Caminhei até meus pés doerem muito. E foquei nesta dor,
porque não aguentava mais sentir aquela que me latejava pelas artérias e me
impedia até de respirar.
Caminhei sobre as palavras de fel que ouvi, que falei, que
me cobriram de vergonha e arrependimento e que nunca mais deixarão de existir,
mas não têm mais sentido porque ficaram para trás e este é um lugar para o qual
não voltamos.
Bati a porta quando saí. Acho que foi para ter certeza de
que não a abriria mais. Depois desci pela contramão e me dei conta de que ir
tão veloz pelo sentido contrário não iria adiantar nada. Mas eu fui mesmo
assim, porque este foi o único caminho que me pareceu possível.
A miséria que cresceu dentro de mim e explodiu como lava foi
o que me arrastou e devastou tudo ao redor. A miséria da alma diante do tempo
inexorável marcando o tique taque da bomba relógio. – me diz, como você
consegue ficar nessa frieza impassível depois de ver tanta miséria, mesmo tendo
sido salvo, mesmo tendo sobrevivido ao frio, à fome e à tristeza inexplicável
de ter perdido pedaços?
Não é curioso que toda essa força e poder absurdos que você
enxergou em mim tenham o magnetismo das pedras? – atraem, mas confundem a
bússola e te fazem perder o rumo.
Meu corpo, essa nau à deriva, ia afundar e você me salvou.
Mas me lembrou todos os detalhes sórdidos do colapso e me desafiou a viver sob
este fardo das memórias em migalhas com peso de toneladas – como posso
continuar na superfície com todo esse lastro?
Tirei então as pedras do bolso e parti sem olhar para trás.
Caminhei até meus pés doerem muito, não porque tinha que chegar a algum lugar,
mas porque apenas precisava ir. Precisava muito.
Eu não sei como você se sentiu me vendo partir. Acho que foi
um alívio, na verdade, porque depois de tudo quase ir pelos ares, o silêncio
deve ter sido tão imenso, e tão intenso, que a paz deve ter sido até
perturbadora.
Caminhei sobre o meu silêncio também, tentando não ouvir o
dia na iminência de romper, tentando esquecer tudo e não escutar mais nada além
das batidas do coração sem pace.
Quando vi o céu ficando violeta houve esse instante então,
em que o caminho ficou cheio de formas e dragões e palavras sem sentido –
caminhei tanto que alucinei.
Sobreviver às catástrofes, à arrogância, à ausência, aos
fatos surreais que se desencadeiam de repente, sobreviver àquela miséria é o
que me fez caminhar.
Quando meus pés doeram e eu tive certeza de que não podia
mais seguir, eu andei um pouco mais. Eu precisava muito ir adiante. Eu
precisava encontrar outras palavras, essas que se escondem no movimento e não
na linha de chegada.
A exaustão que tomou conta de mim foi o que me fez acreditar
e não desistir. As palavras de sobrevivência começaram a cair ao meu redor,
como boias salva-vidas – não foi deus quem me salvou, eu me salvei (ouvi sua
voz me dizendo isso e me lembrei dos seus olhos escuros, procurando meu estado
de choque ao discordar da minha resposta) – isso não é divino?
Somos divinos, mas mortais. O destino é infinito, nós não. É
preciso caminhar...
Abracei a vida quando cheguei. Me deitei devagar e meu sono
foi velado. Estar só pode ser o melhor ou o pior a te acontecer. É preciso
sobreviver à verdades óbvias como essas também.
Não te desejo nada além daquela imensidão que inspirou a sua
caminhada. Ter esses encontros brutais e conseguir se levantar e continuar
andando... – é um duro golpe que eu não consiga expressar o quão bonito foi te
ouvir falar dos seus passos e espaços.
Eu queria me desculpar por ter tido que partir com tanta
violência. Eu queria poder te dizer que nada disso é culpa sua – mas como posso
querer te explicar o que eu não posso entender?
Eu tentei compartilhar o que existe de melhor em mim, e
sobreviver a tudo de pior que existe em mim e que você conheceu tão
profundamente sem nem saber porque.
Nossa colisão não sei explicar. Deve ter sido mesmo o
magnetismo das pedras. Naufrágio inevitável, desnorteante. A vida pulsando com
tanta força que transborda, golpeia, deixa escoriações e quase afoga.
Eu queria te dizer muitas outras coisas. Mas eu precisei
partir. Eu sobrevivi mais uma vez. As palavras me resgataram. Eu queria poder
te contar, mas algo me impede – não é orgulho... é que palavra nenhuma
justifica ou absolve todos os pecados que cometemos de uma vez, em tão pouco
tempo.
Sobreviver às vezes parece tão desumano... para continuar
indo adiante às vezes é preciso sair assim, dessa forma desabalada, arrasando
tudo pela frente, feito tempestade.
Como herança, a lembrança daquele arco-íris. Um momento
fugaz da beleza óbvia que tivemos e não pudemos conservar. Todo o resto vou
esquecer. Inclusive você. Só assim é possível. Foi o deus do submundo quem me
contou – para sair daqui, caminhe na direção daquela luz. Tudo o que você
precisa vai te seguir. Mas jamais olhe para trás durante a caminhada. Se você
olhar para trás, vai perder tudo, inclusive o que mais ama. E o que não te
acompanhar, você vai esquecer.