A vida requer cada suspiro.
domingo, 27 de dezembro de 2015
Andando
Ando sem pernas, sem braços, sem membros
Ando aos pedaços, desapegando dos apegos
Ando fazendo apelos aos anjos e deuses
Ando dizendo adeus mais vezes do que imaginei
Ando imaginando coisas, comendo letras,
Dormindo pouco, vendo muitos filmes,
pouca gente, lendo livros aos pedaços.
Ando aos pedaços tentando separar as partes
Ando debaixo de polegares pesados de som
Ando coberta de ondas que surfo ardentes
Ando sem dar ouvidos à razão
Ando dando rasantes
Ando rente ao tempo
Ando em frente
Ando sem parar
Ando sem perder
E quando paro
É só para pensar
No próximo passo.
[11/3/2015]
Ando aos pedaços, desapegando dos apegos
Ando fazendo apelos aos anjos e deuses
Ando dizendo adeus mais vezes do que imaginei
Ando imaginando coisas, comendo letras,
Dormindo pouco, vendo muitos filmes,
pouca gente, lendo livros aos pedaços.
Ando aos pedaços tentando separar as partes
Ando debaixo de polegares pesados de som
Ando coberta de ondas que surfo ardentes
Ando sem dar ouvidos à razão
Ando dando rasantes
Ando rente ao tempo
Ando em frente
Ando sem parar
Ando sem perder
E quando paro
É só para pensar
No próximo passo.
[11/3/2015]
Continue a nadar
Um dia durante um mergulho tive uma crise de pânico.
Tive certeza que ia morrer.
Naquele milésimo de segundo pensei - odeio isso!
Mas sobrevivi e continuei nadando.
Tive certeza que ia morrer.
Naquele milésimo de segundo pensei - odeio isso!
Mas sobrevivi e continuei nadando.
Palavras doentes
Contaminei todos os meus cadernos
Tentando matar a lembrança
Das palavras lutando dentro de mim
Numa guerra estúpida e silenciosa
Desafiando qualquer sentido ou glória
Palavras moribundas, sujas e mudas
Palavras caladas, caídas, doentes
Palavras sem gravidade
Palavras cadentes
Tentando matar a lembrança
Das palavras lutando dentro de mim
Numa guerra estúpida e silenciosa
Desafiando qualquer sentido ou glória
Palavras moribundas, sujas e mudas
Palavras caladas, caídas, doentes
Palavras sem gravidade
Palavras cadentes
Poeminha ordinário
De todos os poeminhas que já escrevi
Este deve ser o mais ordinário
Um momento furtado
Um instante perdido
Deslumbrado
E tentando ser esquecido
Este deve ser o mais ordinário
Um momento furtado
Um instante perdido
Deslumbrado
E tentando ser esquecido
Guerra de nervos
A saudade bateu na boca do meu estômago como se fosse uma faca afiada. Pude sentir o gosto de ferro e ferrugem encharcarem minha língua, escorrerem pela minha barba tingindo tudo de vermelho. Eu vivia assombrado com essas lembranças. Elas chegavam em espasmos, às vezes no meio de uma gargalhada. Minha memória agora era uma granada sem anel.
Vestígio sem sentido
Fazer sentido sem destino
Perder os sentidos sem juízo
Rezar sentindo o coração se abrindo
Tocar a chuva até sentir caindo
Pingos de lágrimas diluindo
O gosto salgado daquela saudade
Que deixamos para trás, sem sal
sem sentido, sem vestígio irreal.
[7/3/2015]
O seu sentido
me deixa
Sem direção
[mas me faz SENTIR
viva
às vezes quase morro
só para me sentir viva
Perder os sentidos sem juízo
Rezar sentindo o coração se abrindo
Tocar a chuva até sentir caindo
Pingos de lágrimas diluindo
O gosto salgado daquela saudade
Que deixamos para trás, sem sal
sem sentido, sem vestígio irreal.
[7/3/2015]
O seu sentido
me deixa
Sem direção
[mas me faz SENTIR
viva
às vezes quase morro
só para me sentir viva
palavras e mais palavras
Ah palavras
Tantas palavras
Palavras demais
Palavras iguais
Confusão de palavras
Que não bastam
Tantas palavras
Palavras demais
Palavras iguais
Confusão de palavras
Que não bastam
Divino
Vou pintar minha boca
E sorrir mais
Contar algumas mentiras
Algumas histórias
Esquecer o que passou
Olhar para frente
E jamais
Jamais
Deixar de me surpreender
Com o presente - que é Divino
E sorrir mais
Contar algumas mentiras
Algumas histórias
Esquecer o que passou
Olhar para frente
E jamais
Jamais
Deixar de me surpreender
Com o presente - que é Divino
olhos impedidos
Vou pintar meus olhos para me proteger
Fechar minha alma para você não ver
A escuridão que causa uma ausência
As inconsequências de crescer sem perceber
De ver o tempo passar, o tempo voar, na verdade
E mesmo assim não esquecer o porquê
De ter os olhos pintados, te impedindo de ver
[E saber que não há mais nada aqui que te pertença.
Fechar minha alma para você não ver
A escuridão que causa uma ausência
As inconsequências de crescer sem perceber
De ver o tempo passar, o tempo voar, na verdade
E mesmo assim não esquecer o porquê
De ter os olhos pintados, te impedindo de ver
[E saber que não há mais nada aqui que te pertença.
aquela carta que nunca mandei
Passado tanto tempo, volto a te escrever.
Tento tirar de mim esses vultos, esse tumulto que sua presença traz. Ainda que eu evite os encontros, não consigo evitar as lembranças. Ainda que eu combata as evidências deixadas por você na minha vida, na minha casa, na minha pele, não consigo combater a febre que me invade em ondas lancinantes de dor e falta, como numa crise de abstinência. Passado tanto tempo, ainda existem esses momentos.
É que talvez eu tenha escrito tantas coisas sem sentido na tentativa desse exorcismo, que já nem acredito mais nas palavras. Encho linhas e linhas de pensamentos delirantes, que viajam a esmo na minha cabeça atordoada, cheia de memórias colocadas num baú atirado às profundezas do mar que não afunda, mas naufraga ali, junto à minha derrota na guerra de pensamentos que eu preferia não ter.
Mas não pense, porém, que te escrevo para me declarar ou pedir alguma coisa, ou nem mesmo a expectativa final de qualquer carta - a leitura. O que eu escrevo aqui com tanto esforço são palavras de raiva. Minha raiva e meu desprezo, que crescem e derramam lava quente dentro de mim. Combato mais uma vez esses sentimentos escrevendo sobre eles. Queria colocar aqui palavras nobres, duras e fortes. Mas já é muita sorte conseguir enxergar que ainda há tempo a se passar. As tardes rosas, douradas de verão, trarão esperança e renascimento.
[fevereiro, 2015]
Tento tirar de mim esses vultos, esse tumulto que sua presença traz. Ainda que eu evite os encontros, não consigo evitar as lembranças. Ainda que eu combata as evidências deixadas por você na minha vida, na minha casa, na minha pele, não consigo combater a febre que me invade em ondas lancinantes de dor e falta, como numa crise de abstinência. Passado tanto tempo, ainda existem esses momentos.
É que talvez eu tenha escrito tantas coisas sem sentido na tentativa desse exorcismo, que já nem acredito mais nas palavras. Encho linhas e linhas de pensamentos delirantes, que viajam a esmo na minha cabeça atordoada, cheia de memórias colocadas num baú atirado às profundezas do mar que não afunda, mas naufraga ali, junto à minha derrota na guerra de pensamentos que eu preferia não ter.
Mas não pense, porém, que te escrevo para me declarar ou pedir alguma coisa, ou nem mesmo a expectativa final de qualquer carta - a leitura. O que eu escrevo aqui com tanto esforço são palavras de raiva. Minha raiva e meu desprezo, que crescem e derramam lava quente dentro de mim. Combato mais uma vez esses sentimentos escrevendo sobre eles. Queria colocar aqui palavras nobres, duras e fortes. Mas já é muita sorte conseguir enxergar que ainda há tempo a se passar. As tardes rosas, douradas de verão, trarão esperança e renascimento.
[fevereiro, 2015]
terça-feira, 10 de novembro de 2015
universo em spray
Eu abri uma caixa de pandora.
Me esqueci que as fadas são tolas, criaturas mágicas, entre a bela e a fera.
Me esqueci da fúria do mundo, das ondas gigantes, das profundidades abissais e alturas impossíveis.
Vi pela cidade toda escafandristas.
Mergulhadores respirando triângulos.
Seres almiscarados, dormindo sob as marquises, irmãos com fome de pão.
E entre eles havia um mergulhador entoando um mantra, na postura grandiosa de Ganesha.
Ele me reverenciava. Me dizia Namastê. Ele me via por inteira, mas eu não podia vê-lo. Seus olhos cor de safira me desafiavam a entender o resto da imagem. O corpo descomunal de um elefante, com uma cabeça nas mãos, cheia de várias trombas. Uma imagem desconstruída, refletida na viseira do mergulhador, que mais parecia um astronauta.
Eu vi, naquela noite, na lagoa, entre os sapos e os pedalinhos, um cisne negro, que carregava entre suas asas, um novo universo, onde eu, você e a lua temos o mesmo peso e podemos dançar uma valsa.
Sua estrela, nesta galáxia, é aquela de cor mais quente, vibrante. E o movimento é o que lhe faz pulsar como um coração. Suas cores então são o caos. Não sei porque submergimos ou escapamos na maré alta, na maresia espessa, na fumaça cheia de detritos cósmicos, enlatados em spray, que desaparecem no ar, como a luz fugaz do outono existente entre nós.
Me esqueci que as fadas são tolas, criaturas mágicas, entre a bela e a fera.
Me esqueci da fúria do mundo, das ondas gigantes, das profundidades abissais e alturas impossíveis.
Vi pela cidade toda escafandristas.
Mergulhadores respirando triângulos.
Seres almiscarados, dormindo sob as marquises, irmãos com fome de pão.
E entre eles havia um mergulhador entoando um mantra, na postura grandiosa de Ganesha.
Ele me reverenciava. Me dizia Namastê. Ele me via por inteira, mas eu não podia vê-lo. Seus olhos cor de safira me desafiavam a entender o resto da imagem. O corpo descomunal de um elefante, com uma cabeça nas mãos, cheia de várias trombas. Uma imagem desconstruída, refletida na viseira do mergulhador, que mais parecia um astronauta.
Eu vi, naquela noite, na lagoa, entre os sapos e os pedalinhos, um cisne negro, que carregava entre suas asas, um novo universo, onde eu, você e a lua temos o mesmo peso e podemos dançar uma valsa.
Sua estrela, nesta galáxia, é aquela de cor mais quente, vibrante. E o movimento é o que lhe faz pulsar como um coração. Suas cores então são o caos. Não sei porque submergimos ou escapamos na maré alta, na maresia espessa, na fumaça cheia de detritos cósmicos, enlatados em spray, que desaparecem no ar, como a luz fugaz do outono existente entre nós.
velhos fragmentos novos
Você matou o que eu sentia.
Você matou o meu amor.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Ele chega aqui e pergunta:
- Você nunca quebra um copo?
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
As pessoas sofrem dores tão profundas.
Olha eu aqui, tentando me recuperar das minhas.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Mas, na real, ninguém presta.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Me lembrei agora de uma noite, há muito tempo atrás, em Paris,
quando corremos na chuva.
.-.-.-
Aquele dia teve um cheiro, do qual posso me lembrar.
Como quando entro no metrô de Londres e sinto aquele cheiro morno e estranho que vem de dentro daquela terra. É diferente. É um cheiro que só existe ali.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
If I could
You know I would
If I could, I would
Let it go
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
(abril, 2015) ("Paris, Londres" 10/11/15, data estranha)
segunda-feira, 13 de abril de 2015
Página em branco
Voltamos ao básico, às páginas em branco.
Meus olhos se encheram d’água sem razão, por causa de uma canção ouvida
sem querer.
A beleza do copo vazio está na tristeza de sua ausência.
Sua ausência, sua ausência, sua ausência.
Repetição que não faz sentido.
Repetição que não faz sentido.
Repetição que não faz sentido.
Repetição que não faz sentido.
Porque nada faz sentido.
Nada faz sentido.
Tudo está vazio.
Vazio.
Vazio.
Vazio.
Vazio.
Eco.
Oco.
.
.
.
.
Triste e limpo, como uma página em branco.
domingo, 5 de abril de 2015
Inferno pascoal
Havia muito tempo que Luísa tinha perdoado o pai. Mas entre
perdoar e esquecer às vezes há uma distância maior do que a força de vontade.
Desde o casamento da filha Hernane se comportava de maneira
exemplar. Resolveu fazer jus à promessa de não beber durante o casamento, e
portanto não causar nenhum transtorno, e desde então não bebeu mais.
Demorou um tempo até Luísa recuperar a confiança perdida.
Depois de tantos anos tendo aniversários, natais e outras datas especiais
arruinadas pelos destemperos alcóolicos do pai, Luísa havia jurado nunca mais
convidá-lo para evento nenhum. E quando o casamento foi marcado, ela se sentou
com ele e falou com muita firmeza, apesar das lágrimas nos olhos: pai, eu sei
que o tempo passou e hoje você é um homem melhor, então por favor não beba nem
crie encrenca no meu casamento. Vai ser o dia mais importante da minha vida e
quero você lá. Mas se você beber e puser tudo a perder, vai ser o dia mais
triste da minha vida. E o último que você vai me ver, pois te juro que nunca
vou te perdoar se você trair esse voto de confiança que me custa tanto te dar.
Aquelas palavras cortaram Hernane por dentro como navalha.
Sua vontade inicial, ouvindo aquelas barbaridades da boca de Luísa, foi a de
chutar a mesa, mandar aquela ingrata calar a boca, gritar bem alto que ela não
sabia de nada, não sabia do inferno que era a vida dele naquela época, não
sabia porra nenhuma da vida. Ele apertou a mão bem forte, até sentir que ia
explodir. Engoliu o orgulho junto com a raiva, segurando dentro da mão vazia
todo o descontrole costumeiro. Ele evitava beber quando ia se encontrar com
Luísa. Sabia que ela não gostava. E ela tinha nariz de tuberculoso, era capaz
de detectar o cheiro de álcool de longe, mesmo se ele escovasse os dentes a danada
sentia. E quando ela sentia que ele tinha bebido, ia imediatamente embora sem
nem dar explicação. Aliás, ela até dava, mas não se demorava pois sabia que o
pai detestava lição de moral. Na primeira vez disse apenas: você sabe que não
te amo quando você bebe. E não amo mesmo, porque sei que você não é você quando
tem álcool na cabeça. E esse você aí, bêbado, eu não quero nunca perto de mim.
Das outras vezes ela disse apenas: você bebeu. Muitas vezes,
porém, ela nem dizia nada. Só levantava e ia embora. E Hernane sentia depois
tanta vergonha e culpa que não tinha coragem de procurar a filha, ficava
esperando que ela ligasse e largava tudo quando isso acontecia, mas passavam-se
muitos meses até que Luísa tentasse de novo.
Hernane demorou até conseguir ficar sem beber. E sabia que
esse mérito era da filha, já que os únicos dias em que não bebia eram aqueles
em que ia se encontrar com ela. Por isso não reagiu quando ouviu a ameaça de
Luísa. Controlou como pode aquele monstro dentro dele enquanto estava com ela e
só mais tarde, depois de muito bêbado, é que teve a epifania: Luísa era a única
pessoa que nunca havia desistido dele. Mesmo com toda a distância, as regras, a
austeridade que ela mantinha nos encontros com o pai, mesmo que os encontros
fossem tão espaçados, Luísa nunca deixou de respondê-lo e nunca cortou
relações. Toda vez que brigavam ou que ela ia embora por achar que Hernane
tinha bebido, ela deixava passar um tempo, depois ligava e marcava um novo encontro.
Um almoço, um café… nunca deixava passar mais que um par de meses. E sempre
chegava alegre, como se último encontro ruim com o pai não tivesse existido.
Hernane era tão grato por isso…
No dia seguinte ao pedido de Luísa sobre o casamento, depois
do porre homérico que havia tomado para dissolver a dor das palavras duras da
filha, com a cabeça arrebentando de ressaca foi que ele lembrou da epifania.
Sentiu de novo aquela reconfortante gratidão e prometeu a si mesmo: não vou
beber no casamento. E vou deixar de ser um bêbado. Estou cansado disso.
Hernane enxugou catorze quilos em seis meses. Deixou Luísa
com o queixo caído e com inveja. Ligou pro pai aos prantos uma semana antes do
casório para dizer que não cabia no vestido. Ele riu e perguntou: minha filha,
você ama pra valer esse cara? Claro pai! ela respondeu imediatamente. Então
minha filha, arrume um vestido que te sirva porque você é linda em qualquer
tamanho e esse cara aí só não tem mais sorte do que eu, já que você me ama
mais, não é? Deram muita risada e Luísa se deu conta de que o pai que ela amava
estava ali e aquele bêbado que ela odiava havia sumido. Depois de muitos anos,
entre as lágrimas pelo vestido justo e as risadas pelo momento que dividia com
Hernane ao telefone, Luísa deixou-se levar pela emoção e disse “te amo pai,
obrigada por ser um homem melhor!”. Hernane chorou como criança quando desligou
o telefone. Teve vontade de beber. Nunca soube como conseguiu se controlar…
Luísa e Rafael se casaram numa tarde morna de abril. Pouco a
pouco Hernane foi sendo convidado para alguns eventos na nova casa do casal.
Dia dos pais, Natal, até um Reveilón, certa vez. Hernane se orgulhava de manter
o compromisso com a filha. E ela se orgulhava dele, mais magro, mais bonito,
mais responsável.
Para os almoços de Páscoa, porém, ele nunca era convidado.
Quando se deu conta disso, perguntou a Luísa se ela tinha algum problema com a
data. Não que ele desse muito valor à Páscoa. Hernane era ateu, não era grande
fã de datas comemorativas, até porque não se lembrava da maioria delas, já que
datas festivas são sempre cheias de brindes e é claro que ele bebia mais do que
de costume em todas elas. Luísa levantou os olhos e falou devagar: pai, sou
traumatizada com a Páscoa por sua causa. Jura que você não se lembra do que
aconteceu na Páscoa quando eu tinha 5 anos? Hernane não se lembrava.
Luísa contou que naquele ano, havia ganhado um coelho de
presente de um vizinho. Deu ao coelho o nome de Tico. Construiu com a mãe uma
casinha de caixote, fizeram um gramadinho com cerca e Tico vivia lá, todo
faceiro. Luísa era doida pelo bichinho. Naquela semana santa Hernane estava
sumido, como acontecia de vez em quando na época. Ficou uns 4 dias sem dar
notícias e no domingo de Páscoa apareceu bêbado, sujo e machucado. Havia se
metido numa briga. Estava com a camisa branca toda suja de sangue. Luísa ficou
em pânico quando viu o pai, mas sua mãe ficou furiosa, expulsou Hernane da casa
sob vassouradas, gritava a plenos pulmões que ele era um mostro, que estava
destruindo a vida deles e que não iria mais permitir que ele fizesse isso.
Hernane esbravejou como sempre, ameaçou bater na mulher, quebrar a casa toda,
mas estava bêbado e ficou tão desnorteado com as vassouradas na cabeça que não
conseguia cumprir as ameaças de violência. Quando se viu para fora de casa, no
jardim, avistou o coelho. Foi até ele, derrubou a cerca, caiu sobre a casa de
caixote e destruiu o viveiro. Pegou o bicho pelas orelhas e começou a gritar
absurdos. Luísa, que via tudo pela janela, começou a gritar que o pai ia matar
o Tico. Foi um deus nos acuda dos vizinhos ao redor de Hernane até que ele largasse
o coelho que, por sorte, sobreviveu.
Passaram-se ainda mais alguns anos de episódios bizarros
como este até que a mãe de Luísa esgotasse sua paciência e pusesse Hernane para
fora de casa definitivamente. Desde então nunca mais se falaram. Luísa nunca
deixou de falar com o pai, mas nunca esqueceu o episódio da Páscoa. Por
precaução mudou a casa de Tico para uma gaiola dentro do quarto cor de rosa.
Hernane foi se lembrando de tudo lentamente enquanto ela
contava. Pediu mais uma vez desculpas a Luísa. Abraçou a filha com força quando
ela terminou de contar a história e falou baixinho no ouvido dela: minha filha,
aquele não era eu. Você sabe que nunca faria uma maldade dessas em sã
consciência. E te prometo que nunca mais uma atrocidade dessas vai acontecer.
Luísa sorriu para o pai, engoliu o choro e respondeu que tudo bem, aquilo era
passado. Hernane sentiu orgulho da firmeza da filha.
Naquele dia, mais tarde, enquanto caminhava pela Avenida
Angélica voltando para casa, Hernane acendeu um cigarro e ficou pensando na
história, tentando lembrar do que, de fato, tinha acontecido. Fazia tanto
tempo… mas Hernane se lembrava. Lembrava dos gritos da mulher e da filha, dos
olhos arregalados e vermelhos que o coelho tinha. Lembrava da sensação de segurar
o bicho pelas orelhas, tão branquinhas e macias. Lembrava de chacoalhar o
coelho como se fosse um pedaço de pano. No auge do delírio alcólico, Hernane se
lembrava de que queria mesmo matar o coelho. Olhava para sua camisa cheia de
sangue, olhava para os olhos vermelhos do coelho e ficava imaginando como seria
arrancar aquelas orelhas… claro, ia arrancar as orelhas do Tico e fazer uma
tiara de coelho para a Lulu. Afinal, era Páscoa! Que sorte teve Hernane e o
coelho, pensava, por terem aparecidos os vizinhos e impedido a tragédia.
Quando entrou em casa e fechou a porta, Hernane sentiu uma
solidão tão grande. Se sentiu velho e cansado. Pensou de novo no coelho. Teve
de novo vontade de lhe arrancar as orelhas. Coelho estúpido! Sentiu de novo
aquela vontade pontuda. Queria beber. Quem inventou essa história de Páscoa e
coelho era mesmo um filho da puta…
Hernane bebeu um copo d’água, escovou os dentes, lavou o
rosto, colocou o pijama e foi dormir. Demorou um pouco, mas dormiu. Sonhou com
coelho a noite toda. Acordou suado, várias vezes, com a sensação das orelhas do
coelho na mão. Naquela noite ele rezou. Ele, que era ateu, rezou. Queria
agradecer a deus ou ao universo ou a qualquer coisa boa que ainda existia
dentro dele por não ter matado aquele coelho. Se Páscoa era renascimento,
naquele dia o coelho renasceu e Hernane sobreviveu à sua própria maldição. Não
fosse por isso, talvez nunca mais houvesse Luísa. Não fosse por isso, talvez
nunca mais houvesse nada.
Assinar:
Postagens (Atom)