sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pé de pedra

Há dias sentia os pés gelados. As noites andavam mesmo frias, mas os dias ainda estavam lindos e quentes, bem outonais e gentis. Era possível até suar! Mas seus pés... eram como pés de pedra. Aquele tipo que a gente encontra na praia às vezes, no fim da tarde, na maré baixa. Pedrinhas geladas pelo mar. Seus pés eram duas pedrinhas marinhas.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Verso inverso

Escrevo buscando um verso. Escrevo pensando no inverso. Escrevo no verso das coisas. Nos espacinhos do rodapé do jornal. Escrevo à mão. Escrevo para sentir. Escrevo para ver nascer palavras como se fossem estrelinhas. Aquelas apressadinhas que brilham assim que o sol vai embora descansar. Minhas palavras são mimadas, suadas, exigidas. São riscadas se não servem. Sou dura com as palavras, mas sensível a elas. Palavras formam os versos que são o inverso do que somos: coerentes, valentes, inteiros, precisos. Versos sem rima, sem métrica, sem melodia. Versos que morrem assim que lidos. Assim que nascem. Versos inversos.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Aqui

Incrível como num espaço sufocantemente pequeno como esse seja possível dizer com tanta clareza que você ainda vive aqui, dentro de mim.

Amores não ditos

Ele a queria. Ela sabia. Ela o queria. E talvez ele não soubesse o quanto. Ela não conseguia dizer. E sofria. Não sabia o que ele podia pensar, o que podia fazer se não soubesse que ela realmente o queria. Mas ela não sabia o que fazer. Como fazê-lo ver o que ela não podia dizer. Covarde ela se sentia. E via ali com tristeza a morte anunciada daquele amor, sufocado no que ninguém ousava dizer, condenado a morrer silencioso, numa pausa mantida, palavra suprimida, que não ousava se deixar ouvir.

terça-feira, 27 de abril de 2010

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À deriva

Essa vida que navego
Anda meio à deriva
Quando não há vento não anda
E, quando há, também não
Porque não sabe pra onde ir

GUERRA

Brigo com o sono mas gosto quando ele me derrota, sabota meus reflexos, bagunça meus sentidos. E quando ele me reduz à gata borralheira eu o mando às favas e volto pra casa descalça e à pé. Resisto mas ele persiste e eu me entrego. E quando me entrego é pra valer. Ele sabe o que fazer. Me pega pelos cabelos mas me trata como princesa. Porque sabe: dentro de toda gata borralheira mora também a cinderela.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Contato

Olhou-se no espelho e surpreendeu-se não com aquilo que havia mudado, mas com o que continuava absolutamente igual. E que mil anos poderiam ter passado e continuaria igual. Havia algo de assustador em perceber isso. Principalmente porque via ali um defeito. E ele dizia muito mais sobre a pessoa que era do que todas as qualidades que fazia questão de alardear todos os dias.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Há noites

A noite chegou sorrateira, trazendo com ela uma sensação inesperada, de cansaço e sono, como se fosse madrugada. Mas o dia novo ainda está longe. Ainda não é hora. Vamos então comer a noite, cravando os dentes nela como se fosse uma fruta resistente. E torcer para seu gosto não estar amarrando como amarra a fruta colhida antes de madurar. Vamos esperar durar. Porque há coisas que duram muitas noites. E há outras que duram uma madrugada apenas, até pouco antes do dia amanhecer.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Regras

Inventaram de jogar. Estavam ali, naquele balcão, ele dois bancos depois dela, bebendo gin, olhando suas pernas cruzadas e nervosas, esperando o suco de tomate – ou seria um bloody mary? Quando seus olhos cruzaram os dela, ela estava sorrindo para ele. Um bom sinal, ele achou. Depois descobriu que ela, na verdade, ria da cara dele, de escárnio pelo olhar descarado dele engolindo as pernas dela. De qualquer forma, manteve o sorriso. E ele estava encantado com aquele sorriso gigante. Então propôs o jogo. Perguntas e respostas à queima-roupa. Podiam mentir, se quisessem. O importante era responder rápido. Ele achou que seria divertido. Ela achou que ele não falava sério, mas quando percebeu que falava, sorriu de maneira ainda mais estelar. E começou, sem hesitar:

- Gosta só de homens, ou de mulheres também?

- Só de mulheres.

Esperto, ela pensou.

- E você, gosta de homens e mulheres?

- É, acho que o tesão e o amor independem de sexo.

Esperta. Quer dizer... será que isso foi um sim?, ele pensou, confuso, mas sem vacilar na continuação do jogo.

- Você vai com um cara pra cama logo na primeira noite?

- Raramente. Ele tem que me conquistar primeiro e uma noite costuma ser pouco para isso. Qual é sua cor favorita? – ela disparou sem dar-lhe tempo de analisar melhor a última resposta dela.

- ... sei lá... azul, eu acho. E... qual é a sua? – ele perguntou, sentindo-se idiota de não ter conseguido pensar em nada decente (ou indecente) para perguntar.

- Vermelho. Se você fosse um animal, qual seria?

Ele pensou por um segundo e entendeu que ela estava virando o jogo.

- Um leão. E você, qual seria? – ele perguntou, tentando recuperar o raciocínio enquanto ela respondia.

- Um elefante – ela respondeu vendo os olhos dele brilharem, enquanto percebia o que ela tinha acabado de fazer. – Você é casado ou tem um compromisso sério e monogâmico com alguém?

- Não – ele respondeu sem titubear.

Bom sinal, parece verdade, ela pensou ainda não muito convencida.

- Quantos anos você tem?

- Não vai querer saber se eu sou casada?

- Ei! Está na minha vez de perguntar! Quantos anos você tem? – ele falou mais alto, mas sem perder a graciosidade (que ela na verdade achava excessiva), para não intimidá-la.

- 32 – ela respondeu sem medo. – Você não vai querer saber se eu sou comprometida?

- Não – ele respondeu tentando um ar misterioso. – Você sairia comigo se soubesse que sou comprometido?

- Se você me interessasse, sairia. – ela respondeu de bate-pronto.

Que vaca, ele pensou, percebendo mais uma vez ela roubando no jogo.

- Por que?

- Por que o quê? – ele perguntou, sem entender a pergunta dela.

- Por que você não quer saber se eu sou comprometida?

- Ahhh... – ele enrolou um pouco para tentar algo inteligente – ... porque se você se interessar por mim não quero que isso seja um empecilho.

É, ele não é bobo, ela pensou, enquanto esperava pela pergunta dele.

- Por que é importante pra você que eu saiba se você é ou não comprometida?

- Não é importante para mim. Sou apenas excessivamente curiosa.

Ele já não conseguia mais ler suas jogadas...

- Você veio falar comigo só porque me achou gostosa?

- Não. Quer dizer, eu te achei gostosa, claro, mas achei você uma mulher interessante. E você, me achou interessante logo de cara? – ele respondeu com uma sinceridade estranha, da qual ele mesmo duvidava.

- Achei você mais descarado e engraçado do que interessante. – ela respondeu com uma sinceridade muito mais convincente do que a dele.

- Ei, você não respondeu minha pergunta!

- Como não?

- Você me achou interessante? – ele insistiu, sentindo-se um pouco embaraçado pela pergunta ter soado tão vaidosa.

- Achei. Você se acha interessante? – ela perguntou, vendo-o completamente tomado por uma timidez quase infantil.

- Hmmm, sim. Me acho, sim – respondeu novamente embaraçado pela resposta vaidosa. Então tentou acelerar as coisas – Qual seria sua reação se eu lhe desse agora um beijo na boca?

- Eu lhe daria uma bofetada. Você acha que vale o risco? – ela perguntou rápido demais, quase sem pensar, o que lhe causou certo arrependimento.

- Acho. Posso me arriscar?

- Não.

- Por que não?

- Agora é minha vez de perguntar. Quantos anos você tem?

- 36. Por que?

- Porque sou curiosa.

Ele estava perdido. Ficou sem saber se devia beijá-la ou continuar perguntando. Ela notou. E então deu-lhe um xeque-mate.

- Se você disser corretamente a idade que eu tenho, eu deixo você se arriscar com o beijo e a bofetada. Mas, se você errar, eu vou embora e você não terá o direito de reclamar nada.

- Nossa, você é cruel! Como eu posso adivinhar com exatidão a sua idade?

- Você não precisa adivinhar. Eu já lhe disse a minha idade. Você só precisa se lembrar.

- Você não disse!

- Eu disse! Mas ok. Você deve lembrar então minha cor favorita.

Ele ficou mudo. Era verdade, ela havia lhe dito a idade e a cor...

- Eu não me lembro, me desculpe...

- Não posso desculpar.

- Por que não?

- Regras do jogo. Eu disse que iria embora se você não acertasse, lembra? Você concordou.

- Eu não concordei!

- Mas você jogou. Se não concordava, não devia ter jogado.

- Eu me sinto enganado por você...

- Bom, ninguém disse que blefar era proibido, disse?

Ele estava frustrado, zonzo com o tanto que a garota era espirituosa.

- Bom, foi um prazer jogar com você.

- Espera, não vá!

- Tenho que ir. Regras do jogo.

Ela então levantou-se e foi embora. E ele, mais uma vez não entendendo o blefe, deixou.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Homem de ferro

Estava estagnado. Consternado sem saber, talvez. Conformado com as ausências, o silêncio, a falta de gosto dos alimentos. Era um hipócrita narcisita. Curtia a própria hipocrisia. Buscava nela o gosto das coisas que lhe faltavam. O sabor com notas aveludadas que tinha um beijo esquecido em seu passado. Mas isso agora tinha um gosto amanhecido. E ele limitava-se então a mastigar a massa borrachuda que lhe davam, fingindo não importar-se com ela, fingindo que aquilo era suficiente para alimentar sua alma pobre e conservar sua falta de forças para querer outra coisa.

Em alta velocidade

Ele olhou, ela olhou de volta. Num segundo sabiam. Trocaram telefones, depois mensagens, em seguida beijos e carícias intensas. Foram logo direto ao ponto, direto às ansiedades um do outro. Foi bom, mas foi rápido. E ele ficou na dúvida quando ela foi embora rápido demais. Já não sabia se queria mais porque simplesmente queria ou apenas porque ela não queria mais.

domingo, 18 de abril de 2010

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Inofensivo

Espalmou a mão na parede com uma força que chegou a doer. Viu o sangue na parede assim que relaxou. Que absurdo tanta fúria, tanto ódio, tanto rancor, ressentimento, cólera, quanta falta de bondade no coração massacrar de maneira tão brutal uma criatura tão pequena e inofensiva.

Apenas queira

Desisto. Insisto em não saber. Não crer, não torcer pelo que não sei. Só sei que é demais. Mais que posso. Mais que quero. Mais que espero poder aguentar. Então não espere. Não espere que eu vá devagar. Não eu espere que eu vá mudar. Não me espere.

Falta de fé

Deixo de lado tudo o que não posso encarar. Atropelo os fatos. Falto aos compromissos. Não quero nada nem ninguém. Não quero que me questionem porquê ou portanto. Não quero, por enquanto, sentido. Não quero o destino mentido. Não quero o futuro sortido. Não quero você se não for para ser meu. Não creio em nada, sou ateu. Não creio em em deus, então, adeus.

Procurando

Ele a olhava e via através dela. Seu rosto, seus olhos, sua boca, seus cabelos... nada era parede que impedisse seu olhar que vasculhava o que havia mudado ali. Tudo parecia igual, mas havia algo diferente. E ele não sabia explicar. Quando as transformações acontecem assim, lentas como a passagem das estações, é difícil explicar o que mudou, embora seja tão fácil notar.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Não posso, não quero

Não cruze a linha que nos separa. Não ache que me alcança só porque pode. Não me olhe dentro dos olhos se não for para entrar na minha alma e me mostrar também a sua. Não me tente se não pode comigo. Te prefiro longe. Melhor do que muito perto se não alcanço tocar.

Fome

Tenho fome. Fome de você. Fome de te ver. De te ter. De te ouvir. De sumir em seu abraço. De me perder em seus braços. Mas agora vou apenas comer um macarrão.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Laís

Laís me diz que falo de coisas. Ela não sabe bem. Talvez eu apenas fale demais. Talvez eu apenas diga coisas que ela mesma gostaria de dizer, mas, por algum motivo, não diz. Não sei. Isso é o q diz Laís.

Let me sleep all night in your soul kitchen

Acordou com o cheiro insistente do café, bagunçado com o cheiro de torradas, que ela já podia imaginar exageradamente cobertas com manteiga salgada. Acordou sem saber direito onde estava. Acordou no meio do sonho e não sabia mais se estava acordada ou dormindo. Se a pessoa na cozinha realmente existia.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Cinderela

Adoro essa briga com o sono. Adoro quando ele vai me derrotando assim, aos pouquinhos, seduzindo meus sentidos, deixando lentos meus reflexos, confundindo meu raciocínio entregue, entregando-me aos sentidos, deixando tudo sem sentido. Adoro quando ele me rende e sabota minha memória recente. Adoro quando ele me reduz à gata borralheira e eu o mando às favas e volto pra casa descalça e à pé. Não preciso de carruagem. Não preciso de cama. Posso dormir no sofá. Brigo, resisto até onde posso, mas ele persiste e eu me entrego. E quando me entrego é pra valer. Me deixo ser pega pelos cabelos, me deixo ser carregada e tratada como princesa, porque lá no fundo, toda gata borralheira sabe também ser cinderela.

Mais

Precisava de mais. Precisava muito. Muito mais. Mais frequência. Mais atenção. Mais cuidado. Mais intimidade. Proximidade. Precisava que ele sentisse sua falta. Que não pudesse dormir sem sua companhia do lado errado da cama. Que não conseguisse mais ouvir aquela música sem pensar nela. Que sentisse suas pernas dormentes quando ela tocasse de leve a sua nuca durante o beijo. Precisava de mais tempo, de mais coisas, de mais telefonemas e mensagens e emails e bilhetinhos ridículos escritos em guardanapos. Precisava de uma música feita para ela. Mesmo que fosse ruim. Mas precisava. Precisava de mais romance, de mais dengos, de apelidos estranhos em línguas luxuriantes como o francês ou o italiano. Ela precisava que ele viesse mais. Que se entregasse mais. Que estivesse mais perto. Que quisesse tudo isso tanto quanto ela queria. Ou, melhor, que quisesse mais.

Carta para alguém



(para ler ouvindo Nothingness, do Living Colour)

Me falta força nos dedos. Nas mãos. Não me lembro mais como se faz isso. Não me lembro mais onde foram parar as coisas...

Ouvi outro dia que é mais produtivo olhar para a frente e pensar no que passou com sabedoria, com carinho, mas sem apego e sem saudade, pois essas são coisas inúteis. Mas esse conselho para mim é quase um desperdício. Sinto falta das coisas no segundo seguinte aos acontecimentos. Como se nunca mais fosse viver e sentir nada tão bom como aquilo novamente.

Aí encontrei sensações velhas na velha máquina de escrever, que nunca foi minha para valer. Mas ela sempre esteve ali, então me apossei dela. E fiz o curso de datilografia antes mesmo de aprender sobre escrever. Aliás, aprendi a escrever antes mesmo de saber o que faria com aquilo. Acho que tem sido assim na minha vida, por isso a falta das coisas - aprendo sobre elas antes de realmente saber sobre elas. Aí, quando as encontro, quero muito delas. Talvez mais do que realmente se poder tirar delas. Mais que o normal. Por isso talvez a falta desmedida, a nostalgia descabida e exagerada. Talvez por isso a sensação de que nada fica.

Corpos que não são meus. Lugares que não são meus. Almas que não são minhas. Músicas que não são minhas, que não sei tocar. Que ouço e me emociono, mas não sei o que fazer com elas. Compartilho, mas não é suficiente. Nada é suficiente. Nada preenche esses espaços vazios. Esses espaços, sim, esses são meus. Mas paradoxalmente não sei o que fazer com eles...

Memória de elefante

Lhe invadiu uma tristeza inesperada. Ouviu um ruído de porta velha, dobradiças enferrujadas... Era como se a memória de muitas coisas perdidas de repente resolvesse se manifestar. Já não era mais a mesma pessoa e, de repente, sentiu uma falta enorme da pessoa que era antes.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Ficção

Não precisa fazer sentido. Não precisa de explicação. Apenas ouça. Não há mais tempo, nem compaixão. Apenas viva. Não há mais espaço para ilusão. Apenas me deixe em paz. Mas não me esqueça. Preciso da sua lembrança para que minha história aconteça.

Em reunião

Preso naquela sala, cercado de gente que não fazia a menor questão de ver, ele desligava-se pouco a pouco do assunto debatido. Fechou os olhos por um segundo para lembrar melhor a noite anterior. Quase pôde sentir o perfume doce dos seus cabelos por um instante. Ficou ali, a olhar para as pessoas como se elas não existissem. Eram menos figurantes de sua saudade desmedida.

domingo, 11 de abril de 2010

Breve demais

Seja breve. Tenho tempo, mas pressa ao mesmo tempo. Quero apenas o que quero, não exatamente o que queres pra mim. Seja breve porque já é tarde. E em breve será tarde demais.

Formigas

Ali, a observar as formigas carregando folhinhas para dentro da terra, ela pensava sobre a cortesia, disciplina e sincronia com a qual os pequenos seres tratavam-se entre si. E ela, criatura teoricamente inteligente, sensível, humana, tinha o pensamento confuso, os sentimentos difusos, sua crença em pessoas abalada. Distraída com os pensamentos malucos, só notou o pé quase dentro do formigueiro quando sentiu as picadas no peito do pé. Esbofeteou as formigas para fora do pé com a mesma cortesia com a qual as formigas haviam lhe tratado.

Da minha janela

O sol quente invadindo a sala fria. É outono. Me esqueci como os dias são lindos no outono. Me esqueci como o sol é mais carinhoso, o céu mais azul, a natureza mais tímida, quase triste, mas não menos bela no outono. Há cerejeiras espalhadas pela cidade. Suas flores rosa-claro pintam os galhos das árvores sem folhas, cobrem as calçadas disformes, enchem de poesia o cenário urbano que quase ninguém vê.

Olha e não vê

De repente sentiu um desejo enorme, uma vontade incontrolável de ficar invisível. Queria ver, espiar sem culpa, olhar diretamente nos olhos dos outros sem ter que explicar porque. Mas não queria ninguém olhando pra si. Não queria ter que retribuir nada. Nem ter que explicar. Nem ter que fingir que é preciso olhar muito numa noite assim para se encontrar o que se está buscando.

sábado, 10 de abril de 2010

Dois tomates iam atravessar a rua

Contou uma piada sem graça. As pessoas riram por educação. Tentou ficar calado, mas era difícil. Tinha esse comportamento estranho, de falar demais quando estava nervoso. As pessoas reagem de maneiras esquisitas à pressão, aos impulsos, à paixão, ao medo. As pessoas reagem de maneiras inesperadas quando esperamos delas algo que só existe em nossa imaginação.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

da saudade

já que é assim, nem vou lhe dizer, nem satisfazer os sentidos do que imaginou. são apenas palavras, letrinhas coladas, cervejas suadas, baforadas carregadas de imaginação com cheiro de baunilha. uma partilha no que vês. uma partida sentida, sofrida, suprida de todo o calor da bahia nas tardes de sol.

sem pé nem cabeça

Ele estava sem cabeça. E ela estava farta. Foi embora. Deixou para trás o homem perfeito. Um perfeito idiota de deixá-la partir assim, isso sim. Era uma partida estranha, entretanto. Ele continuava nela. Não queria sair. Estava impregnado nela. Ela podia sentir seu cheiro mesmo no perfume de outras peles. O nome dele a perseguia em crianças e citações bíblicas que cruzavam seu destino ateu. Mas então o tempo passou e sua permanência insistente finalmente diluiu dentro dela. E ele, bem, ele continuava sem cabeça.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Esse texto foi escrito à lápis


Te escrevo à lápis para poder apagar depois se quiser. Mentira. Eu nunca apago nada... As palavras que escrevo são como tatuagens na minha memória. Às vezes me esqueço delas, mas quando leio de novo, as reconheço, sei que são minhas, que nasceram de mim. Eu edito. Gosto de riscar ao invés de apagar. E mesmo assim te escrevo à lápis. Escrevo para dizer nada. Apenas para passear com o lápis sobre o papel. Gosto da resistência sutil do papel branco quando o grafite desliza gracioso, parecendo inofensivo só porque pode ser apagado. Não se engane: palavras salvam e palavras ferem. Não importa se nasceram da tinta ou do pó.

#doepalavras

palavras tem poder. fazem bem qdo querem dizer o bem.

http://www.doepalavras.com.br

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Enquanto dormes

Ele lhe cobria o corpo pequeno antes de sair. Ela descobria os pés. Não suportava dormir com os pés cobertos. Era uma coisa de adulta. Quando criança tinha frio e usava as meias da mãe, que lhes pareciam mais quentes. Mas agora não, agora tinha calor. Mas ele não podia evitar, cobria-a mesmo assim. Empurrava com uma dedicação paterna a ponta do lençol para debaixo dos seus pés pequenos e sinuosos. Ela gostava desse cuidado. Não se dava conta, mas sempre dormia melhor assim - mesmo descobrindo os pés.

Inferno astral

Gostava de ler o horóscopo em voz alta,antes de tomar seu café preto na mesa da cozinha. Ele não entendia o porquê, já que ela nunca acreditava em nada que não fosse lógico, científico e comprovado. Um dia ele insistiu: por que ler o horóscopo? Ela hesitou, mas respondeu sincera e com a calma irritante de sempre: minha falta de crença infelizmente não é páreo para minha curiosidade...

Partida

Roía as unhas com dedicação. Como se precisasse daquilo para sobreviver. Estava concentrado. Era uma atividade quase solene, quase uma meditação. Era, na verdade, um dos poucos momentos em que sua cabeça ficava vazia dos assombros que a partida dela havia lhe deixado. Um momento em que a dor dos dedos excessivamente roídos o distraía do coração excessivamente partido.

Fogo

Você é como o fogo que não posso tocar. Transforma meu mundo, destrói meu mundo se quiser. Me dá calor e vertigem. Me provoca fascínio e medo. E eu sei que basta ter cuidado, mas não tenho. Quero mais. Quero que você aqueça, que ilumine, ofusque, queime em mim todo o combustível que há para queimar. Quero a fumaça confusa, a chama difusa, a bagunça de cores, o cheiro das coisas irreparavelmente queimadas.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Lacunas

Mas era duro não pensar nele. Nela também. Havia se apaixonado pelos personagens, embora ainda estivesse com raiva dela. Não conseguia perdoar sua partida inesperada, sua falta de piedade com ele, seu excesso de coragem...

O livro já estava na estante e ela precisava deixar aquela história de lado e ir viver a própria vida. Sentia-se forte, estava bem disposta, pensando até em voltar a correr. Mas a todo momento alguma parte do livro lhe vinha à cabeça trazendo lembranças, talvez causadas pela semelhança dos personagens da história com os personagens de sua própria vida.

Não conseguia esquecer o homem pálido parado ali, diante do aquário, no meio da madrugada, tão só que nem conseguia mais sentir tristeza. As marcas dela pela casa. O jornal espalhado sistematicamente pela mesa e cadeiras da cozinha. A geléia de morango - no seu caso seria de figo - guardada sempre na porta da geladeira.

O duro de viver com alguém, pensava, é que você se mistura na história do outro. Detesta algumas maneias, mas adota outras. Adota atitudes, bons e maus hábitos que não são seus. E quando a pessoa parte, ou mesmo quando é você quem parte, aparecem enormes buracos na sua vida e na sua alma. Há uma perda de identidade. Há uma perda de rumo.

E ela via isso ali, naquele final do livro, quase abrupto, com ele paralizado com o controle remoto na mão, sem bússola, sem chão, sem pedaços de si próprio.

Abriu a geladeira, pegou a geléia de figo, tentou abrir o vidro, mas a tampa estava dura, há semanas intocada, açucarando solitariamente ali na porta. Tentou mais uma vez e conseguiu. Sentou-se no chão da cozinha com as costas encostadas no armário frio da pia. Enfiou o dedo no pote pela metade e tocou a pasta de figo vitrificada. Ela adorava aquela sensação de pequenos cristais quase cortantes, misturados com a fruta melecada, quase derretida, quase nojenta.

Enfiou o dedo na boca devagar e lembrou-se de quando fazia aquilo com ele. Ele não gostava de figo, aquilo era mania dela. Nunca comia. Mas adorava quando ela fazia isso, quando mergulhava o dedo no pote de geléia e depois lambia. Lhe dava vontade de ter o dedo dela na sua boca também. Era o único jeito de lhe fazerem comer geléia de figo - lambendo do dedo dela. Eram capazes de comer um pote inteiro assim.

Ela lambeu os dedos com restos de açúcar mais uma vez e fechou o vidro. Olhou a lixeira a uns dois metros e o arremessou. O vidro pesado fez um estrondo repentino e violento quando atingiu o fundo da lixeira, mas ela gostou. Cesta de três pontos!, pensou. Levantou-se, lavou as mãos, trocou de roupa, calçou o tênis e foi correr.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Outono

"...o incêndio parece ter sido causado por um charuto cubano Romeo y Julieta Churchill que permaneceu aceso depois que o morador do apartamento adormeceu. A sonolência foi causada, provavelmente, pelo rum cubano envelhecido, cuja garrafa foi encontrada vazia, próxima do televisor."

Fechou o livro e o encostou no peito. Mais um. Mais uma despedida. Toda vez ela pensava que seria diferente. Mas não. Sua dificuldade em despedir-se das coisas, pessoas, momentos, lugares, ficava cada vez pior. Todo fim era difícil.

E agora, com o livro pousado no peito, acompanhando lentamente o ar que entrava e saía dos seus pulmões, ela pensava nele. Na fumaça do charuto. No rum sem gelo, mal cobrindo o relevo enrugado do fundo do copo. Pensava nele na poltrona de couro, que rangia fingida, quase quieta, quando ele inclinava o corpo para olhar a porta novamente, procurando um barulho que não existia, um indício fictício de que ela poderia ter voltado.

Todas as cores da tristeza invadiam a sala com os ares do outono, que chegava delicado, tentando não fazê-la lembrar que o verão acabou. Não adiantava, ela sabia. E era muito difícil enganar aquela menina. Quando ela comia, parecia uma menina. Movia os lábios com uma graça infantil. Mas seus olhos eram de mulher. Olhavam com profundidade. E as sobrancelhas inclinavam-se de mil maneiras, dizendo muito mais do que ela queria, mesmo que não dissesse palavra. Suas sobrancelhas sabiam que já era outono.

Ela pensava nele. Podia quase sentir seu hálito doce. Ela pensava nele esperando por ela. Pensava que já era abril outra vez. Sentiu a madrugada entrando pela janela. Levantou-se e colocou o livro na estante. Olhou a prateleira por um instante e ficou admirada de quão rápido seu coração agora se recuperava dos enganos que cometia. Era cíclico, afinal. Era outono novamente.

Encontros fulgazes

Você vai embora e leva um pouco de mim. Da pessoa que eu era antes de você. Mas não me deixa nada. Não me deixa um pouco de você. Eu me desmancho, sou um iceberg. Você, não. Você é um rochedo. Só depois de muito tempo a água e os ventos vão te mudar um pouco. Talvez criem sulcos na sua pele. Mas ainda assim você seguirá sólido, resistente ao tempo e a mim, que em breve já terei derretido.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Nada contra

Não vou me opor ao fato de que és um idiota. Me perdoe, mas é verdade. Não se sinta mal. Os idiotas estão por toda parte. São necessários, senão há desequilíbrio na cadeia alimentar.

verdades e mentiras

você me confunde com sua maldade. diz tantas mentiras quando me ama de verdade. me adora momentaneamente. e desaparece para todo o sempre. me engana. e eu deixo. não me queixo. nem me esqueço. suas mentiras são melhores do que todas as verdades que conheço.