quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sono roubado

O cansaço, crônico, não lhe permitia relaxar. Não tinha sono. Estava exausto e não podia dormir. Não procurava dormir tampouco. Não fechava as cortinas, não deitava na cama na hora provável, não sentia-se confortável com os travesseiros. Dormia quando o corpo pifava. Sentia-se um cão de guarda. Exceto pelo fato de que não sentia-se guardando nada.

Partida

Está insuportável - ela lhe disse sem que ele pudesse esperar, sem claquete, sem chance para argumentação. Não há saída, me desculpe - falou com a voz baixa, quase sem dizer, e ainda assim pareceu-lhe que estava gritando, que todos podiam ouvir. Me desculpe, tenho que ir... - ela disse e se foi. Bateu a porta de leve e ele ficou ali, imóvel, com um copo na mão, o peito vazio e as coisas todas parecendo grandes demais para sua existência pequena.

Olhar de menina

Ela olhava e via além. Via a beleza que os outros deveriam (ou poderiam) ver também. Mas eles não entendiam como ela, não sentiam da mesma forma aquele músculo ali, sob a costela, dolorido, latejante, incansavelmente pulsante diante daquela beleza que parecia tão comum, tão discreta que quase não era notável. Seu olhar transcendia a casca fina das coisas, mas sua casca de menina também era fina e frágil. E pouca gente podia entender aquele seu olhar.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Reflexos

Olhou-se no espelho como quem encara um velho amigo. Olhou-se com desconfiança, como se o amigo lhe traísse, como se aquele no espelho fosse alguém que não conhecia mais, capaz de atrocidades ou simples mesquinharias que não podia entender. Olhou-se no espelho uma vez mais para tentar se encontrar. Olhou-se novamente e concluiu que nunca antes sentiu-se tão perdido.

Broken hearts apart

Does he always go back to her? Does he flies throughout the world, see so many, know so much, but in the end, end up running into her arms? Will she be always waiting? Always wanting and wishing him back? Will she resist the world, the diversity, the temptations and variations? Will she resist the time without him and sometimes without hope? Does she know how much he misses her and try so hard to patch his heart with meaningless emotions? Does he know she does the same? Will they ever know that this is what keep them together? If I could write this story, I would cut the crap and discard all the tears and the shouts. I'd maybe keep some comes and goes, cause life must have its high and low tides, but I'd rather simplify and make them just good with their broken hearts apart or together - and then they would be together even when apart.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Apenas espaços

Existem esses espaços. Esses que parecem vagos demais, largos demais, longos demais para suportar. Existem esses espaços e a medida deles não têm escala. Seriam espaços vazios, lacunas à esmo, não fossem cheios de dúvidas, sonhos talvez, pedacinhos de esperanças que nem se sabe se possíveis, passíveis de alguma ação. São como a pausa entre uma nota e outra, que você não nota, mas está ali e sem ela não há música. Apenas espaços.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sabor de vento

Sou sensível ao vento. Ao mesmo tempo que gosto, me incomodo. O vento me emociona, mas me questiona a resistência também. Há o vento que vem do mar. Há o vento que vem do mato. E há o que vem da velocidade. O vento me é como a pimenta e a saudade – me tempera ou me envenena. Um amante indócil, cujo gosto do beijo, violento ou doce, é sempre surpreendente.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Excessos

De repente ficou vazia. Nenhuma vontade, nenhuma saudade, nada. De repente parou de sentir as coisas que sentia. Parou de achar ou duvidar. Mas de algum modo não foi um alívio. De repente não sobrou nada! E nada era muito pior que o excesso anterior.

História torta

Acordou incomodado, sem saber exatamente se por causa do som alto (um pouco impróprio para aquela hora da manhã – não que ele se importasse com isso) ou se por causa do cheiro levemente doce que invadia a casa, amarelada pela luz gentil da manhã, fresca com as janelas já todas abertas e com as cortinas balançando com o vento sossegado da primavera.

Acordou incomodado, mas sorriu ao perceber, sem precisar pensar ou ver, o que estava contecendo: era domingo, ela estava sentada no chão da sala vestindo aquela camiseta verde dos Stones, a torta de blueberry morna sobre a mesa baixinha no centro da sala, o jornal espalhado pelo chão, Warren Haynes e sua voz pigarrenta ecoando nas caixas de som.

Ele sorriu. Deu-se conta de que era mais tarde do que costumava acordar. Mas era domingo. Ela estava na sala comendo sua torta preferida com as mãos, ignorando a colher que sempre colocava no prato e depois se esquecia de usar, ignorando a ordem das coisas. Ele não precisava ver a cena para saber que era assim que ela acontecia.

Loud

You don’t feel how I feel. How could you? I don’t see what you see – how could I? But we hear it all. We hear it loud. We hear more than we breathe. We don’t breathe properly. And we don’t know how to say, how to translate all the sensibility we naturally have to look each other and say with no words all the funny, the sad, the little or the great things. We’re good in listening the world loud. But we’re no good in hearing each other words. Whispered or shouted. So let’s hush. Let’s chill. Let’s enjoy the ride, the sounds of the wind, the endless music of life. Let’s hear it loud and say no words for now. And maybe then we’ll be safe.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pele verbal

Disse-lhe tudo, com todas as letras que sabia. Disse palavra por palavra o que conseguiu dizer, o que não engasgou, o que subiu-lhe queimando, mas veio verdadeiro e pronto para ser dito, cuspido, apresentado cara-a-cara a quem lhe causava toda aquela dor. Não adiantava. Doía nela. E a dor que sentia, não era curada com palavras. Curava-se só. Com o tempo talvez. Com o tempo que já não tinham mais. Calou-se, portanto.

Não sou

Não sou quem você pensou
Não me desculpo
Não me culpo
Não sou quem você precisa
Não precisa
Você não precisa
Não é fácil como as coisas são
Como as coisas estão
Como podemos ser
Não é fácil ter
O que temos
E ao mesmo tempo não podermos
Expô-las sem expormo-nos
Sem escomungarmo-nos
Porque o que somos
É vil

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Câmera lenta

Viu a cena acontecendo em câmera lenta. A rajada de vento frio entrou feroz pela janela, espalhou os papéis e fez o vaso delicado espatifar-se sobre a mesa de mármore, atirando com violência exagerada as angélicas pequeninas ao chão, misturadas com drama aos cacos de vidro molhados e disformes, um caos que fez seu coração disparar. Que bom era sentir o coração disparando outra vez. Mesmo em câmera lenta.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Amor que vive

Eu queria sentir por você uma coisa calma. Eu queria construir tudo com tempo e delicadeza. Queria que fosse tudo devagar, para absorver aos poucos, para aprender por etapas, para que os planos chegassem aos pouquinhos e se realizassem na velocidade média do relógio - sem ansiedades, atropelos, desesperos, noites mal dormidas. Ou interrompidas. Queria que fosse sem dor, sem decepções. Queria emoções suaves, verdadeiras, mas estáveis.

Meu amor, idealizo assim: um passo de cada vez; capítulos bem escritos, palavras bem medidas, melodias simples e poderosas.

Mas meu amor, realmente, não pode ser assim. Não sei ser devagar. Como devagar, bebo devagar e há muitas coisas que gosto e consigo fazer devagar. Mas amar, não. Amo depressa. Amo com a pressa de quem tem muita sede ou muita fome. Quero virar o copo, quero comer o prato inteiro de uma vez. E quero mais. E mais. E mais. Quero dormir e acordar amando. Quero perdão todos os dias. Quero tesão todos os dias. Quero o frio na barriga o tempo inteiro. Não importa que isso seja difícil, impossível até. Quero assim. Não quero fim. Quero mais. Quero inteiro. Quero tudo. Quero que me queiras, que não viva sem mim, que se importe, que me corteje, que cuide, que me conte histórias, que leia para mim, que me pegue no colo, que me ponha para dormir. Que me ame depressa também. Que não me sufoque, mas que me beije até me tirar o ar. Quero compartilhar seu ar. Quero que você me respire. Que me inspire. Que eu te inspire. E que você me veja como eu sou.

Eu queria te amar com calma e tempo, de maneira adulta e coerente. Mas não posso. Meu amor é doente, urgente, não pode ser contido, disfarçado, reprimido. Meu amor é selvagem e nasceu para correr até cansar. Não posso domesticá-lo nem eternizá-lo. Meu amor nasceu livre. Ele é complexo, raro, feroz. Há que se saber lidar com ele. Não que ele seja difícil, mas como tudo o que é imprevisível e bravo, há que se saber lidar; há que se saber que não há como domar, querer que ele seja como queremos que ele seja. Meu amor é o que é, na hora em que quer, na velocidade que consegue ser. E confesso que até queria que ele pudesse ser diferente, que eu pudesse moldá-lo ao ideal e ao conforto do que costuma ser a medida dos amores por aí, mas admiro e aceito como ele o é. Meu amor não nasceu para esperar; nasceu para amar de maneira ilícita, explícita. De outra forma não ama, sofre. De outra forma não vive, morre.

Cura

Sentiu-se ofendido com o que ela dizia. Sentiu-se ferido com sua dureza impiedosamente despejada na sua frente, de forma escancarada para quem quisesse ver. Sentiu-se exposto e diminuído. Sentiu-se ridículo. Lembrou-se do quanto somos ridículos ao amarmos de maneira incondicional mesmo aqueles que têm uma capacidade infinita de nos ferir com apenas uma palavra de desamor. Sentiu-se desarmado, encerrado. Mas disposto então a recomeçar. A cura às vezes é longa e o perdão um remédio amargo que temos que tomar com esforço e esperar com fé até que a febre baixe e possamos sorrir novamente.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Melhor

Não há melhor. Não há igual. Não há porquê, nem portanto. Não é porque quero ou porque posso ou porque acontece de ser assim. Acontece e pronto. E só por isso vou te dizer mais uma vez: não é por isso que te amo. Não é. E eu, na tentativa de sempre explicar tudo, me esqueço. Mas não me esqueço que não é por isso. Te amo só porque te amo. Te amo porque isso faz de mim alguém melhor. E só.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Simples ou não

Não me sobrou nada para acreditar. Não me sobrou dúvida para contestar, nem contentar o que tentava equecer; o que eu disfarçava ser menor, o que eu supunha distante, disforme, incerto e improvável. Mas não. Não complique: é tudo tão simples. Não complique - nunca vai ser simples. Têm coisas que são apenas assim. Simplesmente complexas.

sábado, 2 de outubro de 2010

Invasões bárbaras

Tens permissão. Não precisa bater, a porta está aberta. Estamos prontos para a invasão. E ao mesmo tempo não estaremos prontos nunca. É como a chuva que cai com mais força do que supúnhamos: vira o guarda-chuva ao contrário, molha mais do que devia, incomoda. Mas é bom. Traz ventos novos, cheiros novos, inicia outros ciclos. Então deixemo-nos invadir de forma bárbara. Há brutalidade e delicadeza em tudo. Temos apenas que permiti-las.