terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Mãos tristes

Ele tinha uma certa tristeza. Mas era uma tristeza gostosa. Uma nuvenzinha que combinava com ele. Afastava quem ele não queria por perto, porque tinha uma certa agressividade. Mas também divertia quem ele queria divertir, porque o cinismo era bem humorado. Ele tinha um sorriso meigo, que pouca gente via. Um sorriso de garoto. Mas suas mãos eram mãos de homem. Pesadas. Cruéis. Inesquecíveis.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A COR DA MADRUGADA

A esta hora, nada mais. Nada igual. Porque nesta hora reside ali algo gigante. Adormece ali (ou desperta?) o gigante que nos engole depois. E a cor desse momento, cobalto de um jeito que Kandisky sabia bem copiar, dura alguns poucos minutos, às vezes segundos, antes que a luz invada e transforme outra vez aquilo tudo na coisa mais mundana do mundo. A hora que o dia começa. Ou a hora que a noite termina. É como sentir algo maior do que se pode entender - impreciso, fulgaz, único.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Talvez

O farol abriu, ela engatou a primeira e foi. Plant se esgoelando no rádio, dazed and confused. Virou à direita depois da praça. O carro ia sozinho, como se nem houvesse esforço dela. O caminho de todos os dias. E ela ia tranquila. Os óculos escuros escorregavam para a ponta do nariz e ela empurrava para cima, de dois em dois minutos. A música misturada com o ritmo lento do trânsito, a falta de atenção pras coisas, o dia lá fora sem nenhum esforço, provocaram nela uma sensação engraçada. Uma coisa entre o sono e a embriaguez. Paz, talvez.

Stormy Weather

Aquelas notas arrancavam de mim mais do que eu sabia ser possível sentir. Não achei que fosse tão longe. Não achei haver existência para tamanho vácuo. Um buraco negro no universo. No meu universo. Assustador. E nem sei por que temer algo que nem posso entender. E não há como saber onde acaba, se é que acaba. Acho que é como tudo na vida. Não acaba, apenas vira outra coisa.

Mulher amada

Ela prendeu os cabelos. E ele odiava quando ela fazia isso. Ela passou a língua pelos lábios cheios de um brilho pegajoso. Ele odiava aquele brilho pegajoso. Ela ajeitou o brinco na orelha e seu esmalte vermelho refletiu o sol. Ele odiava suas unhas vermelhas. Ela pegou um cigarro, deu um pra ele e esperou que ele acendesse ambos. Ele odiava vê-la fumar. Acendeu os dois cigarros e a olhou através da fumaça entre eles. E se deu conta de que não havia criatura mais perfeita no mundo do que ela.

Ninguém

Aquela sensação de que o mundo pode esperar, sabe? Uma garrafa de vodca ali. Talvez mais tarde. O dia aqui na janela, insistindo em acontecer. As horas passando, aceleradas, mas que diferença faz? Não há ninguém na casa ao lado. O silêncio é enlouquecedor. No espelho, os olhos borrados de ontem. A alma ainda manchada e perdida. E assim começamos outro dia vazio.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Silêncio

Esse silêncio está me consumindo. Me sinto sumindo, desaparecendo, carecendo de algo que não sei o que é. É como um barulho branco, desses de geladeira, de ventoinha, que incomodam dissimuladamente, sem que você perceba, sem que você tenha idéia de que há um incômodo, até que você ouve. E aí sua vida passa a ser um inferno. Esse barulho (ou esse silêncio?) nunca mais vai sair dali porque agora você sabe que ele está ali.

DESPREZO

Você, que não sabe dividir, que fique aí. Se você tem medo, não venha. Não me conte, não quero saber. Tua vida não me interessa. Teus olhos me enganaram. Me mostraram vontade de coisas. Coisas que você, agora eu sei, não tem coragem de fazer. Me perdoe, mas eu desprezo os covardes. Vou ficar apenas com teus olhos na lembrança. Eles não mentem. Apenas desmentem teus atos que eu não posso entender.

A beleza que a gente não espera

Virou a esquina e deu de cara com uma rua linda. A luz fria da manhã tingia tudo de um azul meio índigo, meio sujo, de uma beleza meio underground, mas mesmo assim, estonteante. Pensou na mulher que conheceu no outro dia. Unhas azuis. Camiseta do Johnny Cash. Nada nela parecia muito certo, mas por algum motivo tudo fazia sentido.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Paradoxo

Ela queria fazer coisas sem sentido com ele. Escutar o que ele tinha para dizer bem baixinho. E depois esquecer tudo. Não sentir nada. Não sentir calor. Não sentir frio. Mas ele a olhava de maneira terna. Como o animal que olha para o nada sem saber que será abatido no próximo segundo. Ela queria não gostar dele. E não entendia como era possível ser mais difícil não gostar dele do que gostar.

Coisas sem sentido

Eu queria andar pelas ruas de Paris com você. Queria ir a um show em Nova Iorque. E ir ao Palácio de Belas no México para ver os painéis do Diego Rivera. Queria ir a Tate Modern para te mostrar minha tela preferida do Pollock. Foda-se se você não sabe quem é Pollock. Talvez você até saiba. Tanta coisa que você sabe e eu não sei...
Eu queria fazer contigo coisas que eu já fiz. E queria fazer outras que nunca fiz. Ver as pirâmides do Egito. Mergulhar na Grande Barreira de Corais. Ver os vitrais de Istambul. E as torres coloridas da Catedral de San Petersburgo. Queria fazer amor contigo ouvindo Black. E também If 6 was 9. E te mostrar The Pass, minha música favorita de todos os tempos. Queria viver isso com você e não sei se isso é possível. Se for, provaremos que realmente alguma coisa faz sentido nessa vida.

Bicho do mato

Ele só queria amá-la. Cuidar dela como se cuida de um bichinho. Alimentá-la, levá-la para passear, acarinhá-la e deixar seus pés frios perto de seus pés quentes nas noites estranhamente geladas da cidade. Mas ela era um bicho selvagem. Morreria na primeira semana de cativeiro. Alguns bichos são assim. Selvagens demais para saber lidar com a delicadeza do amor.