confortável
do mundo. Mas sentiam na garganta um punhado de farofa faro-fino. Sem sorvete.
Entraram no
apartamento que estava iluminado com aquela luz amarela do outono; aquela luz
das cinco da tarde quando o sol vai embora lentamente e leva com ele boa parte
do calor do dia. Era bonito e triste. E antes de se deixar dominar por esses
pensamentos inúteis Valentina pediu desculpas a Maurício. Disse a ele que
embarcaria para Londres no dia seguinte, que aquela era uma viagem necessária,
que ela nem entendia bem ainda o porquê daquilo tudo, mas que sabia que mais
cedo ou mais tarde tudo faria sentido. Maurício ouviu tudo calado. Entendeu
tudo, já sabia, claro. Como era possível serem tão parecidos e gostarem de
coisas tão diferentes? Como podiam ser tão diferentes e se encontrarem tanto um
no outro? Aquilo era tão triste… e era preciso que agora fossem adultos, que
encarassem de frente aquela necessidade de reinventarem suas vidas, cada um no
seu caminho. Mas que se perdoassem, que não se machucassem mais.
Passaram
uma noite incrível juntos. Se tivessem planejado, dificilmente tudo seria tão
intenso, tão perfeito, exercício de tanta ousadia, parceria, desejo, amizade,
amor, perdão, fim.
Ainda na
madrugada Valentina pegou um ônibus de volta para o Rio. Chegou cedo, beijou os
pais, foi tomar um banho, guardou os remédios, o casaco e fechou a mala;
almoçou com os pais, depois tomaram café entre cigarros e risadas sobre os
planos de Valentina para Londres, ali, sendo explorados com os pais ainda um
pouco inseguros sobre Londres. “Gente, eu já morei no Rio de Janeiro e em São
Paulo! São duas cidades muito loucas, com gente de todo lugar do mundo,
buscando coisas diferentes… Londres me parece ter essas coisas mais
organizadas; as pessoas parecem mais civilizadas. Eu preciso de um pouco de
ordem na vida. Não se preocupem, não vou ficar lá para sempre.”
Despediram-se
na porta às quarto da tarde e no dia seguinte a vida de Valentina começava em
Londres, onde não havia Maurício, mamãe, papai, praia, calor e diversões
fáceis. Há viagens difíceis que a gente tem que fazer.
sexta-feira, 18 de maio de 2012
coisas mal escritas
escrevo coisas mal escritas. sempre escrevi coisas mal escritas. mas era mais cuidadosa, riscava, reescrevia, editava, lia mil vezes, perdia tempo com a delicadeza de ourives para palavras mal escritas de quilate tão simples.
eu era mais cuidadosa com tudo. e noto como a delicadeza exige muito mais força do que se pode supor. e as palavras sofrem, mal escritas, mal cuidadas, de mau com a rima perdida, que não cabe mais na métrica, que sobra, que falta.
coisas mal escritas são retalhos, pedaços pequenos e dissonantes, farelo daquilo que não se logra escrever.
eu era mais cuidadosa com tudo. e noto como a delicadeza exige muito mais força do que se pode supor. e as palavras sofrem, mal escritas, mal cuidadas, de mau com a rima perdida, que não cabe mais na métrica, que sobra, que falta.
coisas mal escritas são retalhos, pedaços pequenos e dissonantes, farelo daquilo que não se logra escrever.
O frio é um remédio amargo que faz bem
O frio nos faz sentir. Faz-se notar que o tempo mudou, que nem sempre ele é gentil.
É
interessante sentir o tempo mudando, as coisas que passam, que acabam. E ao mesmo
tempo que é tão triste, é também tão necessário que é bom, faz bem.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Outono é época de confusão
O homem olhou o relógio apressado. Com pressa de quê? Sua pressa não iria acelerar a saída do avião. Estava com pressa e isso de nada lhe servia. Lhe alimentava a ansiedade, a vontade de sair dali, de ir lá for a fumar um cigarro, a impotência por não pode sair dali, e nem mesmo acender um cigarro ali mesmo, já que obviamente ali não era permitido fumar. Quando é que tudo ficou tão complicado? Foi quando notou uma garota, sentada no banco da frente, vendo fotos no computador. Ela devia ter o quê, uns 30 anos? Um pouco mais, um pouco menos. Ela estava de calça jeans e camiseta, era qualquer pessoa, só mais uma a esperar. Mas enquanto esperava ela via fotos no computador. Fotos da praia, do mar, peixes, pássaros, um homem de chapéu e pessoas sorrindo. Ela via as fotos devagar e ele sem querer tinha embarcado na viagem dela. Era outono, claro que o teto de Curitiba estava baixo e o vôo iria atrasar. A gente teima em perceber que o outono é uma época de tempo confuso e, de repente, não podemos controlar nem mesmo o destino da viagem.
domingo, 13 de maio de 2012
Gerúndios infinitos
Ricardo estava confuso, no olho do furacão. E detestava essa confusão. Odiava ser réu e refém da situação. Mas sei lá, as coisas se complicam, mesmo que você não queira, mesmo que evite o confronto, o conflito, a baixaria toda. Por que será que as pessoas são assim? Que tirania é essa que mora na gente e se manifesta sem controle, como se a gente fosse bicho, cavalo, serzinho vulnerável, que se satisfaz de ferir só porque se sentiu ferido. E ainda acha que isso é desculpa.
Ricardo
estava irritado, puto. Por que as mulheres eram assim, tão putas, tão loucas,
tão impossíveis de se entender? E por que ele era tão otário de acreditar numa
criatura dessas? Por que era tão impossível resistir àquela boca, àquelas
pernas de coxa grossa e bunda empinada que ela tinha.
Ela era
Manuela. Manuela magrela, comprida, ossuda, de olhos pequenos e boca grande,
dentes brancos, sorriso de menina e olhar de mulher safada, dessas que sabe o
que quer, que tem o que quer e que faz gato, sapato, rato, trapo picadinho de
você.
Manu era
mais velha (coisa de um ano ou dois) que Ricardo. Eram da mesma geração. Tinham
amigos comuns daquela época de colégio, já fazia tempo, era daí que vinha a
amizade antiga, mas adormecida por um tempo. Um tempo em que quase não se
viram. Um tempo em que cresceram, não se perceberam muito, muito ocupados cada
um com suas vidas, seus problemas, seus hábitos, manias, vícios, doenças, perda
de tempo com coisas que só fazem a gente perder tempo e saúde. E paciência
também.
Um dia se
esbarraram, numa dessas ocasiões da vida que depois fazem com que a gente se
pegue pensando se foi por isso, por aquilo, num momento propício ou
extremamente (e excitantemente) impróprio, e aí conclui que tanto faz, pode ter
sido apenas um alinhamento de planetas e signos que formaram uma sinastria
favorável. Pode ser tudo isso ou nada disso. Quem explica um encontro desses
que muda tudo, vira o mundo de ponta cabeça pra baixo, tipo uma capotagem
tripla?
Rita Lee
canta que o amor nos deixa patéticos. Diz que amor é latifúndio e sexo é
invasão, amor bossa nova e sexo carnaval. Sexo do bom, amor do bem. Manu
misturava aquela invasão toda, o carnaval, a bossa nova, o bem e o bom e também
o mau (e o mal) dentro de Ricardo. Havia qualquer coisa de angelical e diabólico nela, um
paradoxo, uma charada, uma chacota que ele não achava tão engraçado assim.
Qual era o
problema das mulheres? Por que diabos elas queriam tanto ser o novo homem? Pra
que tanta hostilidade, tanta firmeza, tanta razão? Cadê aquelas mulheres que
precisavam de proteção, de carinho, de cuidado? Porra…
Manu não
queria andar de mãos dadas. Não queria beijo em público. Não queria viajar,
sair pra dançar, beber, jogar conversa fora à toa. Ela ia de vez em quando,
mas se esquivava de romance a olhos vistos. Um beijinho roubado, uma beliscada,
um arranhão nas costelas magrelas, ok. Mas Manuela magrela não tinha vocação
para namoradinha. Não havia nada inha em Manu. Manu era um mulherão, mas nem se usava muito disso. Era quieta, discreta, na dela. Era meio maluquinha, distraída,
misteriosa. Era difícil saber o que se passava na cabeça de Manu. Mais difícil
ainda saber o que se passava em seu coração. Ela era uma mulher que a gente não notava sempre, ela se escondia um pouco. Só depois Ricardo foi perceber que na verdade ela se defendia. Não devia ser fácil ser uma mulher assim tão grande, solta, bonita, sozinha - quantas pessoas já haviam feito aquela pergunta cretina sobre como uma garota tão bonita não tinha namorado?
Ricardo
tentava penetrar a barricada emocional dela, mas era pego no contrapé da
sedução. Manu arrastava Ricardo para a cama toda vez que se encontravam.
Conversavam, tratavam-se bem, com carinho, emoção e tal, mas tantas coisas que
Ricardo queria dizer a Manu, tanto que ele desejava sua companhia e tinha
vontade de participar mais de suas coisas, de carregá-la com ele pros lugares,
de tê-la na cama dele de vez em quando e em mais vezes que ele quisesse vê-la, que
ela quisesse também com a mesma frequência, mas não, Manu não parecia ter as
mesmas vontades, não fazia planos, não marcava nada, dizia sempre “a gente vai
se falando”. E com o tempo Ricardo foi se frustrando com aquele gerúndio
incerto.
Por um
tempo ele tentou se convencer de que aquela era, na verdade, a situação ideal.
Encontrava Manu uma vez a cada uma ou duas semanas, trepavam loucamente,
conversavam horas entre cigarros, cervejas e folk music. Ricardo era um
ignorante musical, mas tinha bom ouvido. E Manu tinha paciência. Tinha todos os
discos do Bob Dylan e mostrou, um a um, comentando detalhes das canções, a
Ricardo, que gostava de Bob Dylan como todo mundo que só sabe o refrão de blowing
in the wind.
Manuela
Carneiro de Menezes era uma mulher sofisticada, entendia de artes, restaurava
quadros e fotografias antigas. Viajava o mundo para projetos de recuperação
importantes. Tinha morado na Itália e havia trabalhado no Museu do Vaticano, o
mais rico do mundo, segundo ela. Mais rico que o Louvre? perguntava Ricardo,
testando o bom senso da garota. Excluindo a Mona Lisa, que na verdade não tem
preço, o valor monetário de todas as obras do Louvre não chega à metade de toda
riqueza de ouro, diamantes, jóias e coroas que existem no Vaticano. É uma
imoralidade que a igreja, que fala em nome de deus, seja tão rica enquanto
ainda há crianças que morrem desnutridas, pobres e doentes no mundo… Ricardo
ficava quieto. Ia dizer o quê?
Ricardo era
um cara simples. Gostava de fazer contas, de gastar pouco, de pensar em
soluções para ganhar mais dinheiro seguindo o fluxo e a temperatura do mercado.
Era bom nisso. Conhecia o pregão, sabia de ações, de grandes investidores, dos
investimentos dos jogadores de futebol e empresários “da bola”. Ele e Manu
falavam de futebol, torciam para o mesmo time, assistiam na TV às vezes, mas
não sempre. Nada com Manu parecia ser para sempre. Ricardo se frustrava. Queria
a vida simples de antes, mas fora invadido pela vida complexa de Manuela.
Queria ir embora, queria não voltar mais, queria que Manu pedisse que ele
ficasse, que ele não fosse. Mas nenhum dos dois dizia qualquer dessas coisas em
voz alta.
Não eram
bons em falar. Eram bons calados, colados, uma boca dentro da boca do outro,
muitas mãos e pés e pernas misturados. Era tudo sempre tão intenso, sempre tão
forte, uma volúpia que era divertida, deixava as pernas moles, os pés
dormentes, os corpos atravessados e amontoados sobre o colchão torto na cama. A
cama, muitas vezes, completamente fora do lugar. Frequentemente Ricardo
comentava “qualquer dia esses vizinhos vão reclamar do nosso barulho.” Manu ria
e dizia que não ouvia nada, quando via, já estava tudo daquele jeito, tipo
Japão pós tsunami.
Ricardo ria
de Manu. Ria com ela. Adorava suas histórias, suas piadas, seus comentários
espertos, cheios de sarcasmo e maldade. Custava a ele perceber os momentos de
doçura dela, os momentos de guarda baixa, tipo aquele momento em que ela se
encolhia na cama feito um bichinho, e esperava as mordidinhas dele no pescoço.
Ela se retorcia de cócegas e tesão quando ele fazia isso. Era tudo uma delícia
nela, era tudo uma delícia com ela. Era difícil deixar para trás alguém tão
deliciosamente do bem.
Manu
despertava coisas em Ricardo que ele não sabia que tinha. Se sabia, já tinha
esquecido. E agora estava ali, lidando com esses sentimentos contraditórios de
querer ir e querer ficar, de não saber o que fazer, o que dizer, como explicar
a ela que aquilo era um sufoco, sendo que era também tão bom.
Numa manhã
de terça-feira, era outono e o sol estava começando a mostrar força, Ricardo
recebeu uma mensagem de Manu perguntando se poderiam se ver naquela noite. Ele
tentou resistir e disse que não podia. Ela insistiu, coisa rara. Ligou e disse
que no dia seguinte iria viajar e seria triste se não pudessem se ver, pois ela
iria demorar a voltar. Como assim?
Quando se
encontraram mais tarde na casa dela, Ricardo estava tenso, tonto, confuso.
Exatamente daquela maneira que ele mais detestava. Mas Manu recebeu Ricardo na
porta com aquele beijo que ela sempre guardava para os dias de mais saudade, aquele
beijo que abre uma bolha no tempo e se esconde num vácuo secreto, onde o resto
do mundo deixava de ter consistência, peso e importância. Arrancaram as roupas
com fome de quem tem fome. Ricardo tinha Manu nas mãos mas, naquela altura, já
estavam no mesmo nível, no nível zero, no chão, enroscados, enrolados. Quando
as costas de Manu tocaram o chão, ela sentiu frio, se arrepiou, arranhou
Ricardo, grudou-se nele feito gato temendo água ou queda. Mas ele fez mais
maldades, ele sabia que ela gostava de maldades assim, puxou pelos cabelos
entre os dedos a cabeça de Manu para o chão, beijou sua boca indecente
entreaberta para cima, como a de um peixe fisgado, mas lá embaixo, enroscado
nas escamas da pele dela, ele não sabia mais a diferença entre o peixe e a
sereia.
Amaram-se
como se fosse o último dia de existência na Terra. Os vizinhos certamente
teriam notado. Com os corpos meio inertes ainda na cama e sob o silêncio bem
cadenciado das respirações intensas, Ricardo lembrou que Manu iria viajar.
Para onde dessa vez? Para a China. Na verdade, para o Tibete. Ia restaurar
painéis de centenas de anos de monastérios tibetanos. Não sabia quanto tempo
iria ficar. Não sabia como seriam os próximos passos depois de sua chegada à
Lhasa. Não sabia se voltaria logo, se seguiria viajando até catalogar os locais
de restauro, se teria de supervisionar a compra do material, não sabia nada, só
que ia no dia seguinte. Ricardo ficou arrasado. Teve vontade de chorar,
mas se conteve, era homem. E aquela era Manu. Manu era assim, ele sempre soube. Manuela magrela, a mina da 8a Z, que jogava bola com os meninos na escola e depois beijava o felizardo escolhido da vez em algum canto da quadra. E depois ia embora como se nada tivesse acontecido.
Ao se
despedirem na porta, mais uma vez daquele jeito que era sempre tão gostoso,
Manu acabou confessando que queria estar mais perto, que queria poder levar
Ricardo na bolsa dela, sabe, igual ao gato Felix, que tem uma bolsa preta onde
tudo cabe dentro? Mas como? Ela já sabia, ele também. Não adiantava falar nada.
Então beijaram-se uma vez mais, como se fossem se engolir, como se o ar fosse
faltar porque não existia ar que interessasse ou servisse além daquele que
estava dentro do beijo deles. Ele saiu, ela entrou, a noite passou e Manu foi
morar no Tibete por tempo indeterminadamente infinito.
domingo, 6 de maio de 2012
Partilhas
Parte de mim sabe exatamente o que fazer. Sabe se abster, se controlar, se conter, preservar. Parte não sabe. Não sabe nada. Há uma parte real, pequena, de aparência mais discreta e sutil, que inspira cuidado e proteção. E uma parte irracional que tem a delicadeza de um elefante, um ego animal, sentimentos contraditórios, assustadores, repreensíveis, repreendidos, presos numa gaiola sem porta, exercício de liberdade dos mais difíceis. Há partes do mundo difíceis de se alcançar. E há partes de mim espalhadas, algumas fora de alcance. Algumas partilhas são piores que partidas.
Agora e talvez amanhã
Há pouco tempo isso não seria importante. Mas já não há mais tanto tempo assim. Não há mais tempo, na verdade. Tempo gasto, desgasto, tempo infame, infitesimal, tempo fracionado que não cura e me quebra. Me dizem que não estou no tempo, que não respeito os tempos e os espaços devidamente. Misturo tudo, um dia depois do outro e todos os outros juntos. Há muito tempo isso era importante, agora já não sei mais. Há muito tempo já foi. O que me importa agora é agora. E amanhã, talvez.
sábado, 5 de maio de 2012
ano novo
envelhecer é perceber a pouca importância da maioria das coisas.
e como aquilo que importa você não pode ter, pois não se possui aquilo que se sente.
e como aquilo que importa você não pode ter, pois não se possui aquilo que se sente.
sexta-feira, 4 de maio de 2012
Quando a noite morre
A lua está
cheia, a noite está quente e nós estamos sós.
Não há data
importante, não há nada importante, não há nada.
Já não sei
se existe cuidado, se ele é suficiente ou qual é o seu valor.
Já não sei
se existe amor, pois amor também acaba.
Mesmo a
noite, que parece infinita, acaba.
E todo
final é triste, mesmo que a lua, cheia desse jeito, só possa brilhar desse jeito
porque existe o sol. E mesmo que eles não se encontrem, só assim pode existir o
dia e a noite, um depois do outro, nunca juntos.
Tem coisas
que são assim. Finais tristes para inícios felizes.
moonlight through the pines
bom é quando o dia e a noite se encontram ainda na luz da noite, no que parece escuridão, mas na verdade é cheio de luz...
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